A Crimeia é um modelo do que a Rússia quer fazer no resto da Ucrânia ocupada

CNN , Vasco Cotovio, Clare Sebastian e Yulia Kesaieva
18 mar, 13:47
Uma mulher posa para fotografias em frente ao mapa da Crimeia com as cores da bandeira russa, dias antes do 10.º aniversário da anexação da Crimeia pela Rússia, em Simferopol, a 13 de março de 2024. AFP/Getty Images

Kremlin diz que 90% dos residentes de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhzhia têm já passaportes russos. Menos de uma semana após a retirada das forças ucranianas da cidade de Avdiivka, no leste do país, os primeiros residentes da região solicitaram passaportes russos, segundo ainda o Kremlin

Uma mulher pequena sai calmamente de sua casa, escoltada por um grupo de homens grandes em uniforme verde. Têm um ar feroz: balaclavas verdes cobrem a maior parte do rosto, escondendo a sua identidade, mas os emblemas da bandeira russa revelam a sua lealdade.

A mulher é Lutfiye Zudiyeva, uma tártara da Crimeia, e partilhou um vídeo do momento nas redes sociais.

"Vieram a minha casa para fazer uma busca", disse ela numa entrevista a partir da península ucraniana ocupada, com um ar tão resoluto como no vídeo. "Há anos que me estava a preparar para isso."

A sua serenidade e previsão vêm da experiência - esta foi a sua terceira detenção desde 2019. Desta vez, esteve detida durante uma hora e foi acusada de "abuso da liberdade dos meios de comunicação social", por causa de publicações que fez nas redes sociais.

"Quando se cobre casos criminais com motivações políticas ou quando se escreve sobre tortura, não se pode deixar de entrar no radar dos serviços especiais ou da polícia", explicou.

Zudiyeva é uma ativista dos direitos humanos e também um dos muitos ucranianos que sofreram com a ocupação ilegal da Crimeia pela Rússia, que já dura há uma década, um período marcado pela imposição das leis e instituições de Moscovo, pela opressão e repressão de qualquer oposição, bem como por graves violações dos direitos humanos, de acordo com as Nações Unidas.

"Há detenções, buscas, tortura e repressão", disse Zudiyeva. "Assim que tentamos exprimir publicamente a nossa discordância... ou nos envolvemos de alguma forma, tornamo-nos um alvo. É inevitável."

Prisões como a dela, bem como grandes rusgas em massa, especialmente mas não exclusivamente, em áreas predominantemente habitadas por comunidades tártaras da Crimeia têm sido comuns desde 2014.

Os tártaros, uma minoria muçulmana de origem turca, são amplamente considerados como a população autóctone da Crimeia. Foram também perseguidos enquanto a península e a Ucrânia faziam parte da União Soviética, tendo sido deportados à força da Crimeia pelo ditador de longa data Joseph Estaline em 1944.

Só no final da década de 1980 e depois na década de 1990, com a independência da Ucrânia, é que os tártaros da Crimeia foram autorizados a regressar. Os tártaros estiveram entre os que se opuseram à anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 e os grupos de defesa dos direitos humanos registaram a perseguição do grupo minoritário pelas autoridades russas no período que se seguiu.

Mas o que já era comum tornou-se mais frequente e mais invasivo desde que a Rússia lançou a sua invasão em grande escala da Ucrânia, em fevereiro de 2022.

"A situação só está a piorar", apontou o advogado de direitos humanos Emil Kurbedinov, ele próprio um tártaro da Crimeia. "Os casos de sequestro, detenção de pessoas sem julgamento nas prisões, aumentaram, especialmente depois de 2022."

Mulheres tártaras da Crimeia manifestam-se contra a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, na estrada entre Simferopol e Sebastopol, na Crimeia, Ucrânia, a 8 de março de 2014. Daniel van Moll/NurPhoto/Corbis/Getty Images

Kurbedinov vive na Crimeia desde 2008 e diz que também tem sido perseguido pelas autoridades russas desde 2014. Foi detido em várias ocasiões, a última das quais em fevereiro, pela mesma alegada ofensa que Zudiyeva - que é uma das suas clientes.

Segundo ele, as autoridades russas agem sob o pretexto de "combater o terrorismo", alegando frequentemente que a Ucrânia está a dirigir e a controlar redes de dissidência na península. Na sua opinião, trata-se de puro oportunismo.

"Apanham as pessoas quando lhes convém e acrescentam acusações que tornam claro para a sociedade que se trata de terroristas", explicou.  "Sob o pretexto da luta contra o terrorismo, podem prender de uma só vez uma figura religiosa, um jornalista cívico, pessoas que discutiram algo desleal às autoridades, outras pessoas descontentes."

"Homenzinhos verdes"

A ocupação da Crimeia pela Rússia começou em 2014, pouco depois dos acontecimentos da Revolução Ucraniana. A confusão e a preocupação suscitaram sentimentos pró-russos na região - que, até 1954, fazia parte da república russa no seio da União Soviética, albergava a sua frota do Mar Negro no porto de Sebastopol e já se inclinava mais para Moscovo do que outras partes da Ucrânia -, dando origem a protestos e confrontos.

Enquanto os políticos de Kiev tentavam manter o país unido após a saída súbita do então presidente Viktor Yanukovich, a 22 de fevereiro, na sequência de meses de incerteza política e de protestos, Moscovo pôs os olhos na Crimeia.

Soldados russos em uniforme sem insígnias de identificação - na altura referidos como "homenzinhos verdes" - começaram a aparecer à porta de edifícios governamentais e bases militares, embora Moscovo negasse qualquer envolvimento.

No meio da confusão, muitas tropas ucranianas limitaram-se a barricar-se nas suas bases, enquanto os "homenzinhos verdes" se alinhavam no perímetro. Foram vistos helicópteros russos a entrar no espaço aéreo ucraniano. Dois comandantes de topo da marinha ucraniana desertaram.

Embora houvesse alguns grupos pró-Rússia em cidades como Sebastopol que eram favoráveis à anexação por Moscovo, esse sentimento não era considerado generalizado. Uma pequena maioria na Crimeia também votou a favor da independência da Ucrânia num referendo realizado em 1991. Nas eleições regionais de 2010, o partido do então líder Yanukovich - que nunca defendeu a anexação russa da Crimeia ou de qualquer outra parte da Ucrânia - ganhou com quase 50% dos votos. As sondagens indicam também que, antes de 2014, a maioria dos residentes acreditava que a anexação por Moscovo era ilegal ou inútil.

Semanas após o aparecimento dos homenzinhos verdes, um referendo falso, ilegal à luz do direito internacional e não reconhecido pela grande maioria da comunidade internacional, mostrou que 95,5% das pessoas na península queriam separar-se da Ucrânia e juntar-se à Rússia.

"Estamos a voltar para casa. A Crimeia pertence à Rússia", disse o primeiro-ministro russo da Crimeia, Sergey Aksyonov, a uma multidão reunida em Simferopol, enquanto os votos ainda estavam a ser contados. Uma década depois, ele continua no poder, como chefe da chamada República Russa da Crimeia.

A substituição das instituições ucranianas e a repressão da dissidência começaram rapidamente após a votação.

Soldados fortemente armados, sem insígnias de identificação, guardam o edifício do parlamento da Crimeia pouco depois de tomarem posição, a 1 de março de 2014, em Simferopol, na Ucrânia. Sean Gallup/Getty Images

"Desde os primeiros meses que nos confrontámos com um grande número de violações dos direitos humanos. Houve centenas de processos administrativos, raptos, etc.", contou Kurbedinov. "Apercebemo-nos de que estávamos numa realidade completamente diferente."

Essa nova realidade é uma que a Rússia está a tentar tornar permanente e irreversível, de acordo com a ONU.

"Temos assistido a um esforço sistemático para apagar a identidade ucraniana, para apagar e suprimir tudo o que é ucraniano. Também envolve a supressão da identidade nacional tártara", defendeu Krzysztof Janowski, da Missão de Monitorização da ONU na Ucrânia. "Sabemos, por exemplo, de pelo menos 100 desaparecimentos forçados de pessoas que se opõem ao novo regime e à ocupação", acrescentou.

Segundo a ONU, Moscovo expropriou pelo menos 730 lotes de terra pertencentes a cidadãos ucranianos e tártaros, que depois deu a militares russos ou ex-militares envolvidos na chamada "operação militar especial" na Ucrânia. Além disso, tornou quase impossível viver na Crimeia sem um passaporte russo.

"Sem um passaporte russo não se pode ter acesso a nenhum dos serviços sociais: cuidados de saúde, pensões, etc. Por isso, as pessoas são muitas vezes confrontadas com uma oferta que não podem recusar", lamentou Janowski. "Não podem ter acesso, não podem essencialmente sobreviver. Aceitar um passaporte russo é uma forma de sobreviver a esta situação horrível."

Pessoas caminham em frente a um cartaz que mostra o presidente russo Vladimir Putin e onde se lê "O Ocidente não precisa da Rússia. Nós precisamos da Rússia!", em Simferopol, na Crimeia, a 5 de março de 2024. AFP/Getty Images

A grande preocupação atual é que a Crimeia seja um modelo para as outras quatro regiões ucranianas atualmente ocupadas, total ou parcialmente, pela Rússia.

A porta-voz do Ministério do Interior russo, Irina Volk, afirmou que 90% dos residentes dessas quatro regiões - Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhzhia - têm agora passaportes russos. Menos de uma semana após a retirada das forças ucranianas da cidade de Avdiivka, no leste do país, os primeiros residentes da região solicitaram passaportes russos, afirmou Volk.

Esforço de propaganda

No que diz respeito à Crimeia, a Rússia tem tentado esconder a sua opressão sob um véu de investimento público e patriotismo.

Antes do 10.º aniversário da anexação, surgiram por toda a península painéis e cartazes que celebram a forma como o investimento de Moscovo tornou a vida melhor. Alguns mostram a Crimeia coberta com a bandeira russa, outros apresentam o presidente russo, Vladimir Putin, e dizem: "O Ocidente não precisa da Rússia. Nós precisamos da Rússia".

Esta narrativa não é nova, uma vez que as emissoras estatais russas e os meios de comunicação locais pró-russos destacam frequentemente a construção de novas estradas e outras infraestruturas públicas, como centros desportivos e até mesquitas em alguns casos.

A ponte de Kerch, que liga a Crimeia à parte continental da Rússia e foi inaugurada em 2018, é um grande motivo de orgulho para Moscovo e o foco de grande parte da sua propaganda. O seu significado do ponto de vista simbólico e estratégico também explica porque é que a Ucrânia a atacou várias vezes durante a guerra.

"É assim que vivemos", observou Kurbedinov. "Hoje, conduz-se por estradas bonitas, chega-se a casa, amanhã desaparece-se simplesmente."

Zudiyeva, tal como outras pessoas da sua comunidade, não se propôs a ser uma ativista dos direitos humanos. Queria trabalhar na área da educação e até abriu um centro infantil antes de Moscovo tomar conta da península.

Mas depois vieram os soldados russos, juntamente com a vigilância e a opressão do Kremlin.

"Começámos a ler notícias sobre pessoas desaparecidas, começámos a ler notícias sobre algumas delas serem torturadas", contou. "Percebi que não seria capaz de me abstrair disto e viver a minha vida como se nada estivesse a acontecer."

Durante algum tempo, conciliou o seu centro infantil com o seu novo ativismo, mas Moscovo bateu-lhe à porta.

"Era difícil explicar aos pais, que nos tinham trazido e confiado os seus filhos, porque é que a professora estava a ser assediada e o centro infantil estava a ser revistado", recordou.

Fechou o centro e concentrou-se no seu ativismo; em 2020, tornou-se também jornalista.

"Sonho em escrever um texto (que mude o curso dos acontecimentos) ou espero que o meu trabalho traga resultados que ponham fim à repressão na Crimeia", disse. "Faço-o conscientemente e penso que ultrapassei o meu medo em 2014."

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