"Quando não se conhece a realidade, a escalada de violência acontece". A Lisboa que se abriu à imigração, as pessoas que a Cultura aproximou

31 jan, 17:33
Danylo Kliutsko, refugiado ucraniano integrado no projeto Residências Refúgio

Danylo tem 17 anos e é de Kyiv, Aman tem 28 e é de Cabul. Conheceram-se graças ao projeto Residências Refúgio, que neste momento une seis artistas refugiados num antigo quartel da GNR em Lisboa, onde vivem temporariamente enquanto exploram a sua arte. Este é o terceiro de uma série de trabalhos sobre o impacto da imigração em diferentes setores da sociedade portuguesa

Quando Danylo Kliutsko tinha 14 anos, a pandemia empurrou-o para as suas raízes. Fechado em casa “como toda a gente em 2020”, começou a ler mais sobre a história da Ucrânia. “Fui-me interessando mais e mais por todo o tipo de conteúdos históricos sobre o meu país, lendo mais sobre história e sobre a cultura ucraniana, as tradições, a música… Foi quando descobri o que era uma bandura”, partilha agarrado ao instrumento que trouxe consigo de Kyiv. “Quando vi uma pela primeira vez pensei: ‘Quero ter isto’. Então fui à procura de fabricantes, que me puseram em contacto com um senhor que me deu os materiais para construir o meu primeiro instrumento” – um kobza, parecido com a bandura mas mais pequeno, mais redondo e com menos cordas.

Em meio ano concluiu o primeiro e lançou-se ao segundo: este que agora segura nas mãos, sentado ao sol no espaço do Quartel de Santa Bárbara, no Largo do Cabeço da Bola, sede temporária da cooperativa Largo Residências. “Quando comentei com a minha professora que ia estar a construí-la nos meses seguintes, ela disse-me: ‘Qual mês seguinte? Os russos vêm aí e depois não tens o instrumento pronto!’ Ouvi aquilo como uma piada, mas ficou-me na cabeça…” Acelerou a construção da bandura. Uma semana depois de a tocar pela primeira vez, a Rússia invadiu a Ucrânia. “Mudou a minha vida”, diz de olhos postos nela. “E o Largo salvou-me.”

“Inclusão mais do que integração”

Hoje com 17 anos, Danylo vive em Lisboa desde 2022 e é atualmente um de seis artistas integrados no projeto Residências Refúgio, apoiado pelo Partis and Art for Change da Gulbenkian, a Fundação La Caixa e a DGArtes. Ao todo, dois refugiados ucranianos, dois afegãos, um iraniano e uma congolesa vivem em regime de alojamento temporário e de transição aqui, no espaço do antigo quartel da GNR para onde a cooperativa Largo se mudou após ter sido expulsa do Intendente em 2022 – e que, em breve, vai instalar-se em definitivo no antigo Hospital Miguel Bombarda, ali perto.

Ainda Danylo não tinha nascido e Marta Silva, hoje com 45 anos, já estava a mudar-se do Porto para Lisboa, concretamente para os Anjos, onde acabaria por fundar a associação cultural SOU, espécie de mãe tornada filha do Largo Residências, “muito mais abrangente” e com uma componente de economia social e solidária, explica a fundadora e diretora artística, bailarina de formação.

"Se para quem nasceu cá, se para quem se formou cá, já não é fácil entrar nos nichos de programação, o que fará para quem acaba de chegar, que não domina a língua, não domina os códigos, não domina a burocracia?", questiona Marta Silva, fundadora do Largo Residências

Há duas décadas, Marta encontrou “um paraíso” nos Anjos, hoje freguesia de Arroios após a reforma administrativa, um bairro de casas baratas e rico em pessoas, desde artistas a jovens famílias e gente a chegar de vários sítios, mesmo ao lado do Intendente, “desde sempre muito caracterizado pela imigração”, recorda. “Era extraordinário, porque de certa forma vias nesta população, de forma muito generalizada, tudo aquilo que não vês agora neste discurso [anti-imigração] – gente muito aberta, muito disponível para a diversidade, com muito interesse na coesão social, independentemente das diferenças. Ali entre 2007 e 2017, até a especulação imobiliária se apoderar do bairro, vivemos uma década de incrível comunhão, aceitação, respeito e uma diversidade muito saudável, de inclusão mais do que integração.”

Isso foi possível graças à SOU, que na Rua dos Anjos passou a ser muito frequentada pela população local, do bairro das ex-colónias, mas também do bairro inglês, do bairro das Andrades e do Largo do Intendente. Inicialmente, a associação vivia à base de aulas com “alunos dos três aos 90 anos”, mas foi crescendo até precisar de uma equipa permanente e de garantias de sustentabilidade, dando origem ao Largo Residências, em 2011. “Éramos um projeto ao serviço do território e, entre as várias famílias e pessoas que lá habitavam, víamos quase todas preocupadas com o desenvolvimento do bairro, havia esse pensamento comum.” 

Do lado de quem financia a Cultura, contudo, “projetos ao serviço do território” não eram majorados como são hoje. “Nós até concorríamos aos apoios, só que ‘trabalho local e comunitário’ não estava nas palavras-chave da altura, pelo contrário, recebíamos críticas de que faltava a ‘internacionalização’, não entrávamos de todo naquilo que são hoje linhas prioritárias de trabalho. Questões como a representatividade nas programações só chegaram às políticas públicas de Cultura há pouco tempo. Há 15 anos, esquece.”

As coisas começaram a mudar com o BIP/ZIP, um programa de intervenção em bairros prioritários, com bolsas para variados projetos, lançado em 2010 pela então vereadora da Habitação da Câmara de Lisboa, Helena Roseta – e que, numa década, chegou a 143 mil habitantes da capital e financiou mais de 350 projetos e mais de 2 mil atividades, envolvendo 625 entidades nos 67 territórios de intervenção, com um investimento superior a 14,1 milhões de euros. Mas ainda antes do BIP/ZIP, foram a energia e o empenho de artistas como Marta ou Miguel Abreu, da Academia de Produtores Culturais, que começaram a dinamizar uma zona até então votada ao tráfico de droga, prostituição e imigração, sem investimento ou atenção política e que a maioria dos lisboetas tendia a evitar.

“Lisboa é uma cidade muito acidentada e costumo dizer que o Festival TODOS aconteceu também por acidente”, partilha Miguel sobre o projeto lançado em 2009 em parceria com a autarquia, renovado a cada três anos – e que, após um ciclo no bairro das Galinheiras, está prestes a voltar a Arroios. Com o objetivo declarado de “acabar com os guetos territoriais” através do “convívio entre culturas de todo o mundo”, a proposta foi abraçada pelo então presidente da Câmara, António Costa, na década passada. “Eu não sabia, mas quando falámos com ele, ele já queria implementar projetos no Intendente e noutros bairros com o intuito de os reformar. Depois acabámos por ser recebidos de braços abertos também pela comissária da PSP local, pela polícia municipal… Tudo começa e acaba nas pessoas.”

A cultura como “cola social”

Não há como escapar à “inevitabilidade” da imigração, defende Miguel. “Não vale a pena achar que as coisas vão ser diferentes, porque não vão. E isto não é contra todos, é com todos. Claro que estamos muitas vezes a lidar com questões difíceis, mas não é a escondermo-nos que as resolvemos.” O produtor evoca a questão do tráfico humano, hoje um dos grandes problemas no Martim Moniz e, especificamente, na Rua do Benformoso, a juntar ao tráfico de droga “tendencialmente dominado por pessoas não-imigrantes” mas que apanha muitas delas, mais vulneráveis e desesperadas, na sua rede.

“A questão é como julgamos e trabalhamos a dignidade humana, que nos afeta a todos, e ou há políticas públicas para integração e para combater os problemas que sabemos que existem, ou isto não se resolve”, defende. “As pessoas não podem ser vítimas de escravatura por redes de tráfico dos seus próprios países a operar no Martim Moniz. E mesmo nesses casos, quando falamos com elas e temos aquela conversa que os nossos avós tinham com os nossos tios há muitas décadas – ‘Vê lá se não é melhor voltares de França, ao menos aqui tens o apoio da tua família’ – quando perguntamos sobre a possibilidade de regressarem a casa, eles dizem ‘Nem pensar’. Preferem viver num quarto de hostel com mais três ou quatro pessoas aqui do que arriscarem-se a levar um tiro na cabeça quando saem à rua numa favela do Brasil, por exemplo. É tudo relativo, depende de todos e para isso temos de conhecer as pessoas.”

Depois de dois anos temporariamente instalada aqui, a Largo Residências vai mudar-se em definitivo para o antigo Hospital Miguel Bombarda

Menos mensurável do que a Saúde, a Educação ou a Habitação, é sobretudo a Cultura que aproxima pessoas, funcionando como uma espécie de “cola social”, nas palavras de Marta Silva, capaz de unir gente de diferentes contextos e condições, em qualquer parte do mundo. “Os momentos e os contextos culturais são aquilo que consegue trazer um pedaço de comunidade em contacto. Como é que cidadãos como o Danylo passam a pertencer, como é que começam a criar relações de confiança com terceiros? É, muitas vezes, nestes contextos em que não estou com uma etiqueta, em que não sou só a minha condição, que eu começo a ser um cidadão, que começo a criar um sem número de situações que trazem bem-estar, felicidade, amizades, redes de apoio e de solidariedade.”

Graças ao Largo, que desde 2022 acolheu 40 projetos em permanência, totalizando 190 trabalhadores da área da Cultura e complementares, a par dos espaços de uso rotativo e iniciativas de outras entidades, é isso que começa agora a acontecer com músicos como Aman Ehsan. O afegão vivia há cerca de um ano e meio num dos centros de acolhimento do Conselho Português de Refugiados, na Bobadela, quando soube que a cooperativa procurava artistas do seu país para integrar o Residências Refúgio – uma necessidade defendida pela dinamizadora do projeto com a falta de representatividade desta comunidade após o regresso dos talibãs ao poder no Afeganistão em 2021, que gerou uma nova vaga de migração forçada também para Portugal. Sob os islamitas, o Afeganistão tornou-se o único país do mundo onde a música é proibida, o que imprimiu “em todos nós o dever de preservar um património que pode desaparecer e que, ainda para mais, tradicionalmente é muito ensinado de geração em geração, passado de pais para filhos”.

Formado em percussionismo clássico e também em Relações Internacionais, o baterista, hoje com 28 anos, vive há cerca de um ano no Largo do Cabeço da Bola e é um de quatro músicos que atualmente integram o projeto de apoio a refugiados com formação em cultura (a par de um artista plástico e de uma artesã). Depois de encontros iniciais entre músicos portugueses e afegãos, e da criação da banda Not Forbidden, o projeto passou a juntar também músicos ucranianos como Danylo e foi rebatizado Home Ensemble, uma orquestra que, no último fim de semana, atuou numa das mais prestigiadas instituições culturais do país.

O caminho até ao palco da Fundação Gulbenkian envolveu algum tempo e muito trabalho e investimento de todos, incluindo dos músicos Danylo – que para além de tocar, cantar e “dançar um bocadinho”, estuda numa universidade ucraniana (tem aulas online desde que veio para Lisboa) – e Aman, que acumula os projetos musicais com um trabalho a contrato numa empresa portuguesa subsidiária do TikTok. Com mais 11 anos de vida do que o ucraniano, o afegão classifica a vinda para Portugal como o seu terceiro renascimento. “O primeiro foi nascer e crescer no meu país. O segundo foi quando terminei a escola, antes de ir estudar no Instituto Nacional de Música do Afeganistão, quando percebi que tinha de ajudar a minha família financeiramente, mesmo jovem tu percebes essas coisas. Estou a sustentá-la até hoje.”

O mais velho de cinco filhos, Aman é o único que conseguiu fugir do Afeganistão. “Amo-os e estou em contacto com eles a cada segundo.” Questionado sobre o facto de a música ter sido banida no seu país-natal, Aman responde com pesar: “A música agora é secundária. As pessoas não têm comida, as mulheres e raparigas, como as minhas três irmãs, não podem andar na rua, nem mesmo com o véu. Imagina teres este telemóvel, esta tecnologia na palma da tua mão, sem a poderes usar. Seres obrigada a ficar em casa e a ver a vida a acontecer pela janela…”

Aman aprendeu a tocar todo o tipo de instrumentos de percussão. "Marimba, xilofone, djambé, bongo, conga, tudo... mas a bateria é a minha vida"

Antídoto para a violência

Apesar de escassas, as estatísticas mais recentes sobre as relações entre imigração e Cultura mostram como continua a ser uma espécie de parente pobre também no que toca aos estrangeiros que Portugal acolhe. Do total de 52.597 vistos de residência atribuídos nos postos consulares em 2022, apenas 6,4% foram por “atividade altamente qualificada, docente ou cultural”, indicam números do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) citados no mais recente relatório do Observatório das Migrações. No mesmo ano, do total de 143.081 autorizações de residência concedidas pelo extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), 2.846 abrangeram pessoas enquadradas na mesma categoria.

É senso comum que tópicos como o Ambiente ou a Cultura tendem a encher as bocas de quem tem a barriga cheia e acesso garantido a comida, cuidados de saúde, casa para viver e trabalho para pagar as contas. Mas é sobretudo através da cultura que se criam oportunidades de aproximação e troca de experiências, mais do que num guiché de apoio à integração. E isso reveste projetos como o Festival TODOS ou o Largo Residências de uma importância que nada nem ninguém pode substituir. Apesar de não gostar de “pessoalizar”, Miguel Abreu dá como exemplo dessa aproximação o caso da dona Rosa, que vive há décadas sozinha com o marido no bairro da Graça e que, “a partir dos nossos ateliês de costura, passou a acolher famílias de refugiados na sua casa, inclusivamente no Natal”.

“A cultura tem um papel fundamental, principalmente quando sai fora de portas”, acrescenta Marta Silva. “Sobretudo quando estávamos no Intendente, era quase tudo na rua, nas coletividades, na casa do vizinho, porque é aí que diferentes pessoas de diferentes condições coabitam e partilham chão, partilham mesa, partilham palco, partilham banco e mesa de esplanada. E depois até já se conhecem, até levam juntas os filhos à escola, até já se encontram no parque infantil…” Foi sempre esse o espírito também do TODOS, nas palavras de Miguel com uma “filosofia nómada” desde a sua conceção, guiado por “uma preocupação com o trabalho de proximidade e todo o tipo de projetos, desde concertos até refeições partilhadas e à palavra falada, em espaços públicos mas também nas ruas, em vãos de escada, nas casas das pessoas – projetos comuns onde as barreiras decaem perante os objetivos artísticos”.

Esses objetivos, reforça, passam por criar “uma cultura de convívio, espaços de conversa e encontro, de partilha de memórias e histórias, para todos percebermos que o que nos assusta não é assim tão diferente de país para país”. Dá como exemplo “o flagelo da habitação, que é de todos, portugueses e imigrantes”, uma de várias problemáticas com o potencial de aproximar mais do que criar fossos, “sempre com base nesta tensão criativa que é positiva”. Por oposição à tensão tendencialmente negativa entre diferentes comunidades e culturas, perguntamos? “Na verdade, não acho que sejam tensões, são mais perceções erradas”, responde.

“Há um racismo latente na nossa sociedade, não vale a pena escamotear, mas diria que é um racismo desmazelado… Há desconfianças, um bloqueio de princípio, um sentimento de estranheza a priori, mas encontramos muita abertura das pessoas para conhecerem e contactarem com outras culturas”, diz Miguel. “Veja-se a freguesia de Santa Maria Maior, parece haver uma concentração de imigrantes só ali, mas eles estão espalhados pela cidade, há uma perceção errada que é explorada pela extrema-direita, por pessoas que não conhecem a realidade. E quando não se conhece a realidade, a escalada de violência acontece.”

Do alto dos seus 28 anos, Aman sabe-o melhor do que muitos. Graças à carreira na música, que o Largo está a ajudar a preservar, já viajou até aos EUA para atuar na Casa Branca, em 2012, até à Finlândia, a Omã, ao Qatar, à Turquia, ao Dubai, à Dinamarca, até chegar a Portugal. Diz que “a religião é só uma desculpa como outras para controlar as pessoas” e que foi porque teve a oportunidade de estudar que hoje o sabe.

Quando ouve conterrâneos insatisfeitos com a vida em Lisboa, diz-lhes que “se o sítio não é bom, é nosso papel fazer dele um sítio melhor”. E quando lhe perguntamos o que pretende fazer quando terminar o contrato com o Largo, tem a resposta na ponta da língua. “O meu plano é construir algo interessante, uma coisa que seja nova para os outros e até para mim, e também arranjar uma casa com privacidade e uma cave para poder ensaiar”, diz num tom calmo, sorriso plácido. “Quero chegar a uma posição em que possa dizer ‘O Afeganistão é o meu país, mas este é o meu lar’."

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