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O ministro no espelho

14 jul 2023, 19:53

O comportamento do ministro Pedro Adão e Silva quase conseguiu suplantar a demissão de um secretário de Estado suspeito de corrupção, um conselho de ministros extraordinário, a apresentação de um pacote de medidas para a Saúde do maior partido da oposição, uma cimeira da NATO, as buscas na casa de Rui Rio e na sede do PSD, o novo adiamento do diploma de privatização da TAP, entre outros eventos, certamente relevantes mas talvez não tão preocupantes. 

O homem da Cultura no governo da maioria desdobrou-se em entrevistas a revistas, rádios e jornais, explicações, justificações e que mais, munido de pouca originalidade, muita pesporrência e quase nada a apresentar sobre a sua própria pasta. Adão e Silva, ex-dirigente do PS, ex-comentador na RTP, ex-professor no ISCTE e ex-comissário de comemorações, é um homem com um percurso inteligente porque metodicamente inatacável e inatacável porque inteligentemente indiferente. 

Presença regular nas televisões ao longo das últimas duas décadas é, sem dúvida, uma cara familiar com a enorme vantagem de ninguém conseguir apontar uma única posição que tenha assumido durante esse tempo. Foi comprometido sem nenhum outro compromisso que não esse. E, por isso mesmo, um dos trunfos que António Costa conseguiu apresentar para a equipa do seu terceiro governo. 

O problema é que, desde então, o nacional-porreirismo que havia insuflado o seu recrutamento não foi acompanhado por uma adaptação às novas funções. Pelo contrário, o ministro Adão só difere do comentador Adão no facto de, pela primeira vez, dizer algo com uma durabilidade na memória que se estende para lá do fim da respetiva frase. 

“Os deputados [da Comissão de Inquérito] são uma espécie de procuradores do cinema americano de série B”, “tudo é prolongado naquele género de comentário tipo reality show”, que “contribui para a degradação das instituições e da democracia”, defendeu, em entrevista à TSF, recusando retratar-se nos dias que se seguiram apesar dos apelos para que o fizesse. 

Alexandra Leitão, Adalberto Campos Fernandes, Jorge Seguro Sanches e, mais discretamente, Augusto Santos Silva responsabilizaram o ministro pelas tiradas desrespeitadoras do parlamento. A sua reação, resistindo a emendar a mão, foi tão incompreensível quanto o dislate. “Ninguém vai condicionar nem limitar aquilo que é a possibilidade de um membro do governo ter intervenção política”, clamou Adão e Silva, como se alguém estivesse prestes a amordaçá-lo. Desculpas? Nem vê-las. A mais remota aparência de noção? Idem. 

O que me choca neste conjunto de atitudes do ministro é a sua escalada, por um lado, e a sua casmurrice, por outro. 

Adão e Silva já havia chamado “problemas na democracia” àqueles que criticaram a sua nomeação para um cargo com regalias ministeriais que ultrapassava a legislatura, quando aceitou coordenar o cinquentenário do 25 de Abril. À Visão, quase parafraseando o dr. Salazar, afirmou que “os portugueses são mais sensatos do que os comentadores”. À RTP, com a mesma hipocrisia que caracteriza os extremistas, defenderia acerrimamente a liberdade editorial de um cartoonista logo a seguir a demolir o critério editorial das televisões por cabo. Ao longo da semana, reproduziria ‒ inconscientemente, por certo ‒ a forma como o Chega reage sempre que o criticam: desvalorizando a crítica como se ela fosse uma tentativa de silenciamento por não lhe conseguir responder. 

É verdadeiramente misterioso como é que alguém capaz das maiores simpatias e unanimidades caiu no erro de se transformar naquilo que, alegadamente, mais despreza: um populista. Um homem tão preocupado com as instituições, que não se inibe de insultá-las. Um cidadão tão receoso da polarização, que não resiste a alimentá-la. Um combatente tão empenhado contra a extrema-direita, que usa exatamente as mesmas armas. 

A abertura aos mecenas, ao que consta, é a política pública que preconiza para futuro. Com sorte, um dos filantropos doar-lhe-á um espelho. 

A República agradeceria. 

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