Bruxelas anunciou "suspensão imediata" dos apoios à Palestina para logo a seguir a desmentir. "Colocou em causa a liderança de Von der Leyen"

11 out 2023, 22:00
Ursula Von der Leyen (AP Photo/Jean-Francois Badias)

Um comissário europeu anunciou a suspensão imediata dos apoios ao desenvolvimento da Palestina, para logo depois ser desmentido pelo chefe da diplomacia europeia. Os especialistas acreditam esta "falha de comunicação" custou "danos reputacionais" elevados para a União Europeia

Na segunda-feira, Olivér Várhely, comissário europeu para a Vizinhança e o Alargamento, anunciou nas redes sociais que a Comissão Europeia decidiu "suspender de imediato" todos os pagamentos ao abrigo do apoio destinado ao desenvolvimento da Palestina, no valor de 691 milhões de euros, como resposta aos ataques do Hamas contra Israel.

The scale of terror and brutality against #Israel and its people is a turning point.
 

There can be no business as usual.

 

As the biggest donor of the Palestinians, the European Commission is putting its full development portfolio under review, worth a total of EUR 691m

⤵️

 

— Oliver Varhelyi (@OliverVarhelyi) October 9, 2023

A decisão não foi bem recebida pela comunidade internacional, inclusive pelo ministro dos Negócios Estrangeiros português, João Gomes Cravinho, que qualificou a decisão como "um erro grosseiro". O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, chegou a contactar o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, apelando à União Europeia para que não avançasse com a suspensão do apoio à Palestina.

Horas depois do anúncio de Olivér Várhely, o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, esclareceu que a Comissão Europeia "não vai suspender os devidos pagamentos", argumentando que "castigar o povo palestiniano" só iria "prejudicar os interesses da União Europeia [UE] na região e iria encorajar ainda mais os terroristas".

The review of the EU's assistance for Palestine announced by the European Commission will not suspend the due payments, as clarified by the Commission’s press release.

— Josep Borrell Fontelles (@JosepBorrellF) October 9, 2023

Assim, e em vez de cortar radicalmente com o apoio ao desenvolvimento da Palestina, Bruxelas vai continuar a cumprir com os respetivos pagamentos, ao mesmo tempo que vai preparar uma "revisão da assistência" à Autoridade Palestiniana.

Na terça-feira, o porta-voz do executivo comunitário, Eric Mamer, indicou que o comissário húngaro fez aquele anúncio sem consultar qualquer membro do colégio de comissários europeus. No entanto, e de acordo com o Politico, o mesmo porta-voz tinha afirmado, no dia anterior, numa mensagem aos jornalistas, que poderia "confirmar o conteúdo" da publicação de Várhelyi, na rede social X (ex-Twitter). A reviravolta colocou a Comissão Europeia numa situação "sem precedentes", como descreve Francisco Pereira Coutinho, especialista em Direito Internacional e da UE: "Foi uma situação completamente absurda."

Francisco Pereira Coutinho diz estar convicto de toda esta situação se tratou de "uma iniciativa individual do comissário" húngaro, e a resposta da Comissão Europeia mostrou que "claramente foram apanhados de surpresa".

Mais tarde, confrontado com a clarificação do chefe da diplomacia europeia, o comissário Olivér Várhely reiterou a sua posição, argumentando não ver "nenhuma contradição" entre as suas palavras e as de Josep Borrell. "Para mim, é o mesmo. Não há pagamentos iminentes", frisou, citado pelo Financial Times.

Francisco Pereira Coutinho não tem dúvidas de que esta situação "coloca em causa a liderança de Von der Leyen", presidente da Comissão Europeia, uma vez que "é muito incomum" haver anúncios de decisões individuais em nome do executivo comunitário. "Ainda por cima trata-se de um assunto que o mundo inteiro está a discutir neste momento, e isso causou danos reputacionais à UE, porque quem o ouviu achava que ele estava a falar em nome da Comissão e, na verdade, não estava. Nesse sentido, é um problema comunicacional. Ele estava a dizer algo que não representava a opinião da Comissão Europeia, representava a opinião dele."

Olivér Várhely é um dos comissários europeus mais proeminentes na defesa do apoio a Israel. De acordo com duas fontes citadas pelo Financial Times, o comissário húngaro fez o anúncio da suspensão do apoio à Palestina com o entendimento de que teria o apoio do executivo comunitário. Mas, aparentemente, não foi bem assim, como se veio a verificar pelo rápido esclarecimento de Bruxelas, que é a maior doadora da Autoridade Palestiniana, tendo inclusive um pacote financeiro para o período de 2021-24 no valor de 1,177 mil milhões de euros, destinado ao desenvolvimento do país.

Uma "falha de comunicação" com "danos reputacionais" para a UE

Tendo em conta os "danos reputacionais" deste "problema comunicacional" para a União Europeia, Francisco Pereira Coutinho considera que o comissário europeu deve ser alvo de uma consequência por parte de Von der Leyen, nomeadamente com a proposta de demissão de Olivér Várhely.

"Isto é bastante grave.Tem de haver um grau de articulação dentro da comissão", salienta, esclarecendo que o Tratado da União Europeia refere que um comissário europeu só poder ser demitido a pedido da presidente da Comissão Europeia. Para já, Ursula von der Leyen ainda não se pronunciou sobre um eventual pedido de demissão a Olivér Várhely.

A investigadora Helena Ferro Gouveia não vai tão longe, considerando que basta o "puxão de orelhas" da Comissão Europeia para retratar o comissário húngaro pela "falha de comunicação". "O que me parece ter ocorrido foi uma precipitação do comissário europeu, sobretudo porque se sabe que dentro dos gabinetes ministeriais dos vários ministros europeus havia o debate sobre o que fazer com a ajuda à Palestina. Nesse sentido, terá havido, da parte do comissário, algum voluntarismo na interpretação das discussões", assume a investigadora.

Os especialistas salientam ainda o facto de Olivér Várhely ser um comissário da Hungria, nacionalidade que "poderá ter alguma implicação" na interpretação da ajuda à Palestina. "Sabemos que o Parlamento Europeu considera a Hungria uma democracia liberal, e esse fator poderá ter tido alguma coisa que ver com isto", observa.

"Os comissários europeus são independentes, não recebem instruções dos governos, mas há quem faça aqui uma ligação na circunstância de se tratar de um comissário húngaro", assume Francisco Pereira Coutinho.

De qualquer modo, Helena Ferro Gouveia lembra que a União Europeia é composta por um conjunto de 27 países que, apesar de estarem "unidos por valores comuns e por um projeto comum", "não deixam de ser um conjunto de Estados" com posições muitas vezes distintas.

"É natural que num grupo tão alargado haja diferentes posições. Mesmo entre a Alemanha e a França, que têm o eixo franco-alemão e que desde a fundação da UE têm instrumentos próprios de colaboração bilateral, há por vezes maneiras diferentes de ver as questões. É natural que em 27 haja dificuldades de manter sempre a unanimidade de posições", relativiza a investigadora.

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