“A uma estrela que nunca deixará de brilhar”: Gino Mader (1997-2023)

17 jun 2023, 13:42
Gino Mader (Getty Images)

O ciclista helvético morreu, após uma queda, na quinta etapa da Volta à Suíça. Durante a sua curta carreira, marcou a vida de milhares, tanto na estrada como fora dela

Se há palavras que custam a escrever são as de homenagem a quem nos deixou demasiado cedo. A morte de Gino Mader, gravemente acidentado durante a quinta etapa da Volta à Suíça, pôs todo o mundo de ciclismo de luto e vai ser sentida pela modalidade durante anos.

Num desporto notavelmente fértil na produção de vilões, poucos eram tão consensuais como o corredor suíço. A sua conduta em cima da bicicleta granjeou-lhe o respeito dos colegas, e a sua personalidade extrovertida, consciência e entrega às causas que mais o tocavam, que vamos explorar mais à frente, fizeram dele uma espécie de figura de culto entre os fãs e jornalistas que cobrem a modalidade.

A vida de Gino Mader cruzou-se com o ciclismo muito antes sequer de ter pegado numa bicicleta pela primeira vez. Os seus pais eram ciclistas e deram-lhe o nome em homenagem a Gino Bartali, o campeoníssimo italiano, vencedor de três Giri d’Italia e duas Voltas a França, e cujas ações durante a II Guerra Mundial, durante a qual ajudou os judeus italianos a fugir da morte certa, lhe valeram o título de “Justo entre as Nações”.

A maioria dos adeptos da modalidade ouviu falar de Gino Mader pela primeira vez em 2018. Juntamente com Marc Hirschi, liderou uma geração de corredores suíços que queria voltar a colocar o país na rota dos grandes triunfos após a reforma de Fabian Cancellara. Nesse ano, finalizou no pódio da Volta a França do Futuro, batido apenas por Tadej Pogacar, amplamente considerado o melhor ciclista da atualidade, e Thymen Arensman, e à frente de nomes como Aleksandr Vlasov e o nosso João Almeida. Esse terceiro lugar, juntamente com as duas vitórias em etapa, colocaram-no na rota do World Tour e das melhores equipas do mundo. O melhor momento da época, no entanto, chegou em setembro, quando formou uma dupla demoníaca com Hirschi que levou o seu colega ao título mundial de sub-23.

Em 2019, surge o primeiro contrato profissional com a Team Dimension Data, a única equipa africana do World Tour, cuja missão, mais do que ganhar corridas, era promover o ciclismo e a bicicleta em África. A ligação de Mader à promoção da sustentabilidade no continente africano reforçou-se neste ano, e nem mesmo a ameaça do fim do projeto, quando a Dimension Data foi comprada pela tecnológica japonesa NTT e não prolongou o patrocínio para lá de 2020, conseguiu pôr termo à mesma.

Mader precisava de um projeto mais estável para poder crescer, algo que se materializou na Bahrain-Victorious, equipa diretamente patrocinada pelo governo do pequeno Estado do Golfo Pérsico. Com o novo coletivo chegou a afirmação no mundo do ciclismo. Em maio de 2021, conquista a sua primeira vitória de etapa numa Grande Volta, na sexta etapa do Giro d’Italia, sendo o único da fuga a resistir aos ataques e acelerações do grupo dos favoritos para triunfar na ascensão a Ascoli Piaceno.

Gino Meder festeja a vitória na sexta etapa do Giro d'Italia 2021 (Getty Images)

No mês seguinte, nova vitória ao mais alto nível, desta vez na última etapa da Volta a Suíça. Mas o verdadeiro momento da sua carreira chegou na Volta a Espanha desse ano. Antes da segunda etapa, Gino Mader lançou um desafio a si próprio: doar um euro por cada corredor que batesse nas 21 etapas da competição a uma organização ambiental. O pequeno jogo entusiasmou a imprensa e os adeptos, que corriam para o Twitter após o final de cada etapa para o update diário do corredor suíço. "É pouco dinheiro para um ciclista. Mas espero que seja uma boa soma no final da Vuelta", disse Mader ao site CyclingNews a meio da Volta a Espanha, já o total a doar seguia nos milhares.

A Volta a Espanha dificilmente poderia ter corrido melhor: Mader acabou a corrida em quinto e venceu a classificação do melhor jovem, atribuída ao melhor corredor sub-25, batendo diretamente Egan Bernal, vencedor da Volta a França de 2019 e do Giro desse ano. O total de euros doados no final da corrida era de 3.159, mas Mader tinha outra surpresa. “Twitter, 10 euros por cada corredor que terminou atrás de mim na classificação geral?”, questionou o suíço.

Gino Mader celebra a conquista da classificação do melhor jovem da Volta a Espanha de 2021, fazendo uma vénia ao público espanhol presente em Santiago de Compostela (Getty Images)

A organização escolhida pelos adeptos para receber o dinheiro, a JustDiggit, que tem como missão rearborizar o continente africano, acabou por levar para casa 4.529 euros devido à prestação de Mader nessa Vuelta, que renovou o compromisso para 2022: por cada corredor que batesse durante essa temporada, iria doar um franco suíço para combater as alterações climáticas.

“Quando era miúdo, tive a oportunidade, a sorte de ver glaciares. ‘A face dos Alpes’, o ‘gelo eterno’. Não há nada de eterno neles, pois os glaciares do mundo perdem cerca de 300 mil milhões de toneladas de gelo todos os anos. Espero que as gerações futuras também possam desfrutar dos glaciares”, escreveu o suíço no Twitter.

A época de 2023 marcou o reencontro com um inimigo que muitos de nós já descartámos, a covid-19. Mader estava programado para correr o Giro d’Italia, mas uma infeção pelo coronavírus alterou os seus planos. O seu regresso às competições por etapas chegou nesta Volta à Suíça, onde provavelmente não teria estado presente caso a planificação da temporada pudesse ter sido seguida.

A morte cruel de Gino Mader é uma terrível lembrança do equilíbrio frágil da vida em duas rodas. É fácil esquecermo-nos que Van der Poel, Pogacar, Vingegaard, Van Aert, Evenepoel, esses homens que vemos como deuses entre os comuns dos mortais, arriscam a própria vida entre estradas estreitas, pavês, descidas velozes e curvas em cotovelo, vestindo nada para além de um capacete e um equipamento de lycra. Uma travagem mais tardia ou um simples toque na roda do ciclista da frente podem descarrilar todo o trabalho de uma vida e a vida ela mesma.

Entre os milhares de homenagens desta sexta-feira, há a destacar a de Romain Bardet, outro ciclista muito acarinhado por colegas e adeptos, que capta de forma perfeita os sentimentos de um colega de profissão:

“Como. E porquê. O que é que nos resta agora? Os nossos olhos a chorar, os nossos pensamentos devastados. Somos todos Gino, a descer cada descida cada vez mais depressa, no limite do equilíbrio. A namoriscar com os nossos limites curva após curva. Afinal de contas, já o fizemos mil vezes antes. É sombrio o dia em que o destino arrebata um dos nossos, um acrobata em roupas de lycra, com uma injustiça que nos despedaça e que nada pode reparar. Só quando a brutalidade nos apanha e nos magoa para sempre é que nos apercebemos de que estamos inconscientes. Se ao menos a sinceridade dos nossos pensamentos pudesse confortar os que ficam. Fazemos este desporto pelas emoções, mas nunca, nunca, nunca para ver a nossa família enlutada. A uma estrela que nunca deixará de brilhar. Gino”.

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