opinião
Diretor executivo CNN Portugal

Quando os sádicos são guardas, quando os racistas estão armados, quando as vítimas não têm nome

16 dez 2021, 19:31

Portugal junta-se à Polónia, Grécia, Sérvia ou Roménia na lista de países de tortura policial sobre migrantes. Os xenófobos, os racistas e os ignorantes que assumem que o mal está para lá das fronteiras que querem fechar têm de olhar com atenção para a abjeção, para as imagens de sete GNR a violentar migrantes sem nome: o bem e o mal não têm fronteiras, estão ambos do lado de lá – estão ambos do lado de cá  

Quando os agressores estão fardados e armados, as vítimas não têm lei. Os migrantes de Odemira violentados pela sevícia de sete GNR não têm sequer nome nem pátria nem documentos nem direitos nem cidadania nem nada, são carne para canhão dos traficantes que os transportam, dos patrões que os exploram e de pelo menos sete (ou nove?) agentes de segurança do Estado racistas, sádicos, violadores da lei, dos direitos e da dignidade humana. O abuso de autoridade está longe de ser caso isolado, mas este caso revelado pela CNN Portugal e pela TVI só não fere uma pedra. Portugal faz a partir desta quinta-feira parte da indigna lista dos países onde há demonstradamente polícias a sovar migrantes. 

A única arma eficaz contra a violência policial e os abusos de poder tem sido não a pistola mas a câmara. Em quase todos os casos documentados ou há registo de imagens ou não há provas, caíram pelas escadas abaixo, chocaram contra a maçaneta da porta, ou inventaram, autoinfligiram mazelas, até estavam a pedi-las. É por isso aliás que suspeitos (como João Rendeiro) são fotografados na detenção: para sua própria proteção. Se conduzir, não beba; se entrar numa esquadra, filme-se.

Neste caso não foi preciso levar câmaras, elas estavam lá. É a maior prova de sadismo, o facto de os próprios agentes filmarem as agressões, pelo menos sete filmes, guardarem-nos sabe-se lá para que plays e replays, sabe-se lá para que redes ou solidões, sabe-se lá para que onanismos. 

Como em todas as imagens, falta sempre contexto, não sabemos o que houve antes nem houve depois. Mas não há contexto algum que torne aceitável estas agressões, estas humilhações, enfiar um tubo com gás pimenta no nariz e na boca de um homem, “chupa isso”, rir dele, “é gás pimenta, ó animal”, queres water, é?, “filho de uma grande puta”, encostar uma shotgun à cara, inventar operações stop para ir sacar mais para a sessão seguinte, reguadas, palmadas, agacha-te, faz flexões, é ver as imagens e ler as notícias, sequestro, tortura, violência, insultos racistas, saber o que o Ministério Público detalha, agiram com satisfação e desprezo, com ódio, contra alvos fáceis, acusados de 33 crimes, sequestro, ofensas à integridade física qualificada, abuso de poder. 

Mas quem são as vítimas? 

Quem são as vítimas?

Quem?

Quem são as vítimas, estas e outras, as filmadas e as nunca filmadas, as desconhecidas nestas e noutras paragens onde há fivelas e cassetetes?
Estas não sabemos quem são, um já morreu num acidente, os outros já terão fugido deste país para onde quiseram fugir. Mas sabemos que muitos migrantes que ali estão a trabalhar nas estufas alentejanas vivem amontoados em casas ou contentores, trabalham horas a fio a colher os belos frutos portugueses, vêm do Bangladesh, do Nepal, do Paquistão, muitos ilegais, sem documentos, não falam, escondem-se, não protestam, têm medo, são tratados como animais pelos que os traficaram, pelos que os exploraram, pelos que, sabemos e vemos agora, os sovam à porta de uma esquadra.

Sabemos quem são os sete GNR que se filmaram a si próprios. Sabemos quem são mais dois que também estão noutro processo relacionado, em que há relatos mas não imagens. Terrível ironia esta, em que o centro da notícia são os agressores e as vítimas são ausentes. Como quase sempre. São uma abstração. São migrantes. São outros. São quaisquer. São vítimas.

Os agressores pertencem a uma força de autoridade de natureza militar que tem como missão “assegurar a legalidade democrática, garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos.” Não diz portugueses, diz cidadãos. Não diz raça nem cor, nem poderia, porque é a lei. Claro que sete corvos negros não fazem um inverno, o próprio comandante da esquadra colaborou com a investigação, a GNR não são estes homens, mas estes homens são GNR e não são os únicos suspeitos, acusados ou condenados por violência policial em Portugal.

Portugal está a partir de agora na lista infame de países onde há violência policial contra migrantes filmada, documentada, noticiada. Uma investigação jornalística recente (ARD e Der Spiegel da Alemanha, Lighthouse Reports da Holanda e ARF e da Suíça) filmou agentes policiais mascarados na Croácia, Roménia e Grécia a sovar violentamente e a disparar em direção a refugiados nas fronteiras da União Europeia. Há denúncias da Amnistia Internacional de tortura e devolução de refugiados para a Turquia e pressão sobre a UE. Há relatos de violência na Sérvia. A Hungria está a violar regras comunitárias de deportação de refugiados. 

Esta lista de violadores da lei europeia é antes de mais uma lista de violações de direitos humanos. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão. Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.”

Há racismo em Portugal em esquadras. Há xenofobia em Portugal em partidos políticos. Há quem diga “vai para a tua terra” no Parlamento. E há gente que, no seu fundo poço do preconceito, essa mistura agressiva de ignorância e medo, acredite mesmo que o outro representa o mal. Há quem queira fechar fronteiras ao estranho e cerrar os punhos contra o estrangeiro e descerrar a boca para insultos à cor ou à religião. Há dez dias, um grupo de trabalho das Nações Unidas chamou os jornalistas para se dizer chocado com os relatos de violência policial em Portugal. Saíram umas notícias, estão a preparar um relatório. Vá ao Google e procure notícias sobre brutalidade policial, sobretudo contra africanos. Não encolha os ombros, não “são só uns casos”, veja as próprias fotografias, ouça os relatos, avalie as estatísticas das queixas.

Estes casos de Odemira mostram que o bem e o mal não escolhe lados, há bem e mal do lado de lá e do lado de cá. O mal está naqueles Guardas, Nacionais, Republicanos, eles são os que agridem, eles são os sádicos, eles são o ódio. O bem e o mal não têm fronteiras. A lei tem. Os direitos humanos têm. E humanos somos eu e você também: dizemos que está tudo bem, fechamos as fronteiras do país, as fronteiras da nossa cabeça?

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