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Diretor executivo CNN Portugal

Putin já está a ganhar, os russos já estão a perder 

24 fev 2022, 22:36

Putin não quis ser a “besta sadia que procria”, mas a sua indómita loucura vai sair cara ao seu pobre povo. Crónica no final do dia #1

O Ocidente acordou tarde e levantou-se depressa para agir devagar. As sanções norte-americanas não são tão “devastadoras” como Biden lhes chama, a União Europeia está unida mas defensiva, a diplomacia europeia falhou, a NATO fica a ver pela janela da fronteira e deixa a Ucrânia à sua sorte ou à sua morte. Putin já está a ganhar porque ganha território num país suficientemente valente sem suficientes valências. E o povo russo já está a perder porque as sanções vão empobrecer ao retardador o seu país.

Não entro no coro de entusiastas de Joe Biden nem proponho a leitura simplificada do que é complexo. Assinalo, contudo, que esta entente chamada Ocidente, democrata e livre, subvalorizou a loucura de Putin. Por loucura não quero dizer psicopatia, mas a insânia de quem age não pela racionalidade do jogo diplomático dos ganhos e perdas mas pelo desejo desenfreado de escrever a História. Nem que seja sacrificar a do seu país para glorificar a sua.

Até há 24 horas, a maioria dos analistas de política internacional considerava que a invasão da Ucrânia já começara mas que os tanques não avançariam. A mesma maioria argumentava que a Rússia não tem poderio, nem económico nem militar, para enfrentar o Ocidente. Não tem, de facto. Mas tem-no para a Ucrânia, ainda que esta resista. Putin contou com a passividade inconsequente que o proclamatório Ocidente já demonstrara na Georgia ou na Crimeia. Preparou-se provavelmente durante anos para isto. Criou dependências energéticas na Europa, inclusive com a Alemanha, ciberminou instituições e democracias, forrou-se de dinheiro no último ano com a escalada dos preços do petróleo e do gás. E avançou. 

Sem cinismo, não creio que o Ocidente esteja tão preocupado com os ucranianos além de uma genuína compaixão e solidariedade. Está preocupado sim com o redesenho do mapa da Europa e com o avanço de um autocrata que tem armas nucleares e amizades com a China e no Médio Oriente.

Daí as “sanções devastadoras”, tal como foram denominadas por Joe Biden. Isolar grandes bancos russos e banir oligarcas é agressivo, sim, mas é responder com números sem responder à letra. Não é uma encenação, não é isso, mas até Biden reconheceu que isso não faria Putin recuar no terreno. 

Muitos dos efeitos das sanções têm efeitos a longo prazo. E os efeitos maiores são o empobrecimento de um povo que já hoje vive em intensa desigualdade e depende essencialmente de petróleo. Em média, cada russo gera metade da riqueza de um português. É primeiro o povo ucraniano e depois o povo russo que vão pagar este sonho de Putin.

Quem conhece a história imperial da Rússia ou leu os seus romancistas do Séc. XIX percebe que os czares foram mais obcecados com a grandeza do império (a automitificação da Grande Rússia, por vezes com grandes excentricidades) do que preocupados com o bem-estar ou distribuição de riqueza pelo seu povo. Talvez Putin assim pense. Porque nesta sua determinação em escrever ele próprio os capítulos que faltam da sua biografia, Putin não se furta a usar o sangue de outros como tinta, nem se coíbe em sacrificar o futuro de um povo (ou, na verdade, de dois), condenando-o ao isolamento económico que chegará ao retardador. Porque, depois disto, a Rússia não só perde receitas a vender petróleo e aumenta custos militares como Putin conduz o país ao isolamento financeiro, económico e comercial a Ocidente, que dificilmente poderá ser compensado a Oriente.

Hoje muitos chamaram louco a Putin pela sua aventura bélica. “Louco, sim, louco, porque quis grandeza”, escreveu Pessoa sobre D. Sebastião: “Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?”. Talvez Putin seja louco, então. Mas da loucura da ingenuidade padeceram aqueles que julgaram que ele não se atreveria. Hoje, no final deste dia #1, na relação com o Ocidente Putín já está a ganhar porque os ganhos com que se mede são rápidos, mas o povo russo já está a perder porque as consequências que sofrerá chegarão lentas. Numa democracia ocidental, um povo assim tratado talvez tirasse o apoio ao seu líder. Mas não falamos de uma democracia ocidental. E Putin é o nacionalista de uma Rússia agora personalista, que pinta um autorretrato desenhando um mapa da Europa.

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