"Sinto-me culpado por estar aqui e não lá". Danylo, 17 anos, um refugiado em Lisboa que sonha com uma Ucrânia livre

2 mar, 22:00
Danylo Kliutsko refugiado Ucrânia

Entre fevereiro de 2022 e dezembro de 2023, Portugal acolheu 58.820 refugiados ucranianos. Um deles é Danylo Kliutsko, músico prestes a completar 18 anos, que se mudou para Lamego e depois para Lisboa há mais de um ano e meio após a invasão russa. A sua é uma história como a de qualquer outro jovem, com sonhos, dúvidas e angústias típicas da encruzilhada entre a adolescência e a idade adulta. Mas também é a história de um deslocado à força, preso ao sonho de regressar à sua terra, enquanto tenta adaptar-se a um novo país, a uma nova cultura, a uma nova língua

"É como na batalha de Termópilas: tinhas Esparta e Atenas e a vida nas duas cidades era completamente diferente. Em Atenas havia a democracia, podias fazer o que quisesses, estudar, ser artista, e se não quisesses ir para a guerra não ias... Mas em Esparta era diferente – era uma cidade de soldados, prontos a fazer o que fosse preciso para proteger a Grécia. Estas duas cidades estavam ligadas, porque o exército da Pérsia ia invadi-las e todos sabiam que era assim."

23 de fevereiro de 2024, a lição de história da Antiguidade Clássica decorre em Lisboa, na véspera de se marcarem dois anos da invasão russa da Ucrânia. Professor: Danylo Kliutsko. Sumário: a batalha de Termópilas, em 480 a.C., quando 300 espartanos apoiados por voluntários de outras cidades gregas se bateram contra as vastas tropas persas e abriram caminho a subsequentes vitórias e à preservação da independência da Grécia Antiga. Acrescenta o jovem tutor: “A democracia não existe se não tivermos pessoas como em Esparta, alguém que proteja o Estado.”

Danylo tem 17 anos, vai atingir a maioridade no início de julho. Quando estalou a guerra no seu país, a mãe pegou nele e na irmã, agora com 12 anos, e trouxe-os para Portugal, concretamente para Lamego, de onde Danylo acaba de regressar de uma consulta de estomatologia. Sorri com os dentes todos para mostrar que já tirou o aparelho. “Ontem aconteceu uma coisa de doidos na dentista”, partilha. “Estava com um colete em vez de um casaco, porque quando saí de Lisboa de manhã não achei que fosse estar tanto frio. Mas quando cheguei a Lamego, ou melhor, à Régua, estava muito frio. E quando a consulta acabou ela diz-me: ‘Estás assim vestido? Nem pensar, vais levar um casaco daqui.’ E eu: ‘Não é preciso’. Ela insistiu: ‘Leva o casaco, leva o casaco’. Lá aceitei. Mais tarde, a voltar para Lisboa, descobri 15 euros em moedas e notas num dos bolsos. Fiquei preocupado e quando lhe perguntei como podia fazer para lhe devolver o dinheiro, ela disse-me: ‘Daqui a dois meses’. Só na próxima consulta!”

A língua como porta que se abre ao mundo

A história “de doidos” e a preocupação com os 15 euros que não são seus surge em resposta à questão de como tem sido a adaptação em Portugal desde que se instalou por cá, há mais de um ano e meio. A dentista que começou a segui-lo em Peso da Régua, antes de Danylo se mudar para Lisboa – onde hoje integra o projeto Residências Refúgio da cooperativa Largo Residências – não lhe cobra nada pelas consultas e tratamentos. “Não sei como é com outras pessoas [refugiadas e migrantes], mas connosco os portugueses são muito gentis, sinto que as pessoas nos ajudam, que querem ajudar-nos.”

A amiga de um amigo que está a ensiná-lo e à sua namorada, Ivanna, a falar português também não lhes cobra nada pelas aulas online. “É uma pessoa ótima a ensinar e é uma oportunidade muito boa para nós, porque tentámos encontrar cursos de português e era tudo muito caro, talvez 50 euros por aula”, conta o jovem músico, que tem uma aula por semana e que já sabe dizer várias palavras em português, embora tenha vergonha de tentar juntá-las para montar frases – algo que, adianta, costuma treinar mais quando vai ao mercado. (No final da entrevista, quando a jornalista já vai longe, há-de gritar num português com sotaque: 'Bom trabalho!')

Danylo não o sabe, mas para responder a necessidades como a dele e dos quase 59 mil ucranianos que Portugal acolheu até dezembro de 2023 foram nascendo projetos como o SPEAK for Ukraine, que assegura o ensino do português como ferramenta de integração. “O nosso principal foco é organizar grupos de partilha linguística, cultural, com uma metodologia muito informal, através da qual as pessoas aprendem uma língua, mas ao mesmo tempo criam redes de suporte informal nas suas novas cidades”, explica à CNN Ricardo López Páramo, 30 anos, coordenador operacional do projeto. “Achamos que isto é fundamental para a integração das pessoas que chegam a um novo país.”

No rescaldo imediato da invasão russa da Ucrânia, oito anos depois da fundação da SPEAK, os responsáveis sentiram a necessidade de criar um programa específico para apoiar refugiados daquela guerra e alcançaram quase o impensável. “Conseguimos lançar a plataforma 16 dias depois da invasão, e o balanço é muito positivo, até agora 2.687 pessoas refugiadas da Ucrânia já fizeram parte dos grupos linguísticos”, conta Ricardo. Para tudo funcionar em pleno, a SPEAK conta com o apoio essencial de pessoas a que chama buddies, voluntários de várias idades, nacionalidades e backgrounds, que se inscrevem no site e fazem uma pequena formação antes de doarem o seu tempo para dinamizar grupos de aprendizagem de português – e também de outras línguas.

“Até hoje tivemos aproximadamente 250 buddies, se juntarmos ao número de participantes são quase 3 mil pessoas que já fizeram parte do SPEAK for Ukraine, quase 60% cá em Portugal”, indica o coordenador do projeto que, desde 2014, já conquistou vários prémios, incluindo nos World Summit Awards, na categoria de Inclusão e Empoderamento. As restantes foram apoiadas “nos países fronteiriços com a Ucrânia”, sempre com o objetivo de ajudar refugiados a aprender a língua local e a conhecer pessoas nas suas novas comunidades, que “depois podem também proporcionar outro tipo de suporte”, como traduções, procura de emprego e alojamento, entre outras. “Através destes grupos linguísticos em formato online, conseguimos partilhar umas 13 línguas diferentes – romeno, lituano, eslovaco, alemão, polaco, checo, húngaro, espanhol, inglês…”

Para isso têm sido fundamentais parcerias com organizações e empresas como a Fundação AGEAS, a Galp, o banco Santander e a representação da Comissão Europeia em Portugal, explica Ricardo. No caso português, graças a uma parceria com a Câmara Municipal de Lisboa e com a associação Be Human, tem havido também uma componente de apoio psicológico a refugiados com traumas de guerra, garantindo “suporte emocional” às pessoas deslocadas. “O feedback tem sido muito positivo”, assegura o espanhol, que se mudou para Portugal em 2020, em plena pandemia, para se juntar ao SPEAK. “Temos tido muitos casos até de pessoas que já voltaram para a Ucrânia que, graças a estes grupos linguísticos, hoje mantêm relações de amizade e de confiança com quem conheceram. As pessoas sentem-se acompanhadas e, especialmente nos grupos presenciais, criam estes vínculos mais fortes que vão além da aprendizagem da língua.”

Dados de dezembro de 2023, quando Portugal acolhia 58.820 refugiados ucranianos. Fonte: Eurostat

O que dar a um país – ou a dois

Sem nunca ter integrado um desses grupos, Danylo teve a sorte, depois de ter passado os primeiros dois ou três meses em Lamego, de encontrar outra espécie de família em Lisboa. Há pouco tempo, graças ao projeto do Largo que apoia artistas refugiados, o jovem músico, que constrói os seus próprios instrumentos, como as tradicionais banduras e kobzas ucranianas, teve a oportunidade de atuar na Fundação Gulbenkian com o projeto Home Ensemble, uma orquestra que junta músicos portugueses, ucranianos, afegãos e de outras nacionalidades.

Na sede temporária do Largo Residências, num antigo quartel da GNR no Largo do Cabeço da Bola, sente-se tão em casa que ainda nem começou a pensar com afinco no que vai fazer quando o contrato com a cooperativa artística e cultural acabar. “Já devia estar à procura de casa”, confessa, assumindo saber o quão difícil é encontrar um apartamento para arrendar na capital portuguesa por estes dias.

Ainda sem ter completado 18 anos, há um certo desnorte quando falamos sobre o futuro – e também sobre o presente e o que continua a passar-se no seu país ao final de dois anos de guerra. “Tento ver notícias de vez em quando, mas é difícil, porque é dor, é psicologia e fronteiras… Sabes aquilo de ‘não ver, não saber, não sentir’? É muita dor. Aqui em Portugal e na Europa, quando começou a guerra, ouvi falar de pessoas que procuraram apoio psicológico porque não conseguiam dormir por causa das notícias e o psicólogo disse-lhes para pararem de ver notícias. Às vezes é preciso parar, não dá para estar sempre ligado às notícias. Sei que não é bom, porque depois quase me esqueço um bocadinho. Mas é muito difícil.” 

Quando estalou a guerra, Danylo vivia num lado do rio Dnieper em Kiev – uma “cidade muito maior do que Lisboa, com três milhões de habitantes”, faz questão de apontar – e a namorada vivia na outra margem. “Quando queríamos encontrar-nos costumava pensar ‘meu deus, estamos mesmo longe um do outro’, era para aí uma hora de viagem. Hoje já não me parece uma distância assim tão grande…” A fuga com a mãe e a irmã até Portugal foi longa: da Ucrânia, seguiram para a Polónia, dali para Berlim de comboio, depois Frankfurt, depois Paris, onde apanharam um autocarro até Madrid, de onde seguiram depois diretamente para Lamego, onde a mãe conhecia uma mulher que lhes abriu as portas da sua casa. “A minha mãe diz que não conseguiu encontrar guarida noutro país, mas não sei se acredito…”, diz com um sorriso. “Antes da guerra ela já tinha visitado Portugal, tinha ido à Madeira e estava sempre a falar de Portugal e do quanto gosta de Portugal…”

Em Kiev, a mãe de Danylo trabalhava como agente imobiliária, o mesmo trabalho que o pai continua a desempenhar na capital ucraniana. Quando o filho se juntou ao Largo Residências, a mãe veio para Lisboa com a filha mais nova, mas “não é fácil arranjar trabalho, sobretudo sem falar muito português”, pelo que está a tentar sobreviver como fotógrafa. Já Danylo vive com a namorada, também artista, dedicada a danças e canto tradicional.

Conheceram-se num encontro de danças ucranianas. “Antes [da guerra] íamos todas as semanas, havia workshops, masterclasses, festas de dança, era assim que muitos conheciam os seus namorados e namoradas. Ela é dançarina e de cada vez que íamos a um destes encontros só queríamos encontrar-nos e dançar um com o outro. Ela nunca tinha dançado antes, mas depois de meio ano a dançarmos juntos, passou a dançar mesmo bem. E estamos a tentar fazer algo parecido aqui.”

Quando lhe perguntamos o que pretende fazer no futuro, tem a resposta pronta. “Vou estar na Ucrânia, a tocar, a cantar e a dançar. Tenho alguns planos. Quando for mais velho, ou mesmo antes de ficar mais velho, não vou viver numa grande cidade, vou viver numa vila, numa casa tradicional, e organizar workshops de instrumentos, atividades culturais, talvez ter um cavalo… O meu pai também sonha com isto, uma casa tradicional e um cavalo ou dois. A minha mãe quer ficar em Portugal, mas eu quero voltar para a Ucrânia.”

Enquanto não pode voltar, o plano é tentar colmatar o que identifica como uma falha entre a comunidade ucraniana exilada. “Vês os indianos, por exemplo, e estão sempre todos juntos, fazem celebrações, juntam-se. A comunidade ucraniana está muito fragmentada, estão todos separados, então gostava de criar atividades com música e danças tradicionais. Mas aqui em Portugal vai ser mais difícil, até porque há poucos portugueses interessados nas tradições ucranianas…”

Esse seria, nas suas palavras, um primeiro teste ao projeto que gostava de implementar no regresso à Ucrânia: criar um centro cultural comunitário para ligar várias cidades e aldeias através da música e dança típicas do seu país. Depois de uma visita a Kiev no verão e outono do ano passado, para tratar de questões relacionadas com a universidade, sente que o país está mais pronto do que nunca para abraçar o seu sonho. “Para mim foi uma boa experiência, poder ver o quão desenvolvida a sociedade ucraniana está, o orgulho que têm na sua identidade ucraniana, a forma como falam ucraniano em vez de russo, como usam símbolos da Ucrânia na roupa… É mudança. Pode ser uma mudança pequena, mas os ucranianos estão mais ucranianos desde a guerra.”

Voltamos à Grécia Antiga e às divisões sociais entre os que combatem pela pátria e os que cultivam a pátria de outras formas. “Tenho um amigo da minha idade que recebeu a carta para ir para o Exército… Quando falo com ele sinto-me culpado por estar aqui e não lá, mas quando falamos ele diz-me para ficar cá e estudar aqui, diz que posso fazer muito pelo meu país mesmo aqui. Então se calhar vou estudar, ou então vou começar aqui o projeto que um dia gostava de ter lá. As pessoas precisam de trabalhar, de ter o seu dinheiro, e por vezes têm a sua profissão e a arte torna-se secundária, mas a arte também é muito importante. É como Esparta e Atenas: toda a gente deve perceber que precisa de fazer algo pelo seu país – é a minha opinião, muito nacionalista, eu sei… Mas às vezes deves fazer outra coisa pelo teu país que não combater.”

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