O declínio de Vladimir Putin (e uma história de racismo)

1 mar 2022, 18:29

A comunidade internacional continua, sem especiais exceções, unida em torno da causa ucraniana. Essa unidade, preferível à unanimidade, é um dos pontos mais surpreendentes desde que, há seis dias, começou a agressão russa. São seis dias, mas parecem seis anos, tal a revolução nas relações de poder internacionais a que temos assistido, com consequências que parecem em consolidação rápida. Dir-se-á que estes entusiasmos costumam durar pouco e ninguém consegue manter sempre estes níveis de empenhamento. Talvez, mas há mudanças sem retorno.

Vladimir Putin iniciou a sua via-sacra definitiva. O erro de avaliação cometido quando decidiu a invasão total da Ucrânia lembra o de Saddam Hussein quando, a 1 de agosto de 1990, invadiu o Kuwait. E se a Rússia conseguir ocupar a Ucrânia, esmagando a resistência que possa ter perante si? Pode acontecer, infelizmente, por muito apoio exterior que a Ucrânia tenha conseguido, com uma rapidez surpreendente. Mas, como Saddam, Vladimir Putin enganou-se no tempo, e isso vai custar-lhe muito caro.

O ditador iraquiano não compreendeu o cataclismo do fim da Guerra Fria (que lhe garantia proteção), acreditou até ao fim que, mesmo depois da resolução do Conselho de Segurança que autorizava a força (resol. 678, de 29 de novembro de 1990), nunca poderia perder. Não era possível. Depois, foi o que se viu: a partir de 16 de janeiro de 1991, as suas forças foram destruídas pela “Tempestade no Deserto”.

Com Vladimir Putin, será diferente o processo, mas nem tanto o declínio inelutável. Não vai ser expulso pela força internacional, embora, mesmo que vença a Ucrânia, não vá conseguir lá ficar. Quando a desproporção de forças é muito grande, pode ganhar-se a guerra (e nem isso está a ser fácil para as forças russas); mas é muito mais difícil ganhar a paz e ocupar de forma duradoura um país. Será preciso invocar o precedente afegão?

Depois, além do sufoco económico-financeiro, o cerco jurídico-internacional começou a apertar

A Assembleia Geral das Nações Unidas vai a votos esta e quarta-feira sobre este assunto; o Tribunal Internacional de Justiça recebeu uma queixa urgente da Ucrânia em que, entre outros aspetos, ressalta no imediato o pedido para aquela jurisdição decretar medidas provisórias quanto à presença russa na Ucrânia (se possível, durante esta semana); e, finalmente, o Procurador do Tribunal Penal Internacional anunciou que vai mesmo em frente o inquérito sobre a prática de crimes internacionais (especialmente, crimes de guerra e contra a Humanidade) que estejam a ser cometidos na Ucrânia. Junte-se a isso o que disse António Guterres sobre os dados de que dispõe sobre alvos civis atingidos neste conflito e começamos a ter um retrato bastante ameaçador não só para Putin como para os responsáveis militares russos, e não apenas os que estão no terreno.

Mudando de assunto. Foi reportada por várias fontes a prática de ações discriminatórias de que têm sido alvo cidadãos de países africanos junto às fronteiras da Ucrânia com a Polónia e a Roménia, quando tentam sair do País – como as largas centenas de milhar de ucranianos que o já fizeram. A União Africana já tomou posição, denunciando atos “chocantes e racistas” que “violam o direito internacional”. Soube-se, logo a seguir, que o mesmo aconteceu a dois cidadãos portugueses, certamente por a sua pele ser de cor diferente da maioria. Neste caso, pelo menos, a situação resolveu-se depressa, pelo envolvimento da Embaixadora da Ucrânia em Portugal.

Qualquer que seja a situação tremenda que a Ucrânia atravessa, não existe justificação para estes comportamentos, venham eles do lado ucraniano ou do dos países com que faz fronteira. Ferem, grosseiramente, obrigações elementares de não discriminação com base na raça; atacam as normas internacionais que protegem os refugiados; põem em causa obrigações de direito internacional humanitário, nomeadamente aquelas que garantem o acesso igual a cuidados médicos; violam, em geral, direitos humanos básicos. A mudança sonhada e cantada por Sam Cooke já esteve mais longe, mas ainda não chegou a todo o lado:

Then I go to my brother
And I say, "Brother, help me please"
But he winds up knockin' me
Back down on my knees.

Europa

Mais Europa

Mais Lidas

Patrocinados