Uma metralhadora contra um míssil: como a Ucrânia está "cruelmente incapacitada" numa guerra que é "cada vez mais" de munições

29 jan, 07:00
Exército ucraniano prepara canhão M777 para disparar contra as posições russas na frente de combate (Getty Images)

Não são só os mísseis antiaéreos que faltam. Com os sucessivos atrasos dos países da NATO, os militares ucranianos têm cada vez mais dificuldades em dar luta

As imagens causaram tanto espanto quanto admiração. Numa noite escura na Ucrânia, é possível ver o rasto luminoso de um míssil balístico russo que atravessava os céus em direção a Kiev, numa nova vaga de ataques. Em terra, um grupo de soldados montados na parte de trás de uma carrinha armada com uma metralhadora pesada M2 Browning, criada durante a Primeira Guerra Mundial, disparam uma rajada de tiros para o céu. Pouco depois, um clarão ilumina o horizonte. Tinham conseguido o impossível: destruir um míssil balístico. Mais do que um sucesso, os especialistas sublinham que este ato expõe as debilidades sentidas em Kiev. Faltam mísseis antiaéreos, mas não só.

“A Ucrânia pede sistematicamente meios de defesa antiaérea. É aí que cruelmente a Ucrânia começa a ficar incapacitada perante a força da ofensiva russa”, afirma o professor José Azeredo Lopes, que acrescenta que esta guerra é "cada vez mais uma guerra de munições", cujo vencedor pode levar a melhor pela sua capacidade de repor "meios ofensivos e capacidades defensivas".

Nos últimos dois anos, após sucessivos bombardeamentos russos, vários países da NATO têm vindo a fornecer à Ucrânia diversos sistemas de defesa antiaérea modernos, capazes de cobrir diferentes distâncias. No entanto, estes sistemas de pouco servem se não tiverem as munições próprias para serem disparadas.

Este mês, após uma renovada campanha de bombardeamento russa, o número de mísseis e drones abatidos caiu drasticamente. No final do ano, a Ucrânia alegou ter abatido 149 dos 166 mísseis cruzeiro disparados pela Rússia. Menos de um mês depois, a Ucrânia intercetou apenas 21 dos 41 mísseis disparados na terça-feira 23 de janeiro. Em causa não está a capacidade dos sistemas de defesa antiaéreos, mas sim a falta de meios para os ativar. 

"Há munições suficientes para resistir aos próximos ataques poderosos. A médio e a longo prazo, vamos precisar da ajuda dos países ocidentais para repor os stocks", alertou Sergiy Nayev, comandante das forças armadas ucranianas encarregue da defesa antiaérea, em declarações à agência AFP.

Nesse sentido, a Alemanha garantiu com a Raytheon a licença para a produção de mísseis antiaéreos para os sistemas norte-americanos Patriot. Alemanha, Países Baixos, Roménia e Espanha assinaram um contrato no valor de 5,6 mil milhões de dólares para a aquisição das primeiras mil unidades destes mísseis, que podem custar entre um a seis milhões de euros por unidade.

O silêncio dos canhões

Mas os problemas ucranianos não estão restritos à defesa dos céus. Os militares costumam dizer que a infantaria é a rainha do combate e que o rei é a artilharia, e nenhum outro campo preocupa tanto as autoridades ocidentais como o fornecimento de artilharia. Com um braço de ferro político em Washington que bloqueia o financiamento de mais apoio militar para a Ucrânia e com a União Europeia a falhar a sua meta de garantir o fornecimento de um milhão de munições de 155 mm até ao final de março, Kiev está a ter de tomar decisões muito difíceis. 

“O aumento da produção de munições é uma absoluta necessidade para permitir-nos continuar a apoiar a Ucrânia”, disse o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, ao anunciar um acordo no valor de 1,1 mil milhões para a produção de munições 155 mm para a Ucrânia. “Com o consumo de munições que vemos na Ucrânia, com as necessidades que vemos, precisamos de aumentar a produção”, insistiu. 

E no terreno os soldados ucranianos estão a sentir mais do que ninguém a falta deste apoio. Numa conversa com a CNN, o comandante de uma unidade de artilharia admite que não consegue cumprir muitas das tarefas que lhe são pedidas pela infantaria. Nos últimos dias, este grupo de soldados assume que não tem recebido munições explosivas, apenas de fumo. “É melhor que nada. Geralmente, tudo o que recebemos disparamos”, revelou. No início da contraofensiva, Kiev disparava perto de oito mil munições por dia. Nas últimas semanas, esse número caiu para cerca de dois mil disparos, numa frente de combate com mais de mil quilómetros.

"Na região de Avdiivka, há uma situação preocupante a desenvolver-se para os ucranianos, com o lado russo a combater no interior da cidade. O colapso desta cidade pode provocar uma alteração profunda da manobra tática ucraniana", avalia o major-general Agostinho Costa.

Mas este não é um problema que está a afetar a Rússia. Desde os últimos meses de 2022 que o Kremlin deu ordens para o aumento significativo da produção militar, particularmente na capacidade de fornecer munições de 152 mm, o calibre utilizado pelos russos. Mas o resultado pode ter excedido em muito as expectativas ocidentais. De acordo com uma análise da Foundation For Defense of Democracies, a Rússia produziu mais de dois milhões de munições em 2023, o dobro do antecipado.

“Faço minhas as palavras do secretário-geral da NATO quando disse que nós subestimamos as capacidades militares da Rússia. Numa primeira fase, teve algumas limitações, mas depois conseguiu recuperar, transformar a sua economia e pôr o seu complexo militar a funcionar a todo o vapor”, aponta o major-general Carlos Branco.

Além disso, esvaziou as munições dos armazéns da Bielorrússia e comprou o que pode ao Irão e à Coreia do Norte, aumentando significativamente o seu poder de fogo. “Tornou-se uma profecia autorrealizável. Nós tanto falamos do sul global que ele acabou por reunir-se, particularmente nos atores menos recomendáveis: o Irão e a Coreia do Norte”, explica Azeredo Lopes.

Leopards no estaleiro

Mas não é só no campo campo das munições que Kiev está a sentir o aperto da falta de apoio ocidental. Ao longo de quase dois anos de guerra, o Ocidente enviou 71 carros de combate Leopard A2 para a Ucrânia. Depois de vários meses de combate, muitos destes carros de combate estão completamente fora de ação, mas não pelo motivo que se poderia pensar. Segundo a organização Oryx, há registo visual da perda de 12 dos carros de combate entregues, mas a vasta maioria da frota ucraniana está parada devido à falta de peças.

Apesar de ser uma máquina robusta, várias partes deste tanque são suscetíveis de avarias e problemas devido ao desgaste que sofrem durante a sua utilização. Para poder arranjar estes veículos, os mecânicos ucranianos precisam de peças novas que possam trocar pelas antigas. No entanto, o declínio das forças armadas alemãs após a queda da União Soviética significa que muitas destas peças não existem em abundância.

Quando um tanque fica gravemente danificado em combate e é preciso enviá-lo para um centro de manutenção no estrangeiro, os mecânicos ucranianos retiram partes inteiras destes veículos para poder utilizar nos tanques que estão no terreno. Este processo é conhecido como “canibalização” e resolve muitos dos problemas para os técnicos no terreno. Mas para os mecânicos nos centros de reparação, este processo apresenta um problema completamente novo: os carros de combate não só precisam de ser reparados como autenticamente reconstruídos.

“A Ucrânia está num momento muito frágil e precisa de um apoio que parece não chegar. Os Estados europeus têm uma grande dificuldade ao nível do fornecimento, mesmo que haja vontade política”, considera a especialista em Relações Internacionais, Diana Soller.

Sebastian Schafer, político alemão do Partido Verde, visitou um dos centros de manutenção na Lituânia e reparou que existe uma “necessidade urgente de ação” para resolver o problema de falta de peças sobressalentes. Por esse motivo, a Alemanha anunciou um pacote de ajuda que é composto por uma grande quantidade de partes suplentes do Leopards A6.

É precisamente este o cenário descrito pelo major-general Christian Freuding, militar alemão responsável pelo centro de monitorização das operações na Ucrânia, que explica que este cenário leva a atrasos significativos e que a Ucrânia acaba por ficar muito mais tempo do que o necessário sem acesso a estes veículos. Para resolver esta situação, Freuding defende que o Ocidente deve fazer um esforço no sentido de melhorar as qualificações dos técnicos ucranianos, fazer um fornecimento de reposição de materiais mais focado nas verdadeiras necessidades do terreno e arranjar formas de melhorar a velocidade a que os Leopard chegam aos centros de manutenção.

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