Intermezzo ucraniano, ensaio breve

21 mar 2022, 07:30

Introdução

Confirma-se amplamente, como se ainda fosse preciso, de que forma intensa a agressão russa em curso na Ucrânia feriu e fere a defesa e segurança europeias. Também, qualquer que seja a solução do conflito ucraniano, esta “guerra repugnante” (como disse o Papa Francisco) ficou muito alterada a relação de forças a ocidente.

Por muito que principalmente se fale neste processo (e com pertinência) de NATO e União Europeia, trata-se de organizações internacionais, não de Estados. Esta é uma verdade do Senhor de la Palice mas, atenção, porque o pobre do indivíduo nunca contribuiu para esta imortalidade de benefício duvidoso.

O argumento de mais peso para confortar a advertência anterior é que, como qualquer organização internacional, mais ou menos integrada, tanto a NATO como a União refletem relações de poder e estratégias próprias de cada um dos seus membros – ainda que, sobretudo no caso da segunda, se possa falar, em sentido mais efetivo, numa vontade “própria”.

Não existe uma “senhora” NATO, desconheço uma “senhora” UE, cada uma delas tem personalidade jurídica internacional, mas cada uma delas, sobretudo em situações de exceção como aquela que vivemos, acompanha, ora que remédio, aquilo que os Estados desejam. Um exemplo? A forma como o Tratado da UE, com uma elasticidade jurídica de rara beleza, passou a dar cobertura “indiscutível” à decisão (excelente) de financiar o esforço de guerra da Ucrânia. Porquê, perguntará o jurista? Porque sim.

Não se pense, no entanto, que como organizações, uma e outra contam pouco. Contam, mas por estes dias só se perceberão (a isso se voltará mais abaixo) depois de olhar para alguns dos Estados-Membros de uma e de outra.

Primeiros balanços do “nosso” lado: eis a Alemanha (e os outros)

A influência de cada um dos Estados-membros depende de muitas variáveis, sendo uma delas, das mais importantes, a opção de usar todas as capacidades de que dispõe (ou não).

No continente europeu, o caso de mais destaque será o da Alemanha.

Num tempo muito breve, inconcebível há 100 dias, deverá acumular o top 3 perante os seus compagnons de route: poder económico, político e militar. Inútil será insistir como, além disso, daqui resultam outras consequências de grande amplitude. A capacidade militar, hardcore power dos mais típicos, reflete-se no poder económico e político alemão, amplificando-os, tornando-os mais visíveis e respeitados. Mas, por outro lado, importará modificações significativas na relação de forças interna, tanto da NATO como, sobretudo, da União Europeia. Evidentemente, ninguém imaginará que se faz entrar os Estados Unidos numa tal contabilidade – esses são e vão continuar a ser de outra Liga (aliás, uma liga peculiar, onde jogam sozinhos, é verdade que de vez em quando contra si mesmos).

Feita a clarificação, quem “perde” com este protagonismo alemão?

Na NATO, perde em primeiro lugar o Reino Unido, porque, como na autoestrada, olhava em frente e via os Estados Unidos e, por estes dias, sentir-se-á ultrapassado pela direita pela viatura germânica e, a seguir, já só verá o brilho de faróis traseiros ao longe, a afastarem-se. Um país que, como quem apenas pede um digestivo a seguir ao almoço, anuncia um aumento do orçamento da defesa tão espantoso como o fez a Alemanha demonstra, como se não o soubéssemos já, que a Alemanha só não estava neste plano porque não queria, e enquanto não queria. Foi por isso o medo (mais do que compreensível) e um sentimento de engano que motivaram a Alemanha: e ambos movem montanhas

Na União Europeia, entre os “mais grandes”, perde e ganha a França…e perde outra vez o Reino Unido. O Reino Unido do Brexit? É verdade, deixou o clube mesmo antes de este começar a ganhar jogos outra vez; ou, dirão as mentes de mais insolência, o clube voltou a ganhar jogos quando o Reino Unido exigiu ser transferido. Pelas últimas notícias, ainda está à procura de clube.

A França, perde e ganha. “Perde” sempre alguma coisa, porque na União Europeia deixará a prazo de ser o Estado com mais capacidade militar, mas como consolo continuará a ser a única potência nuclear “europeia”, e isso não muda. Mas ganha, porque é de longe quem, na UE, intervém em mais teatros de operações, e a experiência ainda conta; para além de a dimensão europeia da “nossa” defesa vai sair reforçada – em sentido mais estrito, e sem prejudicar (seria um erro daqueles) o vínculo transatlântico. Ora, se sair reforçada, mais se robustece a abordagem que olha como fundamental o desenvolvimento de uma indústria europeia de defesa (comum), e são de prever vários “tratados” de Tordesilhas nesta matéria entre vários dos Estados da UE. À cabeça deste colossal negócio, colocaria a Alemanha e a França, numa segunda linha, Espanha, Itália e Países Baixos, logo a seguir, Dinamarca, Polónia, Áustria e, espera-se, também Portugal.

A Alemanha não age à bruta, de forma irrefletida. Sabendo muito bem com quantos paus se faz uma canoa, o primeiro passo do seu investimento em capacidades de defesa será uma aquisição de muito importante impacto, até psicológico, mas sobretudo político. É esta a leitura única que se extrai do anúncio da compra de F-35 americanos, para, então com estas contas saldadas, começar a olhar para o seu próprio mercado. Com calma, que Berlim e Pavia não se fizeram num dia.

Também a Polónia “ganha” com as movimentações de placas tectónicas a que estamos a assistir, e cuja intensidade é ainda muito difícil delinear. Ganha muito, porque a NATO vai consolidar nos próximos anos o chamado flanco leste, muito principalmente virado contra a ameaça russa ou a perceção futura que dessa ameaça se vier a ter – e essa é uma marca determinante na política externa polaca. Ganha a Polónia, a seguir, porque tão cedo não se falará de questões ligadas ao Estado de Direito e outras coisas “menores”. Vai acabar por se voltar ao assunto, porque esta não é apenas uma daquelas matérias que se discutem numa tertúlia entre amigos. Mas, por enquanto, enquanto o pau vai e vem, folgam as costas polacas (e não só). E a Polónia também ganha, em terceiro lugar, porque, aconteça o que acontecer, a Ucrânia será como aquelas pessoas com torcicolo e o pescoço bloqueado: só vai conseguir olhar para a esquerda. E aí, quem vê? Sim, claro. A Polónia.

E “esta” Rússia? O que quer que aconteça, perdeu

Com a invasão da Ucrânia, a Rússia alcançou várias “proezas”.

Em primeiro lugar, deu a conhecer várias coisas más. Este regime, como está (não falo da Rússia em abstrato, evidentemente) não é confiável. Ora, esse custo reputacional é muito elevado, e propaga-se muito para além das questões militares em sentido estrito. Mas outra coisa má (para os interesses do regime) tem sobressaído: ou fomos “nós”, o ocidente, a avaliarmos muito mal a capacidade militar convencional russa, sobrestimando-a de forma incompetente ou, pior, deliberada; ou foi o regime a tomar os seus desejos por realidades antes de iniciar a campanha ucraniana, considerando-se invencível, e foi gravemente incompetente; ou fomos todos incompetentes (espero que a primeira e terceira hipótese não se apliquem).

Certo é que a campanha militar não está a ser um passeio na planície. Isso é cada vez mais óbvio para qualquer observador imparcial (desse ponto de vista, claro), e por muitos mísseis hipersónicos que venham a ser utilizados.

Diria mesmo, de forma atrevida, já ser inevitável que a Rússia perca muito, económica e politicamente. A Rússia que conhecemos, fique ou não Vladimir Putin, está a desaparecer à frente dos nossos olhos e vai transmudar-se noutra coisa, bastante menos forte e intimidatória. E é cada vez mais possível que “perca” no plano militar, porque não vejo como consiga ganhar. Nestes termos, ou aceita a possibilidade de um conflito infindável, com cada uma das partes fechada na sua trincheira, ou a cada dia que passa as negociações se tornarão mais penosas e difíceis para a parte russa, bloqueada na sua surpresa.

Não creio depois que o resultado em Mariupol, que sofre como as urbes que mais sofreram, possa ser determinante para este efeito. Agora, a luta faz-se, literalmente, nas ruas, como se pensava apenas acontecer em terras “selvagens”, como em Alepo ou nas primeira e segunda batalhas de Faluja – mas, mesmo que “percam”, os ucranianos já ganharam.

Se a Rússia diz serem alvos legítimos as operações de entrega de armamento ou munições à Ucrânia (é desagradável, mas são) é porque bem percebe que a Ucrânia estará cada vez mais municiada, e a Rússia com cada vez menos capacidade de reposição.

Poucos duvidam hoje, certamente, da eficácia da máquina de comunicação e propaganda ucranianas, ancorada e bem nas capacidades de comunicação fora de norma do seu Presidente. No entanto, cada vez mais esse jogo de sombras tende a tornar-se próximo da realidade, como se a propaganda tivesse antecipado o que estava para vir e, passo a passo, mais fosse igual ao que é.

Este já não é o jogo que começou 24 de fevereiro. Uma das partes no conflito parece rejuvenescida e vigorosa, a outra mais cansada, como se cada movimento lhe custasse. Ora, ainda nem ao intervalo chegámos…

Há algo, ainda assim, que pode perturbar este tipo de contas. A Rússia está tão embrenhada no conflito que lembra o dilema dos Estados Unidos no Vietname. O racional seria decidir parar, correu mal, é sair enquanto ainda temos algumas penas. Só que, é tão grande o clamor quanto à “má figura” militar e à ausência de resultados (que ninguém ou quase antecipou) que os decisores russos estão encostados à parede e não podem deixar de meter-se mais, e mais, no conflito. Segundo esta leitura, um pouco mais pessimista, a Rússia aceitará o cessar-fogo quando puder conseguir algo mais do que a simples retirada.

Esta é uma variável que, com honestidade, não se deve excluir. Nesta bifurcação, os mais exaltados sonham que a queda da Rússia será estrondosa, como a da Babilónia: “Olhai: chega a cavalaria, os cavaleiros vêm dois a dois / e anunciam: ‘Caiu, caiu a Babilónia!’ / As estátuas dos seus deuses / encontram-se em pedaços, por / terra” (Isaías, 21, 9). Desenganem-se, não vai acontecer.

Agora, a China (e alguns outros)

Em período de interlúdio, vários consideram que a China não sabe bem o que fazer, constrangida, até incomodada, com o seu amigo russo viciado em bullying. Até se lê que a liderança chinesa não tem mundo suficiente para aproveitar o potencial do País como potência global. Francamente, não sei, mas todas estas análises roçam o paternalismo e uma pontinha de comiseração complacente. Mas, não sendo sinólogo, ficar-me-ei por algo perfunctório.

No mais imediato, arriscaria que a China ganhará sempre em dois tabuleiros (pelo menos). Primeiro, nas próximas longas décadas, a Rússia dificilmente poderá constituir uma ameaça no que quer que seja para a China. Bem sei, as nossas democracias não têm essa como a sua unidade de tempo (com o cérebro formatado para 4 anos ou 1460 dias). Mas esse é o tempo longo, paciente, da China.

Depois, à China bastará esperar ou, quando muito, fazer de vez em quando como se estivesse a mexer. Porque a Rússia, vendo os mercados a fecharem-se todos como num dia feriado, irá depender bastante mais, pelo menos no curto e médio prazo, de quem continuar a aplicar a máxima “trabalho é trabalho, conhaque é conhaque”. A China aplicá-la-á, a Índia já o disse, talvez o Brasil a aplique por enquanto; e penso que a África do Sul não deixará de o fazer. Interessante, até rima com BRICS, aquela coisa que muitos diziam ser de um tempo passado.

Finalmente, se a China não deixar a Rússia sem resguardo, ou seja, se a China lançar a toalha para o meio do ringue e disser “já chega!” (como já parece estar a acontecer), nem a Rússia esquecerá, nem muitos outros esquecerão. Aí, sem declarações de amor ou fidelidade, a China estará a consolidar o seu grupo de “fãs” silencioso. Sempre com calma, sempre com tempo. Talvez esta possibilidade nos devesse fazer refletir, uma vez restabelecida a integridade territorial da Ucrânia e protegida a sua independência política e começada a sua reconstrução humana e material. Queremos “matar” a Rússia como “matámos” o Iraque entre 1991 e 2003? É essa a nossa estratégia?

“Azar” da Ucrânia por ter um vizinho como a Rússia, mas talvez a “sorte” grande de Taiwan. Um efeito de imitação chinês, não vejo como possa acontecer no imediato. Outro galo cantaria talvez, se a Rússia tivesse levado a sua avante como em 2014; só que não levou, e causou escândalo. Desta vez, o mal de uns (Ucrânia) pode ser o bem de outros (Taiwan).

No Extremo Oriente, olhe-se também com atenção para o Japão e Coreia do Sul (esta, com um discurso muito corrosivo em relação à homónima do Norte). O Japão, como a Alemanha, poderá estar a fazer a sua “revolução cultural”, a preparar-se para o fim do luto militar que decretou em 1945. Os sinais têm-se manifestado, restará ver se se confirmam.

A NATO entre o “quintal” e a solução “ampla”

E agora, perguntar-se-á?

Nas linhas anteriores, foram lançadas previsões mais do que suficientes para que o juízo futuro que sobre elas venha a ser muito duro. Seja como for, o que quer que aconteça, há uma escolha perante nós, imbricada no futuro da Europa e na sua expressão funcional e contributo expectável em matéria de defesa e segurança globais.

A solução mais confortável, “local” ou de “quintal”, será mais fácil de realizar e que melhor se adapta às expectativas e consensos presentes. É, também, a que nos remete para um plano secundário (de vez) como “potência” de segurança e defesa (o que não tem, por si, conteúdo pejorativo).

À segunda hipótese, chamemos-lhe solução “ampla” ou “transregional”.

Comecemos pela NATO. Dela, esquecemo-lo muito depressa, ainda há pouco se dizia de tudo, e nunca nada de agradável (Portugal sempre a defendeu). Disse-se que era inútil, e o ex-Presidente Trump fez saber, em 2018, que estava a ponderar a saída dos EUA da Organização. O Presidente francês criticou-a, afirmando que o seu estado era comatoso.

Tudo isso é passado, o presente continua cheio de surpresas. Em comunicado de 16 de março, Trump começa assim: “As pessoas esquecem tão depressa, com a ajuda das Fake News, que fui eu que fiz com que 20 dos 28 dos países infratores da NATO começassem a pagar o dinheiro que deviam para reconstruir uma NATO decadente”. Comentários?

Mais uma vez, a ironia nestas coisas. À custa da invasão russa e da vítima Ucrânia, a NATO reencontrou a sua razão de ser principal: um adversário com provas dadas, no pior sentido. Desde o fim da Guerra Fria, não recordo cenário tão límpido.

A Rússia, “esta” Rússia, encaixa muito bem nas características “desta” NATO, construída segundo o modelo da aliança, alicerces assentes num raciocínio de base algo binário (nós contra o adversário), mas menos confortável quando se trata de enfrentar ameaças nada tradicionais, como o Daesh e a suas diferentes identidades – grupo terrorista transnacional, insurgente, putativo “Estado”, comunicador global, etc.

Enquanto o ferro se mantiver quente q.b. para ser malhado, será vigorosa a pressão política para o aumento dos orçamentos militares, sobretudo na parte referente às capacidades. Já está a acontecer, depois, a forma de resposta mais clássica para enfrentar a ameaça russa, que é também ela, para nossa surpresa, “vinho velho em odres velhos”: o reforço da dissuasão, a presença robustecida de elementos de diferentes forças armadas junto às fronteiras orientais, para deixar claro que haverá resposta coletiva em caso de ataque. Qual é a condição sine qua non? 2% do PIB.

Não se vê como pudesse ser demasiado diferente, embora se tenha de inquirir, sem maldade, de que maneira 2% do PIB conseguiu alcandorar-se à qualidade de número cabalístico, indissociável da Santíssima Trindade da Defesa, os famosos três C’s: Cash, Capabilities, Contributions.

Como se decompõem, porque são 2% de qualquer PIB, do pequenino e muito rico Luxemburgo à grande e bastante menos rica Bulgária? Sempre da mesma maneira. Imagine-se, agora, o mesmo Luxemburgo, cujo PIB per capita foi de 101206,75 dólares, 801% da média mundial; com um PIB de 73,26 mil milhões de dólares e uma população de menos de 650.000 habitantes. Em que capacidades poderá investir, todos os anos, quase 300 milhões de euros? E como vai alcançar, em geral, um dispêndio geral com a defesa de mais de 1400 milhões de euros, sabendo-se que terá menos de 4000 militares no ativo?

O exemplo é utilizado, e “esticado”, sem dúvida. Mas, em graus diferentes, é replicável e não significa a defesa de poupanças, mas antes de um sistema que não se fique, no essencial, por este tipo de raciocínio quantitativo; e que aceite modelar e matizar esse raciocínio com outros elementos.

Vejamos, por partes.

Trata-se de “dinheiro” que todos os anos é imperioso gastar: pelo menos, 2% do PIB a partir de 1 de janeiro de 2025. As capacidades, 20% desse valor. E quanto às contribuições, aquilo que, de forma substantiva, cada País faz pela defesa de todos (se quiserem, a nota artística)? Como se medem? Não há indicadores em que os Estados, no seu conjunto, se revejam. E é um desafio que acaba por poder ser divisivo, uma vez que, na NATO a premissa é a de que se trata de um modelo cooperativo, em que cada um faz o seu melhor.

É como se todas as ginastas descobrissem ter nota dez no concurso de barras assimétricas: a nota nunca é distintiva e aproxima-se da irrelevância. Afinal, do que se trata, apenas, é de “dinheiro”. Mais dinheiro gasto, em geral, mais dinheiro gasto em capacidades, em particular. Será suficiente? É duvidoso, porque o prémio para o fazer ou deixar de fazer é o mesmo.

Não comento o caso português, por obrigação de recato.

Porém, se olharmos para os casos francês ou espanhol, ou até italiano, estes Países, além daquilo que gastam ou não gastam em termos orçamentais, empenham as suas forças, tanto em missões da NATO, como nas da União Europeia, no Mali ou na RCA, como em missões das Nações Unidas, ou em ações ad hoc, como na Síria ou no Sahel. A saída das forças francesas do Mali, com o termo da missão Barkane devido ao ambiente político pouco respirável que ali se vivia, deixa um vazio difícil de preencher, ou que será preenchido por atores muito perigosos (o Grupo Wagner, entre outros). Perigosos para o Mali, mas perigosos para a nossa segurança e defesa, como é bom de ver.

A projeção da defesa coletiva europeia faz-se, portanto, e não vejo como se porá em dúvida a asserção, tanto no frio leste (lá para cima) como na quente África subsariana (lá em baixo).

Chegados aqui, se o modelo escolhido for o “local” ou de “quintal”, pois será esse. Os Estados europeus, muito mais do que os Estados Unidos, assumirão como dever garantirem por eles, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o essencial da segurança do flanco leste. É claro que farão outras coisas, mas ali estará o principal, de longe, do seu caderno de encargos. É mais do que o que é, é talvez menos do que poderia ser ambicionado.

Já ninguém inventa a pólvora há alguns anos.

Simplesmente, se aquele for o nosso desígnio defensivo coletivo dominante, ou quase, ganharemos de certeza a luta no “quintal”, mas deixaremos cada vez mais de ver o Mundo, por miopia irresolúvel, porque não nos apetece gastar dinheiro em óculos ou, vá lá, binóculos, ou porque é isso que livremente escolhemos do ponto de vista do alcance do nosso destino.

Nada a opor. Porém, perguntado, defenderia o modelo “amplo”.

Nada de militarismo serôdio, mas aplicação efetiva e dinâmica de uma visão a 360 graus que vá além da proclamação. Que, nomeadamente, coloque do lado de cá do Atlântico atores com vontade e capacidade de agirem de forma eficiente nas questões de segurança e defesa tão difíceis como aquelas com que lidamos desde o início do século.

A questão é funda o bastante, mas não um questionar ingrato. Nunca poderia ser isso, pelo quanto a nossa segurança é devedora da NATO (o passado também é crédito), pela notável qualificação das nossas Forças Armadas no seu seio e, porque não, pela agilidade razoável com que reagiu no presente. Além disso, mas bem se evitaria a demonstração, a NATO mostrou de que forma é mais importante. Não é tanto pelo que “faz”, curiosamente, mas bem mais pela situação em que, que o diga a Ucrânia, pode ficar quem não se alberga sob o seu teto.

E a União Europeia?

Como organização e como ator, a UE “ganhou” com a guerra na Ucrânia, e esse ganho parece ser estável. Era difícil aguentar muito mais tempo o chavão do “gigante económico e anão político” (quanto à capacidade militar, nem consta) e, com crises sucessivas que só acalmaram com o Brexit, as propostas da Comissão e as respostas dos Governos estiveram à altura. Nesta bonança, não faltarão nuvens – é sempre assim. Eis algumas perguntas: a UE vai ser sempre unha com carne com a NATO, mas reforçar a defesa europeia através da sua “autonomia estratégica” (como sempre foi defendido pela França de Emmanuel Macron)? A UE vai ser UE, mas também prosseguir, se necessário articulada com a NATO (mas também, muito, com as Nações Unidas) o tal modelo “amplo” de segurança e defesa, como se pressente pelas missões que vai desenvolvendo, nomeadamente, em África? Voltando ao dinheiro, ao vil metal, irá a UE mostrar vontade e força suficientes para associar cada vez mais os investimentos em defesa a desenvolvimento tecnológico, parcerias de benefício e uma indústria de defesa dual? Irá a UE conseguir, num plano institucional, integrar cada vez mais na sua ação externa uma dimensão de defesa?

Muitas perguntas, mas, pior do que não acertar sempre nas respostas será nem sequer tentar responder.

Em relação à NATO, a UE está muito atrás (muito mesmo) do ponto de vista do pensamento de defesa e de tudo o resto. A organização é, neste plano, amadora (mas a melhorar a cada dia que passa). No entanto, tem uma pequena vantagem. A sua esfera de ação é mais alargada, cobre quase tudo, dos direitos humanos à agricultura, passando pela concorrência. Tem um Conselho Europeu que não é nem sei quando será o que o seu nome diz, mas que já esteve muito mais longe de o ser. Sim, até os erros tremendos cometidos durante toda a crise começada em 2008 tiveram um efeito de alerta e correção de rumo. Além disso, a UE, em algumas coisas, sabe muito de mercados e da avaliação de riscos. Esta característica, assim como a idade tão longeva dos atores europeus, pode ajudar, neste contexto dramático e com a guerra à nossa porta.

Está em jogo o seguinte, com a devida simplificação da alternativa: NATO, UE e respetivos Estados-Membros europeus concentrados só ou quase na ameaça russa, ou concentrados na ameaça russa sem deixarem de olhar à volta e a quererem ter uma palavra a dizer noutras paragens (sei lá, no Pacífico). A segunda é muito mais interessante, creio, até porque a hiperbolização do risco russo tenderá a desencadear uma escalada desnecessária. É que a guerra na Ucrânia está a expor tanto a fome agressiva desta Rússia como, por outro lado, as suas limitações e incapacidades militares. Até nesse ponto é nosso dever estarmos gratos à vontade de resistir dos ucranianos, aprendemos todos os dias.

E por falar na Ucrânia

É muito difícil avaliar o futuro da Ucrânia depois da agressão russa. Até este sábado, a ONU confirmou 902 mortos e 1459 feridos entre os civis. Devem ser números bastante piores, mas bastante menos do que alguns que têm circulado. Por outro lado, as forças russas estarão a seguir a política da terra queimada, com Mariupol à cabeça. Depois, há que falar dos refugiados e dos deslocados internos, milhões como não se viam há décadas na Europa (e só a partir de um território). Por outro lado, se a Ucrânia não era rica antes desta guerra, bem pior ficará, com a destruição muito significativa das suas infraestruturas e a destruição mais em geral levada a cabo pela Rússia. Aqui, mais uma divisão vai acentuar-se. Os ataques e destruição da Rússia estão, pelo menos por enquanto, muito mais concertados na margem do Mar Negro, no sul e leste do País. A linha vertical que passa por Kiev poderá ser também a que divide mais de menos futuro.

A Ucrânia ainda vai sofrer muito, e vai sofrer mesmo depois do cessar-fogo e de um acordo que possa aceitar com quem a atacou. No entanto, pagou com o preço da sua coragem e com o preço do sangue o direito, ou pelo menos, a expectativa, de vir a ser um dos grandes “ganhadores” deste processo, independentemente do seu estatuto mais ou menos “neutralizado”. Nem sequer estou a referir-me, no imediato, à adesão à União Europeia (porque, goste-se ou não, vai demorar muito), mas aos investimentos que ali vão ser feitos, à ajuda à reconstrução, à alocação daquilo que tenha sido capturado, como riqueza, ao lado russo. Se esse mínimo não for feito, todo este sacrifício terá sido inútil. E ainda teremos que ouvir mais vezes, a título de penitência bem merecida, o Primeiro-Ministro britânico a comparar a coragem dos ucranianos sob tempestades de fogo e violência à dos seus eleitores que votaram a favor do Brexit.

Notas conclusivas, sugestões e algumas rimas (à espera do segundo acto)

Falei há dias de Arthur Rimbaud, da sua ambiguidade humana tão bem descrita por Albert Camus. Aqui, com mortes na Ucrânia contadas todos os dias, proponho a tradução de um dos poemas mais conhecidos de Rimbaud, “Le dormeur du val”. Proposta no seu sentido mais literal, pede-se por isso clemência, a intenção foi boa. E, como última sugestão, leia-se enquanto se ouve a “Lacrimosa” do Requiem de Verdi, dirigida por Herbert von Karajan, maestro de génio que se inscreveu duas vezes no partido nazi. Um poeta traficante de armas, um maestro que aproveitou com o horror. Coisas, coincidências curiosas, para acompanhar este interlúdio ucraniano. 

O adormecido do vale

É um recanto de verdura onde canta um ribeiro

Que agarra furiosamente às ervas os seus farrapos

De prata; onde o Sol da montanha orgulhosa

Brilha; é um pequeno vale que espuma com raios.

 

Um soldado jovem, a boca aberta, cabeça descoberta

E a nuca banhada no fresco agrião azul,

Dorme; está estendido na erva, sob as nuvens,

Pálido no seu leito verde em que a luz chove.

 

Os pés pousados nos gladíolos, dorme. Sorri como

Sorriria uma criança doente, dorme uma sesta:

Natureza, embala-o com carinho: tem frio.

 

Os perfumes não fazem fremir a sua narina;

Dorme ao sol, a mão pousada sobre o peito,

Tranquilo. Tem dois orifícios rubros do lado direito.

 

Arthur Rimbaud

Quase a acabar, a escolha do título tem um sentido. Na ópera clássica, entre actos, surgia o “Intermezzo”, que mantinha a assistência saciada, afagando-lhe o palato para o que a seguir viria. Fosse uma coisa gastronómica, seria o “trou normand”, próprio de refeições longas e fartas, com um intervalo em que aos comensais se serve um sorvete de maçã (ou de limão), regado com calvados, uma aguardente de maçã.

Os gostos não se discutem, claro. Hoje, por exemplo, muitos trocam o calvados pela vodca. Vodca? Disse vodca? Por favor, leia-se o que está a seguir.

[Pausa: Agora que as “polícias” do aceitável andam meio fora de si, a vodca, só se for ucraniana, com chancela oficial e papel azul de vinte e cinco linhas. E mais ainda quando se conheceu a decisão da Space Foundation de “cancelar” Youri Gagarin, o primeiro a ir ao espaço, que soviético nasceu e soviético morreu aos 34 anos, há mais de meio século. Cheirava a russo, tinha ar de russo. A seguir na lista, deve estar Laika, a cadelita que, alguns anos antes de Gagarin, foi o primeiro animal a fazer a órbita terrestre. Metida quisesse ou não no Sputnik 2, porque ia morrer, como morreu pouco depois da descolagem (soube-se muitas décadas depois). Que se registe a denúncia, o pobre bicho era um concentrado de defeitos: vivia na rua, tinha sangue russo, oriental e não ocidental, nunca ouviu falar de democracia liberal e muito menos iliberal e deu a sua vida para a grandeza da União Soviética (e da Rússia, com certeza). Como se não pudesse ser pior, vários países do antigo bloco de leste lançaram selos em sua homenagem, fizeram-se livros para crianças, foi a pequena heroína de milhões. Não se encontrará exemplo que mais justifique o cancelamento.]

 

Assim como o “trou normand” ganhou fama e proveito (por razões que facilmente se alcançam), o mesmo aconteceu com os “Intermezzi”, alguns dos quais atravessaram incólumes o tempo. É o caso, que aqui sugiro, do muito conhecido Intermezzo da “Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni: 

 

A exposição temporária “Vozes”, de Muhammed Muheisen (duas vezes vencedor do Prémio Pulitzer) pode ser vista (mas só até 27 de março!) no Centro Português de Fotografia, no Porto. Ali se retratam vítimas da guerra, principalmente dos conflitos sírio e afegão. Nessas vítimas, como sempre, muitas, demasiadas crianças. Não são ucranianas, mas numa guerra, aliás nunca, as crianças não têm género, raça, etnia, religião ou cultura: são apenas crianças. Além de uma beleza de difícil qualificação, impressiona o seu olhar. Vejam AQUI.

 

Para a versão na língua original do poema “Le dormeur du val”, ver AQUI:

Finalmente, o Requiem de Verdi e a sua “Lacrimosa”: 


 

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