O fosso entre o papel e a prática. Muitas vezes desrespeitadas, qual o valor das resoluções do Conselho de Segurança da ONU?

22 dez 2023, 22:52
ONU CS

O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou uma resolução que vincula Israel a permitir e facilitar a ajuda humanitária na Faixa de Gaza. No entanto, há registo de várias resoluções que têm sido sistematicamente ignoradas. Se não são respeitadas para que servem? E o que garante que desta vez será cumprida?

“Há resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas que são respeitadas e implementadas, outras que são sistematicamente ignoradas, depende muito do país destinatário”, explica o ex-secretário-geral adjunto da Organização das Nações Unidas (ONU), Victor Ângelo, considerando que a resolução para aumentar a ajuda humanitária à Faixa de Gaza trata-se de “uma chamada de atenção”. Esta não é a visão do especialista em relações internacionais, Francisco Pereira Coutinho, que garante que Israel irá cumprir a resolução aprovada esta sexta-feira, por sentir uma maior pressão para o seu cumprimento. 

Se há uma região que tem sido alvo de resoluções do Conselho de Segurança, o Médio Oriente é essa região. Exemplos claros são o Plano de Partilha de 1947, a resolução que exigia a Israel o fim “imediato” da política de colonatos nos territórios palestinianos ou a mais recente que pedia pausas humanitárias na Faixa de Gaza. Esta sexta-feira houve nova aprovação por parte dos membros da ONU, que deram o sim a mais ajuda humanitária à Faixa de Gaza.

Esta resolução apela a “pausas humanitárias urgentes e prolongadas e corredores em toda a Faixa de Gaza durante um número suficiente de dias para permitir o acesso humanitário completo, rápido, seguro e sem entraves”. Durante esta sexta-feira, diplomatas de todo o mundo trabalharam numa sala fechada para finalizar a resolução elaborada pelos Emirados Árabes Unidos. A proposta foi aprovada com 13 votos a favor, nenhum contra e duas abstenções: EUA e Rússia, ainda que por razões diferentes. Segundo Francisco Pereira Coutinho, os EUA não terem votado é significativo, visto que decidiram não utilizar o poder de veto como membro permanente do órgão, que teria impedido a resolução.  

O Conselho de Segurança desempenha um papel crucial na defesa da paz e segurança internacionais. “Papel que lhe é atribuído pela Carta das Nações Unidas”, frisa Victor Ângelo. 

No entanto, um olhar mais atento às resoluções revela uma tendência preocupante - muitas resoluções, apesar de vinculativas, não são efetivamente aplicadas e algumas são completamente ignoradas. Se grande parte das resoluções não são respeitadas, para que servem?

O ex-secretário-geral adjunto da ONU, Victor Ângelo, defende a importância destas resoluções e diz que aquelas que não são para serem executadas são vetadas. “Quando um país com direito a veto não quer aprovar, não deixa passar, impedindo a aprovação dessa resolução imediatamente”. Por outro lado, quando são para ser executadas são aprovadas e devem ser cumpridas pelo país destinatário, defende.

Alguns exemplos de resoluções que foram efetivamente implementadas são a resolução relativa à missão de paz na Libéria; a resolução de independência de Timor, que pôs em funcionamento a administração da região; a resolução de independência da Namíbia; e, a resolução de paz na Serra da Leoa. 

No que toca à garantia de que as resoluções são efetivamente cumpridas, Victor Ângelo verifica que, em teoria, há duas certezas: quem trabalha para a missão da ONU, que tem a responsabilidade de implementar e prestar contas; e o próprio Conselho de Segurança.

No entanto, o ex-secretário-geral adjunto da ONU explica que “o que acontece é que muitas vezes as resoluções são de tal maneira amplas em termos objetivos que quem tem de as implementar escolhe as suas prioridades e acaba por não implementar a totalidade”. No entanto, garante que depende do tipo de missão. “É um fenómeno dos últimos 20 anos”, afirma Vítor Ângelo, que já discutiu e trabalhou várias resoluções com os membros do Conselho de Segurança. “Nesses casos, deve ser preparado um plano que define quando vai ser implementado no tempo cada objetivo”, sugere. 

Palestinianos desesperam por bens essenciais vindos de um camião de ajuda humanitária quando este entra na Faixa de Gaza em Rafah, domingo, 17 de dezembro de 2023. (AP Photo/Fatima Shbair)

No caso das resoluções que são ignoradas pelo país destinatário, cabe ao Conselho de Segurança decidir entre “obrigar à implementação, modificar a resolução ou ignorar que a resolução não está a ser implementada e deixar que a missão faça aquilo que puder”, observa Victor Ângelo.

Uma hipótese muito frequente é quando no terreno se chega à conclusão que aquilo que se pensava não é possível, faz-se apenas aquilo que as circunstâncias permitem”. 

A propósito da recente resolução que pede ajuda humanitária para a Faixa de Gaza, Victor Ângelo descreve como “extremamente imprecisa”. “É mais um apelo do que uma resolução. É uma chamada de atenção para a necessidade de se encontrar uma resposta para a gravíssima crise humanitária”. O ex-secretário-geral adjunto da ONU não considera esta resolução como uma tomada de decisão que tenha um impacto real sobre a situação humanitária da Faixa de Gaza. 

Já Francisco Pereira Coutinho, especialista em relações internacionais, garante que esta resolução interessa e será cumprida por Israel. “Israel tem mais pressão para cumprir, caso não o faça estará a violar diretamente uma obrigação de direito internacional”. O especialista defende que o facto da resolução impor um conjunto de obrigações, como permitir e facilitar a passagem de combustível e bens essenciais, incluindo a abertura da passagem fronteiriça Karem Abu Salem, reforça a resolução.

Isto era algo que Israel não fez ao longo dos últimos dois meses e tinha obrigação de o fazer enquanto potência ocupante”, defende o especialista em relações internacionais, Francisco Pereira Coutinho. 

Ao refletir sobre a história e o estado atual das resoluções do Conselho de Segurança das ONU, torna-se evidente que o fosso entre o que é decidido no papel e o que é alcançado na prática é um desafio. Para Francisco Pereira Coutinho, “muitas resoluções não têm eficácia porque não são adotadas medidas secundárias em caso de violações das resoluções”. Na sua perspetiva, quando as resoluções não são cumpridas é preciso implementá-las e, para esse efeito, “é necessário que o Conselho de Segurança autorize outro tipo de medidas, como o uso da força”. E dá como exemplo a não atuação do Conselho de Segurança perante a ocupação israelita na Cisjordânia. 

O especialista em relações internacionais conclui dizendo que “esta resolução não traz muito de novo, exceto densificar o que se pretende para mitigar o problema humanitário”. “Esta resolução volta a reafirmar a resolução de 15 de novembro que pedia pausas humanitárias”, defende, destacando o facto desta resolução obrigar à nomeação de um Coordenador Humanitário e de Reconstrução da ONU que a implemente.

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