“Putin está a jogar no altar da história.” Ensaio de Paulo Rangel, que lista o que se seguirá se a invasão da Ucrânia tiver sucesso

3 mar 2022, 20:00
Foto de arquivo: Putin nas comemorações da vitória na Segunda Guerra Mundial, na Praça Vermelha, em Moscovo (Reuters)

"Se a nossa firmeza não detiver Putin, nada o parará". Paulo Rangel explica em artigo para a CNN Portugal as possíveis consequências do projecto e da "ambição desmedida" de um homem que quer entrar na História da Rússia. E ir além da Ucrânia

Guerra fria, guerra quente: a história como presente

1. Não é a primeira vez que vivo – melhor, que muitos de nós vivemos – alguns daqueles dias que abalam o mundo. Enquanto as sirenes tocam, os canhões ecoam, as pessoas (soldados ou civis) tombam, as bombas destroem, os refugiados se amontoam, as cimeiras se desdobram e as ameaças progridem, o estável mundo instável que conhecíamos desaba diante de nós. A vertigem e a voragem das notícias – verdadeiras, falsas ou imaginadas – toma conta da realidade. O tempo acelera à pressão dos batimentos cardíacos. A história despe-se diante de todos nós, sem pudor e à vista desarmada. Os dias que abalam o mundo são aqueles em que a história não é passado nem ciência; são estes em que a história é presente e é experiência.

2. Nem que por um implausível milagre, tudo agora corresse bem, já nada deterá a formação de uma nova ordem, de uma nova era. Para a Europa – para a União Europeia em particular – chegou a vez de passar da simples geoeconomia à velha geopolítica. De um dia para o outro, o ímpeto belicoso de Putin fez mais pela ressurreição da NATO e pela integração europeia do que dezenas de anos de intermináveis cimeiras.

Foi isso que a Alemanha interiorizou e sinalizou, quando, no domingo passado, terminando definitivamente com a capitis diminutio vinda da II Guerra Mundial, decidiu rearmar-se. Rearmamento que faz, abençoada pela França, pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos, que podem não ter tido exacta consciência desta mudança coperniciana. De ora em diante, a Alemanha será uma potência militar igual a todas as outras e isso, nas águas revoltas das marés europeias, não deve ser tido como um facto menor. Foi isso também que a Suíça compreendeu e assinalou quando, saindo da sua genética neutralidade e da sua asséptica opacidade financeira, decretou sanções económicas contra a Rússia (embora com um curto intervalo suficiente para que os interesses russos, públicos ou privados, pudessem acautelar-se). O mesmo pode dizer-se das neutralidades militares da Suécia e da Finlândia, que, valha a verdade, já estavam há duas décadas em degenerescência e sofriam há muito o bullying russo (aéreo ou submarino). Mais surpreendente é o voto favorável da Sérvia – aliada tradicional e incondicional da Rússia – na Assembleia Geral da ONU, depois de ter recusado alinhar na frente europeia das sanções. Este tocar a reunir das grandes, médias e pequena potências europeias – para usar uma muito apropriada linguagem oitocentista – é um prenúncio dessa nova ordem que a Europa vai querer construir. E já agora, fora do contexto europeu, são absolutamente surpreendentes, a ponto de merecer uma análise profunda, as abstenções de Cuba, da Venezuela e da Nicarágua, dada a proximidade dos governos destes países com as autoridades de Moscovo. Algo se passou por aquelas paragens – será o braço longo da China? – que justifica um seguimento cuidado.

3. Nem todos se terão dado conta, mas a determinação das lideranças europeias foi também marcada e influenciada por um forte impulso democrático. As opiniões públicas, nas ruas, nos media e nas redes, forçaram os seus governantes a adoptarem uma posição forte e dura – para não dizer fortíssima e duríssima – contra Putin e a Federação Russa. E, do mesmo passo, uma posição de apoio incondicional, em várias frentes, à Ucrânia e aos seus dirigentes. O papel desta “pressão democrática” – tipicamente feita de baixo para cima – fica bem visível na evolução do leque e da tipologia de sanções decretadas pela União Europeia. Apercebendo-se da insatisfação da opinião pública com a primeira vaga de sanções, as instituições europeias e os governos nacionais dedicaram o fim de semana a reforçar essas sanções. Esse clamor público, que é também uma expressão clara de respaldo e de apoio popular, permitiu aos líderes europeus tomar medidas que, a prazo, terão um efeito impopular de ricochete ou boomerang.

4. A questão por ora, no entanto, não é ainda a da nova era ou nova ordem, mas antes a do desenvolvimento imediato da guerra. Ao fim de oito dias, muitos se têm espantado com a capacidade de resistência das forças ucranianas diante de uma máquina militar russa muito mais poderosa. E têm razão para se espantar e, em conformidade, para louvar o estoicismo e a determinação do exército e do povo da Ucrânia. Mas isso em nada nos deve impedir de temer o pior para os próximos dias. Por um lado, porque é já visível e é expectável que haja um endurecimento da acções russas, em quantidade e em violência. Por outro, porque a Rússia, mesmo levando mais tempo do que o que inicialmente previra, pode vir a ter um controlo efectivo de grande parte do território. Se o conseguir ao fim de 15 ou 20 dias de combates, aquilo que hoje é visto como um revés, será daqui a uns meses encarado como um feito assinalável: toda a gente dirá que conseguiu dominar a Ucrânia em 15 ou 20 dias. Estamos a seguir demasiado perto e ao minuto o desenrolar do conflito para podermos ter uma visão em perspectiva. Só o tempo e a distância nos deixarão compreender o exacto alcance desta vitória moral, para já momentânea. Um ponto deve afigurar-se evidente para todos: não há razões para estar optimista.

5. Não há razões para optimismo por todos os sinais que até aqui recebemos: intransigência total, disposição para mais violência, ameaças aos países vizinhos, chantagem nuclear. Mas também pelo projecto e pelo perfil do ditador russo, senhor de um longevo poder absoluto e convictamente herdeiro de uma mitologia nacionalista. Havemos de voltar a Putin, ao seu perfil e à sua biografia. Mas fiquemos pelo seu projecto. O projecto de Putin não é apenas o de conquistar a Ucrânia e de a reintegrar na grande Rússia, com as três estrelas do eslavismo de primeiro escalão (Rússia, Ucrânia e Bielorrússia). Como não era apenas o de tomar a Abcásia ou a Ossétia do Sul ou a Crimeia ou a Transnístria ou o Donbass. O seu projecto é o de retomar a grandeza da Rússia e do seu império, fazendo dele um dos grandes da história, à guisa de um Ivan, o Terrível, ou de um Pedro, o Grande. Se a nossa firmeza não o detiver, nada o parará. Dentro de dias, muito previsivelmente – são esses os dados fornecidos pela intelligence – sofreremos uma vaga de ciberataques. Se a Ucrânia for tomada com razoável sucesso, vai seguir-se a Moldávia, com o pretexto da protecção das populações Transnístria. O bullying à Finlândia e à Suécia irá intensificar-se; as ameaças aos países bálticos, também por interposta Bielorrússia, seguirão o seu caminho. Putin não joga apenas no tabuleiro do poder; joga também no altar da história. Não lhe basta o poder imediato. E isso torna a sua ambição desmedida; em muitos casos, como se viu, além daquilo que muitos acreditam ser a racionalidade ocidental.

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