Fehér morreu há 20 anos, mas a imagem do jogador caído no relvado permanece na memória de muitos. O que mudou desde então?

25 jan, 09:00
Miklós Fehér (AP/Armando França)

O momento chocou o país e o mundo do futebol. Duas décadas depois, houve alterações positivas a vários níveis - mas continua a haver limitações e lições a aprender

É uma imagem que permanece na memória de muitos portugueses. O cartão amarelo, o sorriso, a queda desamparada e o consequente desespero de colegas e adversários. Miklós Fehér morreu há exatamente 20 anos, no dia 25 de janeiro de 2004, no Estádio D. Afonso Henriques, nos minutos finais de um disputadíssimo V. Guimarães-Benfica.

A morte súbita do futebolista húngaro despertou a consciência de muitos pais e jovens. "A seguir ao Fehér, a onda de primeiras consultas durou quase seis meses. Os jovens apareciam espontaneamente, ou acompanhados pelos pais, para ver se tinham algum problema ou corriam risco de morte súbita”, disse em 2014, ao jornal i, o professor Nuno Cardim, então cardiologista do Hospital da Luz e atualmente coordenador do serviço de cardiologia do Hospital CUF Descobertas.

Os organismos que gerem o futebol e o poder político português também procederam a alterações regulamentares e legislativas. A presença de um Desfibrilhador Automático Externo (DAE) em cada estádio da Liga passou a ser obrigatória na época 2004/05, a seguinte à morte de Fehér, de acordo com um artigo do Maisfutebol, datado de 2007.

Em 2012, o Governo de Pedro Passos Coelho deu mais um passo, ao publicar um decreto-lei (n.º184/2012), o qual estabelece, no ponto d) do artigo 5.º, a obrigatoriedade da instalação de equipamentos DAE em “recintos desportivos, de lazer e de recreio com lotação superior a cinco mil pessoas”.

Apesar de todas as mudanças regulamentares, legislativas e do aumento da consciencialização do público, ainda há fatores que permanecem inalterados. Embora seja indiscutivelmente útil na reanimação de vítimas de paragem cardíaca, o desfibrilhador continua a apresentar limitações, nomeadamente na sua utilização em ambientes húmidos.

Naquela noite de janeiro chovia intensamente em Guimarães. Fehér e os restantes colegas e adversários tinham os equipamentos encharcados. Segundo as recomendações do SNS24, é necessário que o tórax da vítima esteja seco antes de serem colocadas as placas autoadesivas do aparelho.

Também de acordo com o manual do INEM para a utilização da desfibrilhação automática externa, o tórax húmido “faz divergir a corrente pela superfície do tórax, diminuindo a eficácia da desfibrilhação”.

Estes factos terão pesado na decisão das equipas médicas naquela noite de dilúvio. No dia seguinte à morte do jogador, o médico do Benfica na altura, João Paulo Almeida, citado pelo Público, afirmou que “não foram utilizados meios técnicos de ressuscitação por decisão médica”.

A autópsia a Miklós Fehér foi inconclusiva, mas apontou uma grande suspeita: a cardiomiopatia hipertrófica, uma doença hereditária que afeta o coração e que não tem cura.

“O grande desafio é encontrar um tratamento [para a cardiomiopatia hipertrófica]. Há alguns que controlam os sintomas, mas nenhum é dirigido à causa da doença” disse ao Observador, em 2021, Maria Carmo-Fonseca, presidente do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes (iMM), que investiga esta patologia há vários anos em busca de uma cura.

De acordo com a publicação, os testes genéticos são incapazes de identificar entre 30 a 60% das pessoas com mutações. E mais: segundo Carmo-Fonseca, em muitos doentes, o primeiro sintoma da doença é, como aparentemente no caso de Fehér, a paragem cardiorrespiratória súbita.

Estarão as realizações, as televisões e as organizações mais sensíveis ao sofrimento?

Por sorte ou azar, as câmaras da SportTV estavam focadas em Fehér no momento do desmaio. Tudo foi filmado: a chegada das equipas médicas, as manobras de ressuscitação, o desespero de Miguel, Tiago e Simão Sabrosa.

As imagens do colapso do jovem jogador húngaro não foram filtradas e foram repetidas ad nauseam, noite dentro, em todos os principais canais. Milhões de portugueses, desde crianças a idosos, viram exaustivamente os últimos momentos da vida de Fehér e todo o sofrimento envolvente.

Desde então, as organizações que mandam no futebol um pouco por todo o mundo elaboraram protocolos para as várias situações disruptivas que podem ocorrer. As invasões de campo, por exemplo, já não são exibidas, para alegadamente tentar evitar que mais pessoas sigam o exemplo.

Os mais novos e os adeptos do futebol internacional testemunharam recentemente um episódio semelhante ao de Fehér durante o Euro 2020, quando Christian Eriksen sofreu uma paragem cardíaca no final da primeira parte do Dinamarca-Finlândia.

Embora não tão diretas, a realização desse jogo também mostrou imagens sensíveis: o desespero dos jogadores dinamarqueses, as massagens cardíacas a Eriksen e, sobretudo, a mulher do jogador no relvado, lavada em lágrimas, enquanto era consolada por Simon Kjaer e Kasper Schmeichel, colegas de equipa do marido.

Nas redes sociais, multiplicaram-se as críticas à realização e aos canais que transmitiram o jogo, como a TVI e a BBC, por emitirem essas imagens. Na altura, Jean-Jacques Amsellem, realizador que liderava a equipa responsável pelo feed global da competição, justificou ao L’Équipe (conteúdo pago) a decisão de transmitir certas imagens.

"Como podem imaginar, não existe um manual para este tipo de coisas. Havia uma imagem em câmara lenta em que podíamos vê-lo cair muito claramente, mas eu forcei imediatamente as minhas equipas a não se focarem nele, a não o filmarem mais", disse Amsellem.

"O nosso produtor estava em conversações constantes com a UEFA. As instruções eram claras: disseram-nos para não fazermos planos aproximados, para não filmarmos a massagem cardíaca, mas que não havia qualquer problema em filmar a emoção envolvente”, explicou. "Se fizermos um plano geral, não mostramos a emoção. Isso pode ter acontecido durante muito tempo, mas também temos de transmitir o que se sentiu no estádio. Mostrámos a tristeza e a angústia das pessoas, dos jogadores, da equipa técnica e dos adeptos. Também vimos união neste momento de grande ansiedade, tinha de ser transmitida. Não lhe chamaria voyeurismo”, completou.

Também a UEFA mereceu críticas, desta vez da parte de jogadores e equipas técnicas. O selecionador dinamarquês, Kasper Hjulmand, por exemplo, lamentou que a organização tenha obrigado os jogadores a retomar o encontro no próprio dia ou no dia seguinte.

“Não creio que tenha sido correto dar-nos a nós e aos jogadores a opção de sair [para o campo] e terminar o jogo. Senti que os jogadores - e nós, que lhes somos próximos - foram colocados sob essa pressão e que lhes foi colocado esse dilema. Foi uma situação extremamente difícil. A única verdadeira boa liderança teria sido meter os jogadores num autocarro e mandá-los para casa, para depois se tratar do assunto”, afirmou Hjulmand, citado pela Sky Sports, numa conferência de imprensa poucos dias depois do incidente.

Talvez o melhor exemplo de cobertura televisiva tenha acontecido no mês passado, a 16 de dezembro de 2023, quando o galês Tom Lockyer desmaiou aos 59 minutos do jogo que opôs Bournemouth e Luton Town. Apesar de ter sido mostrado o desmaio do capitão dos visitantes, uma vez que a câmara principal estava focada na zona do campo onde o jogador se encontrava, não houve planos aproximados e apenas se vislumbrou a saída do galês de campo, numa maca.

Isenta de críticas ficou também a atuação da Premier League, que de imediato, juntamente com as partes relevantes, pôs de lado o reatar instantâneo da partida e dias depois anunciou que o jogo iria ser repetido na sua totalidade, e não apenas a última meia hora, numa data a definir.

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