Quanto é que já avançou a contraofensiva ucraniana? "Temos de estar preparados para uma guerra mais prolongada"

16 ago 2023, 07:00

Depois de dois meses de contraofensiva, a Ucrânia só conseguiu conquistar 208 quilómetros quadrados e, em muitas regiões, ainda está longe de atingir a principal linha defensiva russa

No sul da Ucrânia, a dimensão dos combates é consideravelmente maior do que o tamanho das localidades onde estes acontecem. Ali, naquelas vilas e aldeias com nomes quase impronunciáveis, soldados ucranianos protagonizam alguns dos mais intensos combates desde o início da tão aguardada contraofensiva ucraniana, onde cada metro é reconquistado com um enorme sacrifício. Mas as defesas russas foram preparadas ao longo de mais de seis meses e, quando as tropas de Kiev avançam, não existe nenhum lugar seguro.

“Quando estás a atacar debaixo do fogo inimigo, não há qualquer lugar para te esconderes. Essa é a parte mais difícil”, explica à CNN um fuzileiro ucraniano que participou nos combates pela conquista de Staromaiorske, no sul da região de Donetsk, uma terra que se encontra no caminho do eixo da contraofensiva ucraniana que vai em direção a Mariupol.

Este é um dos quatro principais eixos de ataque da contraofensiva ucraniana. É aqui, no sul da região de Donetsk, que a Ucrânia quer tentar separar a ligação terrestre entre a Rússia e a península da Crimeia. É nesta região que a contraofensiva tem tido maior sucesso no que toca à recuperação de território. Neskuchne, Blahodatne, Rivnopil, Makarivka, Staromaiorske e recentemente Urozhaine foram tomadas pelas tropas ucranianas, mas ainda não existem sinais de que a linha defensiva russa esteja perto de ser quebrada.

Nesta região, tal como em quase todo o sul do território ucraniano, o terreno é uma gigantesca planície, com pouca vegetação capaz de esconder as movimentações dos soldados no terreno. E isso torna a situação difícil para o lado que ataca. Mesmo quando há sucesso, os russos lançam contra-ataques imediatos, para impedir que os ucranianos se reorganizem e preparem as suas posições.

Artilharia no sul da Ucrânia (Associated Press)

“A capacidade de defesa russa só surpreendeu quem teve grandes expectativas e só estivesse a pensar na guerra como se só de um lado se tratasse. Para a sociedade internacional, existiam expectativas elevadas, mas que não se concretizam”, refere o coronel Mendes Dias, especialista em assuntos militares.

Quebrar a linha em Zaporizhzhia

Onde havia mais expectativas era no eixo de Orikhiv, no centro da região de Zaporizhzhia. Lá, o plano passaria por quebrar as várias linhas defensivas russas – algumas das mais extensas barreiras militares criadas desde a Segunda Guerra Mundial – e atingir a cidade de Tomak e, depois, avançar em direção a Melitopol. O objetivo é sempre o mesmo: cortar a ponte terrestre que liga o território da Rússia à Crimeia. Dessa forma é possível fazer “controlo de fogo” e atingir navios no mar de Azov, bem como a ponte de Kerch. A Ucrânia acredita que tais operações obrigariam a Rússia a tomar decisões difíceis como em Kherson.

Aqui também aconteceram alguns avanços, mas também alguns falhanços. Foi nesta frente de combate onde se registaram as primeiras perdas de carros de combate e veículos blindados modernos enviados pelo Ocidente. Os Leopard 2 foram os principais alvos, inclusive da propaganda russa, que partilhou repetidamente imagens dos destroços dos mesmos veículos de ângulos diferentes para dar a ideia de que foram perdidos mais carros de combate.

Apesar de estar a registar alguns avanços na vila de Robotyne, com vários soldados a conseguirem aguentar posições no seu interior, o progresso é, porém, muito mais lento do que o desejado. Nesta direção, crucial para os planos de recuperação da Crimeia, Kiev avançou pouco mais de 13 quilómetros em direção a Berdiansk e Melitopol. O think tank norte-americano Institute for the Study of War recorda que as forças de Moscovo aplicaram nesta região “esforço, tempo e recursos significativos” para deter os esforços ucranianos.

Ainda em Zaporizhzhia, a Ucrânia tentou nos primeiros dias da contraofensiva romper as linhas inimigas junto ao rio Dnipro, mas também aqui o sucesso foi limitado. Lobkove e Piatykhatky foram conquistadas pela Ucrânia, mas as tentativas de continuar a avançar no terreno fracassaram e o comando militar optou por focar-se noutras regiões.

Soldados ucranianos na linha da frente (AP Images)

Talvez por esse motivo ainda não tenha sido atingida a primeira grande linha defensiva russa, que se estende por mais de mil quilómetros e é vista pelos analistas militares como um formidável obstáculo a ultrapassar. A linha de defesa é, no fundo, um complexo de trincheiras e posições fortificadas ao longo da frente de batalha. Em muitos casos, antes de se chegar a estas posições, é preciso ultrapassar vastos campos de minas, fossas antitanque e estruturas de betão capazes de deter os mais evoluídos carros de combate.

Esse é um dos motivos pelo qual a contraofensiva ucraniana, que começou na manhã de 4 de junho de 2023, tem produzido conquistas a um ritmo inferior ao esperado. Mas não é o único. Para o coronel Mendes Dias, é injusto exigir da Ucrânia a capacidade de conduzir operações de combate de armas combinadas, quando não se fornecem as armas necessárias para o fazer.

“Nós fomos dizendo que a Ucrânia tinha falta de munições, comunicações, carros de combate e meios aéreos e, ao mesmo tempo, suscitam expectativas tão elevadas sem esses elementos?”, questiona o especialista militar.

Kherson volta ao combate

É o caso da região de Kherson, onde a Ucrânia está a lançar várias operações anfíbias com o intuito de conquistar pedaços de terra atrás da linha defensiva russa, que permitam servir de base de operações futuras. Neste momento, cerca de mil fuzileiros ucranianos treinados no Reino Unido combatem pelo controlo da ilha Potemkin e da cidade Oleshky. Além disso, existe também uma tentativa de criar uma dessas ligações junto à barragem de Kakhovka. O objetivo é criar uma zona de terreno seguro, de onde as forças ucranianas possam lançar ofensivas cada vez maiores na retaguarda russa.

“É uma ameaça considerável à Rússia. A Ucrânia tem meios capazes de fazer transpor carros de combate para o outro lado do rio”, realça o major-general Isidro de Morais Pereira.

A situação ameaça tornar-se de tal forma complexa que a liderança militar russa já decidiu enviar unidades mais capazes para o terreno, uma vez que a região era ocupada por tropas de reserva e soldados mobilizados. “A chefia militar russa já terá decidido enviar determinadas forças da região de Zaporizhzhia para a zona de Kherson, porque, neste momento, as forças que estão a defender Kherson não estão a ser capazes de combater eficazmente e segurar o terreno que têm. As forças ucranianas estão a ter sucesso”, considera o especialista.

Se, por um lado, quase todos os especialistas anteviam a direção de Zaporizhzhia como o principal eixo de ataque da contraofensiva, foi em Bakhmut que ela verdadeiramente começou. Ainda em maio, pouco depois do Grupo Wagner ter conquistado a cidade, tropas da Terceira Brigada de Assalto ucranianas lançaram um forte ataque nos flancos, que apanhou os russos desprevenidos. Este ataque obrigou a chefia militar russa a destacar reservas na região, numa altura em que se antecipava o início da tão falada contraofensiva.

Mas foi preciso esperar até ao final de julho para ver os primeiros sinais de sucesso, com as tropas ucranianas a atingir a cidade de Klishchiivka. Ainda assim, a vice-ministra da Defesa da Ucrânia, Hanna Maliar, admite que a Rússia está a colocar “um grande número de forças” na área, para evitar o pior.

Soldados ucranianos à porta de um abrigo, no interior da cidade de Bakhmut, no final de março (Getty Images)

A guerra mudou

Ao contrário do que aconteceu na Segunda Guerra Mundial, onde dezenas de milhares de soldados acompanhados por blindados e veículos motorizados atacavam diretamente uma área da frente de batalha até conseguir criar uma abertura nas linhas inimigas, aqui o cenário é completamente diferente. Um exemplo disso é a conquista de Staromaiorske, em Donetsk. Um dos soldados que participou no assalto desta vila conta à CNN que os assaltos são feitos por grupos relativamente pequenos de soldados. Neste caso foram apenas 70. O militar ucraniano refere que a vila era defendida apenas por 20 soldados, que a aguentaram vários dias. A verdade é que, nas caves da vila, encontravam-se perto de 200 paraquedistas, tropas de elite russas, que iam alternando com os militares que defendiam o que restava desta terra.

No entanto, os especialistas apontam como principais problemas o facto de a Rússia ter tido demasiado tempo para construir uma extensa linha defensiva, bem preparada com posições fortificadas. Mas o principal problema das tropas ucranianas continua a ser a densidade de minas que se encontram no terreno e fazem da Ucrânia o país mais minado do mundo. O resultado prático é que as forças ucranianas conseguiram reconquistar "apenas" 208 quilómetros quadrados de território e dez localidades espalhadas pela linha da frente. Um resultado aquém do esperado, uma vez que a Rússia ainda ocupa 103 mil quilómetros quadrados do território da Ucrânia.

“A Ucrânia só não tem tido mais sucesso por causa da densidade de minagem. Chegam a existir cinco minas por metro quadrado. A Rússia teve tempo demais para organizar as suas posições defensivas e à frente da sua primeira linha, que é onde se está a combater, colocaram as minas. Isto significa que, em Kiev e no mundo ocidental, temos de estar preparados para uma guerra mais prolongada”, conclui Isidro de Morais Pereira.

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