“Ele decidiu destruir o mundo inteiro”. Seis vozes falam sobre a invasão de Putin à Ucrânia

CNN
3 mar 2022, 09:00
Vladimir Putin discursa à nação sobre tensão com a Ucrânia (Alexei Nikolsky via AP)

Em Londres, uma irmã lembra-se do irmão que morreu na linha da frente na Ucrânia. Em Glasgow, um camionista recebe um telefonema da esposa em Lviv: a guerra acaba de chegar à sua pátria. Em Nova Iorque, um poeta que fugiu de Odessa contempla a sua língua materna. E, em Kiev, um jornalista abriga-se para ficar uma boa temporada.

Para a diáspora ucraniana, a guerra de Putin tem um eco profundo. Pedimos a ucranianos expatriados e especialistas políticos de todo o mundo para darem a sua opinião. As perspetivas aqui expostas são dos próprios.

A irmã que perdeu um irmão na linha da frente

Olesya Khromeychuk é historiadora e escritora. É Direitora do Ukrainian Institute London  e leccionou sobre a história da Europa Central e de Leste em várias universidades britânicas. Khromeychuk é autora de "A Loss. The Story of a Dead Soldier Told by His Sister."

Quando o meu irmão mais velho, Volodymyr, se alistou nas forças armadas ucranianas, explicou-me a sua decisão: "Pequenita, não percebes que é uma guerra europeia? Aconteceu, por acaso, ter começado no leste da Ucrânia.” Ele foi morto por estilhaços em 2017 na frente de combate na região de Luhansk. Estava a lutar contra tropas russas que fingiam não estar lá.

Já não era preciso fingirem. O presidente russo ordenou o ataque a toda a Ucrânia, contra militares, mas também contra civis, incluindo hospitais e ambulâncias.

Os meus amigos civis – escritores, académicos, artistas – ficaram na Ucrânia para defenderem as suas cidades. Um académico de literatura vitoriana inglesa está a abrigar deslocados internos e a coordenar a enchente de pedidos da imprensa. Um realizador de cinema e um historiador alistaram-se na força de defesa territorial que está a crescer. Uma professora está a dar uma palestra online sobre cultura ucraniana a partir de Kiev enquanto fica atenta às sirenes dos raides aéreas na sua janela.

Eu sou historiadora. Tenho noção de que estamos a viver um momento que fará parte de todos os compêndios de história europeia. Este é o momento em que cada um de nós tem de decidir o lugar que quer ter nessa história. Estamos com a Ucrânia.

O jovem pai que conduz até casa para combater

Oleksandr Bilyy, com 39 anos, é um camionista ucraniano com dois filhos que falou com a CNN quando ia a atravessar a fronteira entre e Polónia e a Ucrânia. As suas palavras foram ligeiramente editadas para fins de clareza.

Na quinta-feira, acordei em Glasgow (Escócia) às 6 horas, com a minha mulher a ligar-me para dizer que os russos estavam a bombardear a nossa capital e o nosso país. E pronto. Levei o camião até Londres, peguei no meu carro e fiz-me à estrada até à Polónia – cheguei lá no sábado.

A minha família mora em Lviv. Tenho lá dois filhos. Sou camionista, trabalho por todo o lado.

A Ucrânia é a minha pátria e, se os ucranianos não lutarem pela sua pátria, quem o fará? Não queremos viver à maneira russa, queremos viver à nossa maneira.

Neste momento, não sinto medo algum. Talvez seja a adrenalina. Mas sinto-me muito zangado. Não me sentiria bem se ficasse em casa a ver televisão enquanto os russos tentam matar o meu povo. Não seria capaz de ver. Sinto-me muito melhor agora que vou a caminho.

Tenho quatro homens no carro. Trouxe-os da fronteira com a Polónia. São todos ucranianos que vivem noutros sítios, mas vão voltar para lutar contra os russos. Vêm de Nova Jérsia, República Checa, Ilhas Maurícias e Polónia.

Acabámos de chegar à Ucrânia.

O poeta de Odessa sobre a língua dos opressores

Ilya Kaminsky nasceu em Odessa, na Ucrânia, e mudou-se para os EUA em 1993, quando a sua família recebeu asilo. Kaminsky é autor de "Dancing in Odessa" e "Deaf Republic". Ele vive em Atlanta.

Enquanto amigos da Ucrânia escrevem sobre cocktails molotov com os filhos, lembro-me dos versos de um dos mais famosos poetas vivos de Odessa, Boris Khersonsky:

As pessoas andam com explosivos pela cidade

Em pequenos saquinhos de compra e malinhas.

Putin afirma que os falantes de russo na Ucrânia têm de ser protegidos, por isso, envia tropas. Eu venho de Odessa, uma cidade ucraniana onde a maioria fala russo. Na Ilha das Serpentes, ao largo da costa de Odessa, a Marinha de Putin bombardeou 13 falantes de russo. É o tipo de proteção que o Sr. Putin fornece.

A língua russa precisa de proteção na Ucrânia? Desde o início desta guerra em 2014, muitos poetas falantes de russo escolheram aliar-se aos seus vizinhos falantes de ucraniano. Recebi este e-mail de um amigo:

"Desde 1996, eu, Boris Khersonsky, leciono em russo na Universidade Nacional em Odessa. Nunca fui repreendido por ‘ignorar’ a língua oficial da Ucrânia. Sou um poeta de língua russa, os meus livros foram publicados em Moscovo e São Petersburgo. Ninguém me repreendeu por escrever poesia em russo.

Em solidariedade com a Ucrânia, a partir de amanhã, escreverei poesia em ucraniano."

Imaginem bem: um dos maiores poetas da Rússia bateu o pé e recusou a sua própria língua. Foi isso que o Sr. Putin conseguiu.

A jornalista de Kiev numa batalha de David contra Golias

Nataliya Gumenyuk é uma jornalista ucraniana especializada em reportagens em zonas de conflito. É fundadora do  Public Interest Journalism Lab  e autora de "Lost Island: Tales from the Occupied Crimea".

Quando escrevo isto, passajam já mais de 120 horas desde que o exército ucraniano começou a enfrentar os russos numa batalha imparável em todas as frentes.

Os serviços de informações dos EUA expressaram a preocupação de que a capital ucraniana pode cair  dentro de algumas horas ou dentro de alguns dias. O facto de as tropas russas não terem conseguido tomar o controlo total de qualquer grande cidade significará que os russos são mais fracos do que o esperado ou que os ucranianos lutam bem? Ambos, parcialmente. Numa sondagem recente do website noticioso local Pravda, 70% dos ucranianos  acreditam que a Ucrânia ganharia a longo prazo.

É difícil distinguir se será fanfarronice ou a moral elevada que sustenta a nossa batalha contra uma força formidável. Para mim, a razão para uma tal confiança é esta última.

Resta saber a que custo a Ucrânia pode vencer. Segundo o Ministro da Saúde ucraniano, já morreram pelo menos 200 civis, entre eles mais de uma dezena de crianças. O horrível eufemismo de “danos colaterais” é ocasionalmente usado para descrever estas tragédias porque os ataques aéreos de Moscovo, apesar de atingirem civis, podem não ser direcionados especificamente contra eles.

Na situação atual – com a obsessão de Putin em punir os ucranianos e provar a sua própria força – temos razões para estar preocupados com a possibilidade de os russos atacarem zonas civis. A pergunta importante é como podemos evitar isso.

A professora de história sobre Putin a perder as estribeiras

Marci Shore é professora associada de História Intelectual Moderna da Europa na Universidade de Yale, e concentra-se na Europa Central e de Leste do Séc. XX e XXI. É autora de "The Ukrainian Night: An Intimate History of Revolution," entre vários outros.

Na quinta-feira 24 de fevereiro, o escritor russo Viktor Shenderovich deu uma entrevista ao canal de notícias russo Echo Moskvy. "Isto é a guerra de uma pessoa", disse Shenderovich. Depois, o telefonema foi cortado.

Esta é a guerra de Putin e é grotesca. Ouvi o majestoso discurso de Putin sobre a Crimeia há oito anos. E ouvi o  discurso de Putin na última segunda-feira a pressagiar a sua intenção de invadir a Ucrânia.

Já não se trata do mestre do xadrez, do estratega perspicaz. Ele já não é um interveniente racional, nem no sentido mais frio e cínico. Ele parecia não estar bem e ter perdido as estribeiras: "Estamos preparados para vos mostrar o que significa acabar realmente com o comunismo na Ucrânia..."

Já não parecia ser um homem a jogar um jogo de xadrez de alto nível. Agora, parecia uma cena de "Macbeth". A minha intuição dizia-me que era um homem idoso que, ao deparar-se com a sua própria morte, decidiu destruir o mundo inteiro. A Ucrânia está muito possivelmente a combater por todos nós.

O sociólogo sobre a escalada da violência na sua pátria

Volodymyr Ishchenko é investigador associado no Instituto de Estudos Europeus da Freie Universität, em Berlim. A investigação dele foca-se nas manifestações, movimentações sociais, revoluções, radicalização, nacionalismo e sociedade civil.

Parece que o país onde nasci pode ter-se perdido para sempre. A invasão da Rússia à Ucrânia parece ser o culminar do processo que começou a 30 de novembro de 2013, com a carga brutal da polícia de intervenção sobre os manifestantes Euromaidan em Kiev. A partir desse momento, senti que as coisas estavam cada vez mais a desenvolver-se de mal a pior.

Antes de 2014, a Ucrânia praticamente não via motins em grande escala no seu território, para não falar em guerra, há duas gerações consecutivas.

Esse período de paz não iria durar. A revolução Euromaidan fez cerca de 100 mortos. Seguiu-se a anexação da Crimeia pela Rússia. A guerra em Donbass. A tragédia em Odessa a 2 de maio de 2014, quando dezenas morreram em confrontos. A exploração cínica feita por Poroshenko das questões fragmentadoras da identidade ucraniana, numa tentativa desesperada para se manter no poder apesar do fracasso de todos os objetivos da revolução.

Quando Zelensky ganhou com uma vitória esmagadora, muitos ucranianos esperaram que o círculo vicioso fosse quebrado. Mas todas as oportunidades que um presidente imensamente popular tinha foram vergonhosamente falhadas.

Agora, Vladimir Putin elevou a tragédia para um nível horrível. Mas pode haver coisas ainda piores no futuro. Talvez o objetivo dele seja a rendição rápida do governo da Ucrânia (como na Geórgia em 2008) e obrigar o ocidente a reconhecer a anexação da Crimeia, recuar na entrada na NATO e obter uma versão mais rígida do acordo de paz.

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