As motas de água do pequeno batalhão Bratstvo contra os Raptor russos: os ataques audazes das forças especiais da Ucrânia para libertar a Crimeia

CNN , Vasco Cotovio, Frederik Pleitgen, Daniel Hodge e Kostyantyn Gak
18 out 2023, 13:37
Ponte da Crimeia um dia depois dos ataques (fonte Getty)

"Estava tão cheio de adrenalina", contou Muzykant à CNN, explicando que toda a operação parecia surreal. "Só percebi realmente que tinha estado na Crimeia quando regressámos à nossa base. Apercebi-me que tínhamos completado uma operação colossal."

Um grupo de ucranianos em motas de água desloca-se no oceano sob um céu negro como breu, visível apenas pela câmara de infravermelhos de um drone que os observa de cima. Abrandam quando se aproximam da costa para evitar serem detetados e apressam-se a chegar a terra firme.

"A Crimeia será ucraniana", diz um dos homens em imagens de vídeo vistas pela CNN após desembarcarem, segurando uma bandeira ucraniana.

Este soldado é conhecido apenas por "Muzykant", que significa "o músico" em inglês. Era um violinista que se tornou soldado das forças especiais da Ucrânia. Muzykant é o líder do batalhão Bratstvo que, juntamente com os serviços secretos de defesa da Ucrânia e outras unidades, levou a cabo a operação de invasão da Crimeia no início deste mês.

"Estava tão cheio de adrenalina", contou Muzykant à CNN, explicando que toda a operação parecia surreal. "Só percebi realmente que tinha estado na Crimeia quando regressámos à nossa base. Apercebi-me que tínhamos completado uma operação colossal."

Essa operação anfíbia, no início de outubro, foi uma infiltração das forças especiais ucranianas no maior reduto da Rússia na Ucrânia ocupada, parte de uma tendência recente que tem visto Kiev aumentar os seus ataques na península. A data e a hora exatas do ataque não foram reveladas.

Muzykant foi um dos dez soldados do batalhão Bratstvo envolvidos no assalto noturno à Crimeia, em cooperação com outras unidades ucranianas - o número total de operacionais é ainda desconhecido. Navegaram por mares agitados em lanchas maiores, antes de mudarem para motas de água de perfil mais baixo quando estavam ao alcance da península. Em seguida, correram em direção à costa, destruiram o equipamento militar russo colocado junto ao mar e regressavam, tudo numa questão de horas.

O objetivo não era apenas sabotar algum do equipamento militar que Moscovo mantém perto da costa, mas também transmitir uma mensagem aos cidadãos ucranianos no território.

"Fizemo-lo para que as pessoas na Ucrânia e na Crimeia ocupada não percam o ânimo e mantenham a fé no regresso da Crimeia à Ucrânia", afirmou Muzykant. As forças russas anexaram ilegalmente a Crimeia em 2014. A península tem uma profunda importância simbólica para o presidente russo Vladimir Putin e é um centro logístico estrategicamente vital para o esforço de guerra do Kremlin.

"Muzykant" disse que acredita que o perigo em que incorre nestas missões vale a pena (Vasco Cotovio/CNN)

Muzykant disse que a perigosa operação exigiu meses de planeamento para preparar os soldados ucranianos para os muitos riscos que iriam enfrentar.

"Enquanto estávamos a desembarcar, o mar estava tempestuoso, as ondas tinham até dois metros de altura", explicou. "Além disso, os navios de guerra russos estavam a patrulhar o mar, os Raptor. Eram quatro, cada um com uma tripulação de 20 soldados russos armados com metralhadoras pesadas e uma arma de 30 milímetros."

Mas o batalhão Bratstvo foi capaz de ultrapassar esses perigos. Chegaram à península e cumpriram a sua missão.

"Treinámos muito para esta missão. Toda a gente sabia o seu papel, o que era suposto fazer na costa", garantiu Muzykant. "No regresso após a missão, os navios de guerra russos estavam a perseguir-nos, mas conseguimos escapar."

Nenhum dos soldados do batalhão Bratstvo ficou ferido ou foi capturado, mas os serviços de defesa ucranianos reconheceram perdas, embora não tenham fornecido mais pormenores. Também disseram que as baixas do lado de Moscovo foram muito mais significativas.

O Batalhão Bratstvo diz ter sido a primeira unidade ucraniana a chegar à Crimeia ocupada (Vasco Cotovio/CNN)

Moscovo disse que tinha capturado um dos soldados ucranianos que desembarcaram na Crimeia, divulgando vídeos do seu interrogatório na televisão nacional, mas recusou-se a elaborar quaisquer perdas do lado russo.

Capturar, ferir ou morrer são riscos que Muzykant está disposto a correr em missões que considera necessárias.

"Não se trata apenas de apoio moral ao nosso povo na Crimeia, mas também de ajuda às nossas forças nas trincheiras", disse. "Desviamos a atenção do inimigo para nós, e o inimigo é forçado a deslocar o seu pessoal e veículos para a costa da Crimeia."

A frente da Crimeia

O ataque de outubro foi um dos muitos que as forças ucranianas levaram a cabo na península nos últimos meses.

Em setembro, os ataques atingiram o quartel-general da frota russa do Mar Negro, na cidade de Sebastopol, na Crimeia. Os mísseis utilizados eram aparentemente os Storm Shadow, de longo alcance, doados pelo Reino Unido.

A Ucrânia também atacou várias vezes a ponte de Kerch, que liga a Crimeia à Rússia continental.

As forças de Kiev danificaram um navio e um submarino russos quando atingiram uma das docas secas utilizadas pela Frota do Mar Negro, em 13 de setembro, e a Ucrânia efetuou vários ataques à base aérea de Saki, de onde a Rússia lança alguns dos seus aviões de ataque.

A Rússia prometeu retaliar em várias ocasiões, apelidando os ataques de "atos de terrorismo", mas a Ucrânia continuou a realizar ataques na península. Para além dos drones e dos mísseis, há muito que se especula que as forças especiais de Kiev estão a operar na Crimeia, mas o seu perfil foi reforçado com o ataque anfíbio de outubro.

Um dos fundadores da unidade Bratstvo e um dos principais responsáveis pelo planeamento do ataque cirúrgico, Dmytro Korchynskyi, disse que atacar a península era fundamental para o esforço de contraofensiva da Ucrânia.

"A Crimeia é uma base militar que eles (Rússia) ainda consideram estar bem defendida. Por isso, para nós é vital", explicou Korchynskyi. "E também é vital do ponto de vista político-militar. Não podemos deixar que ninguém se esqueça que a Crimeia é ucraniana e que iremos sempre operar lá."

"Estamos a travar uma guerra de trincheiras na linha da frente e o sucesso nem sempre é óbvio - operações especiais deste tipo na retaguarda ou no mar inspiram e dão energia aos nossos soldados para continuarem a lutar", acrescentou.

E embora seja importante atacar os meios russos com drones e mísseis, acredita que ter soldados ucranianos no terreno distrai Moscovo e obriga a Rússia a deslocar os seus meios.

O fundador e conselheiro do batalhão Bratstvo, Dmytro Korchynskyi, afirma que os ataques à Crimeia são "vitais" para o esforço de guerra da Ucrânia (Vasco Cotovio/CNN)

"Cada soldado que está a guardar a praia é um soldado que não está presente na frente de Zaporizhzhia", disse.

As operações realizadas atrás das linhas inimigas, nas profundezas do território controlado pela Rússia, dependem do apoio da população local, acrescentou Korchynskyi.

Controlo das instalações militares

Os ucranianos que vivem sob ocupação russa há muito que se organizam em grupos de resistência, designados localmente por Partisan. Estes grupos têm estado presentes em toda a Ucrânia ocupada, sobretudo em Kherson e Melitopol, mas também na Crimeia.

Um dos grupos que opera na península dá pelo nome de Atesh, que significa fogo em língua tártara. O grupo concordou em falar com a CNN através de um serviço de mensagens encriptadas, recusando-se a falar perante as câmaras para proteger a identidade dos seus membros.

O Atesh também se recusou a comentar se esteve envolvido no ataque de setembro ao quartel-general da frota do Mar Negro em Sebastopol, mas disse que mantém um controlo constante sobre os militares russos e comunica quaisquer movimentos aos ucranianos.

A CNN conseguiu corroborar o envolvimento do grupo com os serviços secretos da Ucrânia.

O seu trabalho, segundo o grupo, é importante mas extremamente perigoso e os seus membros são ativamente procurados pelas autoridades russas, incluindo o Serviço Federal de Segurança (FSB).

"Utilizam vários meios para colocar escutas telefónicas na área (apartamentos, cafés ou quaisquer outras instalações) e também (fazem) tentativas para introduzir agentes do FSB no nosso movimento", considerou Atesh. "As tentativas dos russos para se infiltrarem nas nossas fileiras são constantes, mas a nossa equipa encontra-as habilmente. Além disso, temos uma filtragem muito rigorosa de potenciais agentes e a maioria dos agentes trabalha de forma autónoma para evitar fugas de informação."

"Os agentes do nosso movimento compreendem todos os riscos e seguem rigorosamente as medidas de segurança", acrescentam.

Prontos para a libertação

Os Partisan afirmam que só conseguem cumprir eficazmente as suas missões porque contam com "o amplo apoio dos habitantes locais" e que estes ataques coordenados a partir do ar e do mar estão a reforçar as suas posições.

"O nosso movimento e outros movimentos de resistência estão a ficar maiores e mais fortes", garantem. "Os residentes pró-ucranianos da Crimeia estão prontos para a libertação da península."

Korchynskyi disse que a libertação é o objetivo final destas incursões e que as forças ucranianas têm vindo a aperfeiçoá-las lentamente, especialmente as táticas anfíbias.

A ponte que liga a parte continental da Rússia à península da Crimeia através do estreito de Kerch (Associated Press)

Muzykant sabe que ainda falta algum tempo e muito trabalho antes de as forças ucranianas poderem lançar uma ofensiva de maior dimensão na Crimeia, mas mais ataques - e mais ousados - estão no horizonte.

"Nós enfraquecemo-los destruindo o seu equipamento militar e o seu pessoal, mas eles ficam mais atentos", explicou. "Tornam-se melhores. Por isso, cada tarefa seguinte é mais difícil".

Em última análise, diz que é movido pela crença de que os ucranianos na Crimeia estão à sua espera.

"Estão à espera do nosso sinal para iniciar a luta contra a agressão russa."

As primeiras fases dessa luta podem já estar a desenrolar-se.

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