Opinião: Oppenheimer não é o teu paizinho

CNN , Aanchal Saraf e Rebecca H. Hogue
11 ago 2023, 18:51
Barbenheimer, Barbie e Oppenheimer

Opinião de Aanchal Saraf e Rebecca H. Hogue: se "Oppenheimer" tivesse outro título, “Atomic Playboy”, o Playboy Atómico, seria o mais adequado. As mulheres do filme existem como dispositivos de enredo para o desenvolvimento de grandes homens - em topless, com frascos na mão, uma forma rápida e suja de nos mostrar que “Oppie” tinha charme no laboratório e nas festas

Tudo começou com os memes.

As audiências vieram em massa para ver o evento cinematográfico do verão: Barbenheimer. Este portmanteau de “Barbie” e “Oppenheimer” surgiu não só porque eram sucessos de bilheteira lançados no mesmo dia, mas também porque os filmes pareciam diametralmente opostos - rosas tecnicolor e plástico fantástico vs. filme biográfico dessaturado e temperamental. (O distribuidor de “Barbie” e a CNN partilham a empresa-mãe, a Warner Brothers Discovery).

Imagens de “Barbie” e de “Oppenheimer”, que estrearam no mesmo dia e geraram a expressão que mistura os dois filmes, "Barbenheimer",

Após uma análise mais atenta, a justaposição ressoa precisamente porque se baseia numa linguagem visual tão antiga como os IPs que está a explorar. Barbenheimer tem antecessores cruciais, momentos culturais que combinaram sexo e armas nucleares para convencer o mundo de que devíamos “aprende a deixar de te preocupar e ama a bomba”.

Bombas e biquínis

A Universal Pictures lançou “Oppenheimer” no 78º aniversário do teste Trinity no Novo México, e duas semanas antes do 78º aniversário dos bombardeamentos americanos de Hiroshima e Nagasaki. Estas três detonações, cuja devastação foi imensa e contínua, foram apenas o início do programa de detonação nuclear dos EUA.

Aanchal Saraf (à esquerda) é bolseira de pós-doutoramento da Society of Fellows do Dartmouth College. Escreve, investiga e ensina sobre culturas da guerra fria, estudos asiático-americanos e militarismo no Pacífico. Rebecca H. Hogue (à direita) é bolseira de pós-doutoramento no Mahindra Humanities Center da Universidade de Harvard. Está a escrever um livro sobre as artes e as literaturas do movimento sem armas nucleares na Oceânia. As opiniões aqui expressas são da sua inteira responsabilidade. 

Entre 1946 e 1992, os EUA detonaram mais de mil engenhos nucleares conhecidos nas Ilhas Marshall, em Kiribati, em terras dos Paiutes do Norte e dos Shoshone Ocidentais no Nevada, em terras dos Aleutes em Amchitka, no Alasca, e em muitos outros locais em terras e águas ocupadas pelos EUA. Estas geografias foram ainda mais prejudicadas pela propagação da precipitação radioativa, que afetou comunidades muito para além dos locais de “ensaio”.

Uma dessas séries de testes foi a Operação Crossroads, em que os EUA detonaram as bombas Able e Baker sobre o Atol de Bikini. Na bomba Able estava gravada uma imagem da estrela de cinema Rita Hayworth num vestido preto sem alças. A bomba foi apelidada de Gilda, em homenagem a um filme que Hayworth tinha protagonizado nesse mesmo ano. Hayworth ficou, sem surpresa, horrorizada com o gesto.

O vestido de Hayworth não foi a única declaração de moda francesa a ser associada a Crossroads - o revelador fato de banho Átomo de Jacques Heim estreou-se na Riviera nesse verão. O seu concorrente, Louis Réard, estreou um modelo ainda mais escasso que tinha a certeza que seria “explosivo”: o fato de banho biquíni [no original, Bikini, como as ilhas].

Nuvem em forma de cogumelo resultante de uma explosão atómica em testes da Operação Crossroads, a 1 de julho de 1946. Foto Rijksmuseum

A académica Teresia Teaiwa criticou famosamente o biquíni como sendo um instrumento para despolitizar e ocultar os efeitos das armas nucleares no Pacífico. Enquanto os europeus se reuniam em praias finalmente livres da guerra, bombas que inspiravam os seus fatos de banho eram lançadas pela Comissão de Energia Atómica nas Ilhas Marshall. Mais tarde, a Grã-Bretanha e a França iniciariam os seus próprios programas de armas nucleares em terras e águas indígenas na Austrália e na Polinésia Francesa ocupada, entre outros.

Os EUA começaram a detonar bombas nucleares no local de testes do Nevada em 1951, o que deu a Las Vegas a alcunha de Cidade Atómica. As empresas de Las Vegas transformaram as detonações numa atração turística, servindo cocktails temáticos e organizando “Dawn Bomb Parties”, ou “Festas das Bombas da Alvorada”. A proximidade cultural entre as atrizes de espetáculo e as bombas atómicas levou à criação de concursos de Miss A-Bomb [Miss Bomba Atómica]. A mais famosa das vencedoras foi Lee A. Merlin, que colou bolas de algodão com a forma de uma nuvem em forma de cogumelo no seu fato de banho.

Hoje, um recorte de Merlin em tamanho natural dá as boas-vindas aos visitantes do Museu Nacional de Testes Atómicos, em Las Vegas. O museu também exibe uma série de parafernália de inspiração nuclear que proliferou durante a Guerra Fria, incluindo brinquedos, livros de banda desenhada e jogos.

Imagem de entrada no site do Atomic Museum

Esta popularização das bombas para todas as idades ainda assombra o nosso presente, com paisagens pós-apocalípticas em programas infantis como “Adventure Time” e “SpongeBob SquarePants”, ecoando filmes da Guerra Fria como “Duck and Cover” (1951), cujo ícone animado da Tartaruga Bert ensinava às crianças o que fazer no caso de uma explosão nuclear; para não mencionar o fascínio de Walt Disney pela energia atómica, imortalizado na sua programação “educativa” de "Our Friend The Atom" (1957).

Filmes da Guerra Fria, como “Duck and Cover” (1951), apresentavam “Bert the Turtle”, a tartaruga Bert, que ensinava as crianças a procurar abrigo e proteção durante um ataque nuclear. Foto da Biblioteca do Congresso dos EUA

De brinquedos a playboys

Num esforço para acalmar as crescentes preocupações em torno da Operação Crossroads, o Vice-Almirante William Blandy assegurou aos americanos comuns: “Não sou um playboy atómico”. Mas o arquivo de pin-ups atómicos e de jogos de guerra nuclear não é o mesmo. Os playboys atómicos têm estetizado as armas nucleares como sendo sexy - mas ainda assim seguras - desde a sua existência.

Na verdade, se o filme "Oppenheimer" de Christopher Nolan tivesse outro título, “Atomic Playboy”, o Playboy Atómico, seria o mais adequado. As mulheres do filme existem como dispositivos de enredo para o desenvolvimento de grandes homens - em topless, com frascos na mão, uma forma rápida e suja de nos mostrar que “Oppie” (Cillian Murphy) tinha charme no laboratório e nas festas. Mas dizer que Nolan é mau a escrever sobre mulheres não é revelador. E a questão aqui não é passar no teste Bechdel - preferíamos que menos mulheres estivessem envolvidas no fabrico de armas de destruição maciça.

Em vez disso, são os compromissos estéticos do filme que sublinham as suas preocupações ideológicas. A “marvelização” dos cientistas de Los Alamos é um dos exemplos mais cómicos. Oppie tem a sua própria cena de “vestir o fato” e Ernest Lawrence (Josh Hartnett) apresenta-se com uma fala que pressupõe aplausos. Contra este alinhamento inicial do A-Team, Jean Tatlock (Florence Pugh) e Kitty Oppenheimer (Emily Blunt) são mais arquétipos do que personagens.

Numa das muitas cenas de sexo frontal “extremamente exageradas” com Tatlock, ela vai até à estante de Oppenheimer e tira uma cópia do “Bhagavad Gita”. Pede a Oppenheimer que leia em voz alta o que se torna a sua citação infame: “Eu sou a morte, destruidora de mundos”.

Florence Pugh é Jean Tatlock e Cillian Murphy é J. Robert Oppenheimer em "Oppenheimer". Melinda Sue Gordon/Universal Pictures

O sexo que se segue é embaraçosamente mecânico. A segunda vez que o ouvimos dizer estas palavras, é não-diegético, a sua voz é o único som durante uma detonação silenciosa da bomba Trinity. Nolan prolonga o tempo entre o clarão e a explosão, permitindo que as palavras de Oppenheimer fiquem numa suspensão enervante. O público é obrigado a “esperar por isso”, os nossos desejos sónicos satisfeitos pelo fetiche de Nolan pela libertação cinematográfica

O espetador não recebe nada que coloque a citação de Oppenheimer em contexto - ele só disse estas palavras numa entrevista em 1965, 20 anos depois de os EUA terem bombardeado Hiroshima e Nagasaki. Nolan arranca a citação do seu enquadramento histórico e coloca-a em dois tipos diferentes de cenas de sexo, ambas enfatizando a omnipotência de Oppenheimer. Não podemos deixar de pensar na “Gilda” de Hayworth, uma femme fatale que cavalga ao lado da bomba atómica.

A partir do momento em que Tatlock aparece no ecrã, duas coisas ficam imediatamente claras: também ela é uma femme fatale e também ela será uma fatalidade. A sua morte por suicídio é a única morte que nos é mostrada e que não é três vezes removida (vemos Oppenheimer a ver um filme sobre os bombardeamentos no Japão) ou parte de uma sequência de sonho (Oppenheimer a imaginar-se a pisar um corpo desracializado e carbonizado durante o seu discurso de vitória). O filme situa a sua morte como gestão de risco - especificamente, neutralizando a ameaça que o seu envolvimento com o Partido Comunista representa para Oppenheimer. Ao posicionar a psique e a política de Tatlock como perigosas, e a autorização de segurança de Oppenheimer como o que está em causa, o filme argumenta que uma ameaça à família nuclear americana é tão séria como a ameaça da bomba atómica ao mundo.

O Nascimento da Bomba

Nolan bifurca “Oppenheimer” em duas partes, a fissão “subjectiva” e a fusão “objetiva”. A colisão das linhas temporais da fissão e da fusão implica que o arco formal do filme espelha uma reação em cadeia. Além da grosseria visceral de modelar o seu filme a partir de uma detonação nuclear, a “reação em cadeia” também persuade o espetador a aceitar as narrativas de inevitabilidade e absolvição de Nolan. Oppenheimer apenas “faz nascer” a bomba, que desencadeia consequências de grande alcance, tanto inevitáveis como fora do seu controlo - de tal forma que o terceiro ato é inteiramente retirado da cena da explosão. Tal como a figura mítica, e o livro que inspirou o filme, “American Prometheus”, “Oppenheimer” mostra que o problema de brincar com o fogo não é brincar nem o fogo, mas a incapacidade de dominar os efeitos incendiários.

Tudo isto leva-nos de volta à colagem de bombas e bombardeamentos de Barbenheimer. Numa cena que começa com os primeiros momentos de Barbie (Margot Robbie) no “mundo real”, ela explica a um grupo de trabalhadores da construção civil desconfiados que nem ela nem Ken (Ryan Gosling) têm órgãos genitais. A Barbie é o ícone ideal para os playboys atómicos: divertida, inofensiva e livre. Os órgãos reprodutores da Barbie tornam-se mesmo parte do seu arco para a personalidade - e da sua saída da iconicidade. O filme termina com a primeira consulta de Barbie com um ginecologista.

Quando os EUA lançaram a primeira bomba H “Mike” em terras de Enewetakese em 1952, o seu projetista Edward Teller enviou um telegrama para o laboratório de Los Alamos no Novo México que dizia: “É um rapaz”. Tal como Teller, que ficou conhecido como o “pai” da bomba H, Oppenheimer foi igualmente caracterizado pela sua virilidade paternal - dando à luz a explosão orgásmica da bomba, primeiro em vida e agora no ecrã. A forma e o conteúdo de “Oppenheimer” podem tentar persuadir-nos de que o seu protagonista é o mais paternal dos papás. Mas se a fasquia mais baixa para uma masculinidade saudável não for a de não confundir armas e mulheres, “Oppenheimer” nunca será “kenough”*.

 

* Nota de tradução: “kenough” é um neologismo usado no filme “Barbie”, que funde “Ken” (o personagem namorado de Barbie) com “enough” (que significa basta). A tradução do termo para português (por exemplo “Kenbasta”) perderia o efeito pretendido: a de que Ken é mais do que um acessório de Barbie e tem personalidade própria. Ao contrário de, segundo as autoras deste artigo, o filme “Oppenheimer”, se “confundir armas e mulheres”.

 

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