Eventualmente chocante

18 jan 2001, 16:43

Opinião de Vítor Pereira Vítor Pereira dedica este texto aos impropérios ditos nas quatro linhas (e fora delas...), quando um jogo de futebol traz à flor da pele as mais calorosas emoções. Se uns são desculpáveis, outros nem por isso. O árbitro portugês não poupa vocabulário e enumera as «simpáticas» expressões que tantas vezes ouviu ao longo da sua carreira. Este texto tem bolinha vermelha no canto...

Esta crónica deveria ter sido publicada com bolinha vermelha ao canto esquerdo. Aviso já, que não sabendo ainda o que me sairá da ponta da caneta, pode conter menções e insinuações socialmente incorrectas, eventualmente chocantes para os olhares mais sensíveis. Em bom português tratarei hoje de falar de línguas e linguajares, com particular atenção ao que se diz num campo de futebol, no quentinho da competição. 

Muito antes de Herman José nos ter mostrado e demonstrado que a língua portuguesa é muito traiçoeira, já nós todos o sabíamos e o tinhamos comprovado, quantas vezes da maneira mais embaraçosa e inconveniente...  

Desde que o nosso filho ainda bébé e aprendiz na arte de dobrar a língua pediu, no restaurante apinhado, «puta» em vez de fruta ou que na primeira reunião importante da empresa dissemos com voz clara e boa dicção «não sei se todos os dados cabrão no relatório» que interiorizámos a necessidade de ter cuidado com a língua e as palavras que ela pronuncia.  

É que a língua portuguesa é mesmo muito traiçoeira! Penso eu e sabem todos os escritores que cada palavra tem um peso e um lugar próprio em cada frase. E no Português, ao contrário do que se passa na Matemática, a ordem dos factores não é arbitrária. Dizer «sobretudo de amor» é muito diferente de falar de «amor de sobretudo». Estão a ver? Há que prever e precaver o que dizemos e como dizemos, para mais tarde não termos de desdizer o que dissemos... «Não digas em Junho o que lamentarás ter dito em Dezembro» lá diz a canção. 

Vem isto a propósito do daqui D'el Rei que se gerou pela expulsão de um jogador numa das últimas jornadas do ano passado por ter dito o que não devia ter dito. É um caso recente mas não é o primeiro e quem dera que fosse o último. 

Aos que defendem que o futebol é um jogo viril e duro onde por direito próprio o palavrão tem lugar cativo proponho que olhem à volta ou consultem um dicionário a ver se percebem a diferença que vai da virilidade à rudeza, da dureza à boçalidade. 

Obviamente que ninguém espera que um jogador, no limite do esforço e abrasado no calor do jogo, se diriga aos outros por V.Excia ou diga «pilinha» ou «ai, que maçada» em vez do que diz. Mas há maneiras e maneiras de dizer como há alturas e alturas de dizer. Muitos «merdas» muitas vezes repetidos fazem uma grande porcaria. E fica a cheirar muito mal. E uma coisa é dizer «que merda!» e outra bem diferente é dizer «Vai à merda!». Isto para utilizar só a palavrinha mais corriqueira e inofensiva do nosso português vernáculo que farão o favor de substituir pelas que vos aprouver, já quase todas são usadas e abusadas num campo de futebol.  

Intolerável? Certamente. Mas tolero melhor as que são ditas em passo de corrida do que as que, ainda mais ofensivas, são cuspidas das bancadas. Porque essas não se destinam a espicaçar a competição nem são expressão de legítimas desilusões, destinam-se antes a humilhar e denegrir quem está em limite de esforço a pôr à prova capacidades sobretudo físicas. São pensadas e atiradas como pedras por quem se acostuma a ir ao futebol chafurdar. 

Quanto às outras, as «pilinhas« e os «...da-se», gritados no campo por quem não se lembra que é figura pública, que é ídolo de alguém e nessa condição tem obrigações de dar e ser exemplo, os regulamentos são explícitos e condenam. Ponto final. Ou antes reticências. Porque se os árbitros fossem sancionar toda e qualquer asneirada nunca um jogo de futebol chegaria ao fim.  

Eles (nós) que são a parte sensata do jogo têm que usar o bom senso, o tacto e a sensibilidade para ajuizarem quando a língua linguareja sem travões capazes de travar, quando a «conversa» atinge proporções inaceitáveis, quando a forma de dizer coisas violentas pode degenerar noutras coisas mais violentas.  

Porque, deixemo-nos de rodriguinhos, é sabido e dá para ouvir que o futebol está associado socialmente às palavras mais traiçoeiras da língua portuguesa. Mas há palavras e, sobretudo maneiras de as dizer, que não cabem em lado nenhum. Nem sequer num campo de futebol.

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