"É uma ideia completamente mirabolante": Israel sugeriu criar "uma ilha" perto de Gaza como alternativa à solução de dois Estados - e deixou os líderes europeus "frustrados"

22 jan, 22:00
Benjamin Netanyahu (AP)

A proposta, apresentada pelo ministro israelita dos Negócios Estrangeiros, deixou os líderes europeus "frustrados" por sentirem que estavam "a perder tempo com ideias que não são adequadas ao tempo de urgência que vivemos". Para os analistas ouvidos pela CNN Portugal, isto só prova que o governo de Benjamin Netanyahu não está disposto a abrir mão das pretensões territoriais na Faixa de Gaza

O ministro israelita dos Negócios Estrangeiros, Israel Katz, aproveitou a reunião dos ministros da diplomacia europeia, em Bruxelas, para apresentar uma proposta que, segundo João Gomes Cravinho, gerou “alguma frustração” entre os 27. “O ministro israelita apresentou-nos um plano para a criação de uma ilha, a três ou quatro quilómetros da Faixa de Gaza, que permitiria criar uma plataforma logística que alimentaria tanto Israel como Gaza”, adiantou o ministro português dos Negócios Estrangeiros (MNE), em declarações aos jornalistas à saída da reunião, um plano que, sublinhou, "não é a transferência da população de Gaza".

“É uma proposta completamente mirabolante, e que se soma a outras que temos ouvido por parte de alguns responsáveis políticos israelitas, que veem como solução para este conflito a expulsão da população palestiniana”, afirmou à CNN Portugal Francisco Pereira Coutinho, especialista em direito europeu e internacional.

Segundo o MNE português, a proposta foi prontamente rejeitada pelos 27 chefes da diplomacia da União Europeia (UE), inclusive pelo próprio João Gomes Cravinho: “O que eu lhe disse e vários outros lhe disseram foi que não vale a pena trazer ideias líricas sobre um futuro de paz e harmonia se não houver disponibilidade no imediato para trabalhar para o reconhecimento dos direitos palestinianos, que estavam inteiramente ausentes na forma como ele apresentou as suas ideias.”

João Gomes Cravinho disse mesmo que “houve alguma frustração” entre os chefes da diplomacia europeia por sentirem que estavam “a perder tempo com ideias que não são adequadas ao tempo de urgência que vivemos”.

O gabinete do ministro israelita dos Negócios Estrangeiros negou entretanto que Israel Katz tenha sugerido que os palestinianos fossem alojados numa ilha artificial no Mediterrâneo. "Ele nunca disse tal coisa, não existe tal plano", refere-se num comunicado, citado pelo Times of Israel.

A crescente tensão entre Israel e o seu principal aliado - os EUA

O Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros da UE, que, além do israelita Katz, reuniu também em Bruxelas o homólogo palestiniano, Riyad al-Maliki, decorre numa altura de grande tensão entre os líderes ocidentais, nomeadamente da UE e dos EUA, e o governo de Israel. Isto porque o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, mantém-se intransigente em relação à solução de dois Estados que tem sido defendida pelo Ocidente desde 1948, no âmbito do Plano de Partilha da Palestina da ONU.

Ainda esta segunda-feira, antes do encontro em Bruxelas, o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell - que recentemente acusou o governo de Netanyahu de ter “financiado o Hamas”- disse que a situação humanitária na Faixa de Gaza “não podia ser pior” - de acordo com as autoridades palestinianas, os ataques israelitas já mataram mais de 25 mil pessoas em Gaza desde 7 de outubro -, reiterando necessidade de se avançar finalmente para a solução de dois Estados.

Também na semana passada, Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, telefonou a Benjamin Netanyahu, pela primeira vez desde dezembro passado, para insistir que esta solução “é a única forma de garantir a segurança a longo prazo tanto do povo israelita como do povo palestiniano”. No domingo, também o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse ser “inaceitável” a recusa de Netanyahu em aceitar esta solução, que as Nações Unidas veem como a única viável para efetivamente restabelecer a paz na região.

Apesar da subida de tom dos líderes ocidentais, Netanyahu mantém-se inflexível, afastando por completo essa hipótese, por implicar o reconhecimento de um Estado da Palestina. Recentemente, o primeiro-ministro de Israel voltou a criticar os Acordos de Oslo - assinados em 1993 entre o então chefe do executivo israelita, Yitzhak Rabin, o líder da Organização para a Libertação da Palestina, Yasser Arafat, e o então presidente norte-americano, Bill Clinton -, e disse ter “orgulho em ter evitado a criação de um Estado palestiniano”.

"Solução de dois Estados é completamente impossível com Netanyahu no governo"

Neste contexto, Francisco Pereira Coutinho acredita que dificilmente Benjamin Netanyahu irá ceder às pressões internacionais. “A questão da criação do Estado soberano de Israel tem sido a luta de Netanyahu desde que iniciou funções, em 1999. Ele não acredita na solução de dois Estados porque considera que isso seria muito grave para a segurança de Israel”, explica o especialista, lembrando as palavras de Josep Borrell, quando afirmou que Netanyahu permitiu o financiamento do Hamas através do Catar. “Ele [o primeiro-ministro israelita] fez tudo o que pôde para torpedear e boicotar a solução de dois Estados”, sublinha Francisco Pereira Coutinho.

“Portanto, enquanto ele [Netanyahu] estiver em funções, a solução de dois Estados é completamente impossível”, argumenta o especialista em direito europeu e internacional, ressalvando, contudo, que não basta a saída de Netanyahu para que esse caminho possa vir a ser construído. 

É que “não é só” o primeiro-ministro israelita que se mostra contra o reconhecimento do Estado da Palestina, aponta Francisco Pereira Coutinho. “Israel é um Estado plural, onde existem várias tendências e há uma divisão clara entre o Israel secular, liberal, que foi personificado no passado em Yitzhak Rabin - que estava disposto a soluções de compromisso que pudessem levar à criação de um Estado palestiniano -, e depois há o outro Israel, religioso, nacionalista, messiânico, que não acredita nessa possibilidade e acha que isso é um anátema que pode colocar em causa a existência do Estado de Israel”, resume o especialista. Ou seja, Netanyahu está rodeado de pessoas que têm os mesmos ideais e ambições.

Aliás, de acordo com o major-general Carlos Branco, que serviu a Organização das Nações Unidas (ONU) numa das missões de pacificação no Médio Oriente, são precisamente essas pessoas - “generais e coronéis, radicais” - que assinaram uma carta aberta contra uma “iniciativa diplomática” dos EUA, Egito e Catar que sugeria, em última instância, para se pôr fim ao conflito com o Hamas, a retirada das forças israelitas na Faixa de Gaza.

Ora, se nem os EUA nem os países árabes conseguem pressionar Netanyahu, o major-general admite algum "ceticismo" em relação à capacidade da UE em "influenciar os atores políticos" israelitas a comportarem-se de determinada maneira. "Não vejo a UE com capacidade para o fazer. Aliás, podemos estabelecer uma analogia com o que tem feito os EUA, que têm uma capacidade de influência incomparavelmente superior à da UE, e vemos os resultados. Também a esse nível os altos dignitários israelitas, começando pelo primeiro-ministro, têm sido taxativos relativamente aos seus projetos, dizem ‘fazemos o que queremos’.", afirma Carlos Branco.

Para Francisco Pereira Coutinho, a solução para este conflito depende do futuro do próprio Estado israelita. "É preciso perceber qual vai ser o futuro do Estado de Israel. Será o Estado secular? Será o Estado religioso, nacionalista? Qual deles vai prevalecer?", questiona o especialista. 

E, para isso, há um elemento nesta equação que fará toda a diferença e que não deve ser descurado, acrescenta Francisco Pereira Coutinho, referindo-se às eleições norte-americanas. "Joe Biden acredita na solução de dois Estados, tal como no passado Bill Clinton acreditou na solução de dois Estados. Agora, se tivermos eleições em novembro e se Donald Trump for eleito, então nesse caso teremos alguém que não acredita na solução de dois Estados e vai ser um grande aliado de Netanyahu."

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