E ao trigésimo dia… continuou

24 mar 2022, 11:52

Marca-se hoje um mês desde o início da guerra na Ucrânia, e os papéis estão tão claramente definidos que não vou repetir mais do mesmo. Este conflito está a ter um impacto nas relações internacionais e, mais em particular, nas relações intraeuropeias e transatlânticas, imprevisto, mais fundo e transformador do que, acredito, do que o tenha sido feito em qualquer previsão.

Onde se admitia um, aconteceu dez. Ia haver, não ia haver, conflito? Ia, e em proporções, envergadura e objetivos gerais, completos e avassaladores. A Rússia tem, evidentemente, uma série de objetivos que prossegue com a guerra que desencadeou. Hoje, trinta dias volvidos, todos pressupõem o pior, e nunca a formulação relativamente limitada que poderia ter sido aquilo que começou – há tanto tempo – com o reconhecimento da “independência” das entidades separatistas de Lugansk e Donetsk.

Agora que o conflito está perante nós, pode já registar-se a primeira grande surpresa: a guerra continua. Onde se previa que o conflito fosse breve, não foi. Onde se pensava que, depois de alguma retórica, ruísse a resistência ucraniana, não só não ruiu como, ao contrário, tem demonstrado mais capacidade tática do que o oponente e uma coragem coletiva que alcançou a admiração do Mundo.

Temos, depois, a segunda surpresa destes trinta dias: do ponto de vista da comunicação, e por mérito muito especial do Presidente ucraniano, Zelenskyi, a guerra tem sido um desastre comunicacional para a Rússia, e uma presença global para a mais pequena e frágil Ucrânia. Manifestamente, os ucranianos não andaram a dormir na formatura, porque compreenderam, depois de em 2014 poucos lhes terem ligado, que desta vez teriam que chegar a um qualquer novo conflito pelo menos com essa lição bem estudada. Por vezes, a propaganda é demasiado óbvia. Muitas vezes, não é. E, sempre, conseguiram que nos apetecesse acreditar na sua visão e, por conseguinte, na sua versão. Aqui só entre nós: alguém comprava um carro usado ao porta-voz militar do Kremlin, que nos aparece de uniforme, hirto e a falar russo enquanto lê com óbvia dificuldade o que lhe vai caindo no teleponto?

A terceira surpresa foi a união europeia da União Europeia. Vladimir Putin ainda vai acabar com o cognome “o Unificador”, Robert Schuman do Leste (com as minhas desculpas públicas ao grande estadista e sonhador de uma Europa unida e fraterna). Quais Tratados, quais estratégias, quais consensos, quais maratonas orçamentais? Putin conseguiu – e deve ter pesadelos por causa disso – o impensável: juntou-nos, fez-nos remar para o mesmo lado, tomar decisões, assumir um rumo razoavelmente definido e compreensível. Logo depois do início do conflito, a Presidente da Comissão, discursando perante o Parlamento Europeu, disse uma coisa importante: a segurança e defesa europeias tinham evoluído mais em seis dias do que em duas décadas. É verdade, foi ver-se como o documento da “Bússola Estratégica”, que vai agora ser entronizado no Conselho Europeu, engordou a olhos vistos desde 24 de fevereiro; e foi ver-se como as contramedidas adotadas superaram quaisquer objeções como faca quente em manteiga, mesmo que com sacrifício desproporcional para alguns dos Estados-Membros.

A quarta surpresa seria, no entanto, que esta unidade fosse muito além do conflito, que tivesse alicerces estruturais ou que nisso possam transformar-se. Ora, assim, poderemos estar perante um caminho paradoxal, se partirmos da premissa de uma unidade motivada pelo conflito. Se a Rússia de Putin conseguir levar a sua avante e acabar por vergar a Ucrânia, esse facto, essa ameaça muito forte (a seguir, quem vai ser?) manter-nos-á de certeza mais unidos que o vime de uma cesta. Se, como espero e cada vez é menos absurdo admitir, a Ucrânia consiga não só não perder como até chegar a uma vitória aos pontos, a Rússia aguentará o possível e o impossível, mas estará perante um acordo que cheire à sua derrota. Ora, nessa hipótese, é provável que o sentimento de ameaça e o custo das “sanções” comece a provocar lassidão e uma unidade menos efetiva. Conseguir as duas coisas (com prioridade, nem que seja por razões de decência, para a Ucrânia) é a tarefa importante que os decisores, e nós, temos em mãos.

A quinta surpresa é a forma quase entusiástica como tem sido aplaudida a hipótese de uma Alemanha grande potência militar europeia. A esse assunto voltarei noutra ocasião. Hoje, já morreram todos os “poilus” da Primeira Guerra Mundial. Da Segunda Guerra, infelizmente, já poucos restam. Entre os sobreviventes, os veteranos alemães deverão estar a pensar: “olha que esta!” E “olha que esta!” devem estar a pensar os veteranos que combateram pelos Aliados. Alguém se lembra, aliás, da ideia genial que serviu de base para a criação da CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço)? As voltas que o Mundo dá! Esta, diria, é uma bela lição de História, e custa a acreditar que a “devamos” já sabem a quem.

A sexta surpresa seria que saíssemos desta crise muito grave sem deixarmos algumas coisas importantes pelo caminho. Confesso dúvidas relativamente à forma como proibimos dois canais de televisão russos no espaço europeu, achei estranho o silêncio relativamente à decisão do Presidente ucraniano de suspender 11 partidos políticos por serem (simplificando) pró-russos. Um desses partidos tem uma representação de 44 deputados no Parlamento ucraniano (em 450 deputados). Além disso, os canais de televisão ucranianos vão ser agregados numa única plataforma para se realizar uma “política de informação unificada”. Não se ignora que a Ucrânia está em guerra, e que nessas circunstâncias se podem aceitar a restrição ou até a suspensão do exercício de certos direitos fundamentais (serve de exemplo o art. 15 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos). Não se ignora, depois, que está em vigor a lei marcial. Mas, nem uma dúvida, nem uma pergunta, nem uma hesitação? Estarmos unidos em torno da causa ucraniana é fantástico. Seria triste que déssemos por nós enquadrados numa unicidade que, como alguns terão ainda presente, nem no plano sindical aceitámos.

Há depois, no debate, algo que não se pode considerar uma surpresa, mas uma confirmação. Consiste ela na explicação de tudo o que aconteça neste mundo em obediência à dicotomia protoreligiosa entre democracias liberais e democracias iliberais. Ou, ainda melhor, entre liberais e iliberais, para não escapar nenhum ser vivo desde o gelado polo Norte até ao gélido polo Sul (inclusive). A mania é cansativa, com um piquinho doutoral, e pegou de estaca. Talvez seja, porém, de sugerir, sobre a agressão da Rússia, um slogan mais revolucionário: nem liberal nem iliberal, ilegal.

A ideia segundo a qual, de repente, estamos divididos em dois campos, e apenas dois campos, e que serão liberais todos os que se opõem a uma coisa tão óbvia como um ato grosseiro de agressão, tem dois inconvenientes (só para início de conversa). Por um lado, diminui e até enxovalha o campo liberal, pela hipersimplificação com que o define e transforma numa salada de brócolos. Depois, promove e acicata a mais binária das análises, para o que quer que seja, com os erros previsíveis. É bom que se diga: já houve regimes iliberais que foram objeto de agressões armadas. Já houve muitos agressores. Já houve democracias liberais que atacaram, ilicitamente, regimes iliberais. Ora, o mais evidente está mesmo à frente dos nossos olhos, não precisa de elucubrações dogmáticas: quem agrediu foi o agressor. Ponto final, parágrafo.

Há outra coisa que os doutrinadores do preto e branco deixam na penumbra: há muitos iliberais, e regimes iliberais ou que se assim se afirmam (sim, na União Europeia) que se puseram do lado certo nesta questão, sejam quais tenham sido as respetivas motivações. Passaram a liberais?

Coincide esta observação com outra, mais ou menos encarreirada. É provável que, com marca da nossa formação judaico-cristã, continuem muitos a olhar para os conflitos armados de forma excessivamente simplificada. Ora, os casos como o da Ucrânia são a exceção, não a regra. E são exceção porque, da forma mais antiga possível, Vladimir Putin lançou as suas forças contra aquele território, prosseguindo objetivos também eles entendíveis (e rejeitáveis) por qualquer um. Quase nunca é assim, no entanto, e várias vezes nas últimas décadas esbarramos contra paredes. De facto, nos nossos dias, não só os conflitos propriamente ditos são de muito maior complexidade, porque envolvem um número crescente de variáveis, como é cada vez mais comum que, das duas ou mais partes envolvidas, todas sejam más, todas prossigam objetivos inconfessáveis, todas desprezem a nossa mundividência e muitas queiram, a prazo, virar-se contra nós.

Não vou falar do Iraque. Não, afinal vou. Mas não é do Iraque em 2003, é de um Iraque anterior. Aquele que, a 22 de setembro de 1980, lançou uma invasão em larga escala contra o Irão, que já nos parecia diabólico desde a revolução islâmica de finais de 1979. Saddam Hussein tinha acabado de assumir o poder, embora já o detivesse de facto há alguns anos. Era o nosso BFF, depois deixou de ser e, depois ainda, passou a inimigo figadal. Bom, o que importa é que a guerra com o Irão só terminou em 1988, causou um milhão de mortos e destruiu os dois países. Qual dos lados era o bom? Apoiámos, e muito, Saddam Hussein. Na altura, era bom? Quem fosse contra ele, era mau?

As consequências económicas são um dos resultados maus da guerra, e só serão surpresa se forem ainda piores do que aquilo para que nos estamos a preparar.

O simples facto do conflito, perto, ou relativamente perto do nosso território, seria suficiente para a perturbação dos mercados, nomeadamente, dos financeiros, que imediatamente antecipam isto e aquilo e extrapolam para se adaptarem à nova realidade. Sabendo-se como cada um dos contendores é um dos celeiros do Mundo, é natural que, por essas bandas, os preços possam disparar. Ao adotarmos contramedidas muito robustas, queremos atingir a Rússia e aqueles que, nela, mexem os cordelinhos; mas aceitamos que o impacto se vai refletir em nós. Como explica Josep Carbonnel, rapidamente poderemos estar a falar mais do preço dos combustíveis, da inflação e do custo de vida do que daquilo que se passa na Ucrânia. Será que a solidariedade acaba no porta-moedas?

Uma última palavra sobre Madeleine Albright, nascida Marie Jana Korbel. Veio a este mundo em Praga, em 1937, filha de um diplomata checoslovaco de origem judaica. Chegam os nazis em 1939, foge com a família para Londres. Ali viveram até depois da guerra, regressando, então, à Checoslováquia. Tinham saído os nazis, veio o domínio da União Soviética. Voltam a fazer as malas e a desandar dali para fora em 1948, desta vez, para os Estados Unidos. Quarenta e nove anos depois, em 1997, Marie Jana Korbel, a.k.a. Madeleine Albright, assumia o cargo de Secretária de Estado dos Estados Unidos. Morreu ontem, aos 84 anos.

Não lhe farei o obituário, nem pensar. Muito mais importante é aprendermos com a sua história de vida, prodigiosa, que se confunde com a da nossa Europa, e registarmos como marcou tantas outras vidas. Deixem-me acreditar que, durante este último mês, pode ter deixado a Ucrânia, fugindo do agressor russo, mais uma Marie Jana Korbel.

 

O artigo de Josep Carbonnel, “A guerra e a nossa passividade” (em catalão), pode ser consultado aqui: https://catalunyaplural.cat/ca/la-guerra-i-la-nostra-passivitat/

De Madeleine Albright, sugiro duas obras. A primeira, as suas memórias, “Madam Secretary: A Memoir”, Miramax, 2003. Muito mais recentemente, “Fascism: A Warning”, Harper, 2018.

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