Relatório Garcia: as coisas que dizem estas 400 páginas

29 jun 2017, 10:03
FIFA: Michael Garcia e Hans-Joachim Eckert

A investigação de 400 páginas à forma como foram atribuídos os Mundiais de 2018 e 2022 está cá fora. E se na essência não revela muito mais do que já se sabia e não assume acusações formais de corrupção, o que lá se conta e diz, seja dinheiro com rasto incerto, doações pouco claras, empregos para familiares ou documentação desaparecida, aprofunda a ideia de um processo obscuro e de uma cultura instalada de jogos de influência e trocas de favores.

Era o elefante na sala das suspeitas de corrupção em volta dos processos que atribuiram o Mundial 2018 à Rússia e o Mundial 2022 ao Qatar. O relatório Garcia, a investigação de 400 páginas à forma como tudo aconteceu. Agora está cá fora. E, se a primeira conclusão é que na essência não revela muito mais do que já se sabia e não assume acusações formais de corrupção, o que lá se conta e diz, seja dinheiro com rasto incerto, doações pouco claras, empregos para familiares ou documentação desaparecida, aprofunda a ideia de um processo obscuro e de uma cultura instalada de jogos de influência e trocas de favores.

O relatório são na verdade três. O principal, com 353 páginas, é assinado por Michael Garcia, o antigo procurador norte-americano que presidiu à câmara de investigação do Comité de Ética da FIFA, e analisa sete das nove candidaturas aos dois Mundiais. Os outros, mais 70 páginas por junto, são assinados por Cornel Borbély, que era o vice-presidente do Comité, por pedidos de escusa de Garcia: o da candidatura norte-americana ao Mundial 2022, por ser do seu país, e o do Mundial 2018 por ter sido impedido de entrar na Rússia, por causa de uma investigação que conduziu enquanto era procurador nos Estados Unidos.

A investigação aconteceu depois da divulgação pública de várias suspeitas sobre os processos e ficou concluída no final de 2014. Mas o relatório não foi tornado público. Em vez disso, o alemão Hans-Joachim Eckert, que presidia à câmara decisória do Comité de Ética, divulgou um resumo de 42 páginas que ilibava a Rússia e o Qatar de corrupção.

Garcia sempre defendeu a divulgação integral do seu relatório e demitiu-se do cargo pouco depois de divulgado o tal resumo. E assim ficou no ar a expectativa. Até agora. E porquê? Porque o jornal «Bild» anunciou na terça-feira que teve acesso ao relatório completo e começou a publicá-lo. E então a FIFA veio dizer que já tinha sido decidido pelo novo Comité de Ética (Eckert e também Borbély foram recentemente afastados num processo que levantou questões) a sua publicação, e que para evitar mais especulações o fazia de imediato. Está aqui.

O relatório também deixa claras as limitações da investigação, que só teve acesso aos dados que lhe foram facultados. E nem conseguiu falar com todos os membros do Comité Executivo. Dos 11 membros que à altura não estavam já no cargo, apenas cinco responderam. Nicolás Leoz, Chuck Blazer e Mohamed Bin Hammam recusaram, a investigação não conseguiu contactar Ricardo Teixeira e Jack Warner.

Também são feitas aqui algumas revelações, a começar pelos motivos por que a FIFA diz ter decidido atribuir pela primeira vez dois Mundiais em simultâneo. A decisão terá sido tomada em 2008, tempo de crise económica global, e com receio de que a crise se agravasse e as candidaturas viessem a atrair menos interessados. Também recorda que deviam ter votado os 24 membros do Comité Executivo, mas dois deles, Amos Adamu e Reynald Temarii, foram suspensos pouco antes, por causa de suspeitas de corrupção reveladas numa investigação de um jornal britânico.

Nas conclusões os investigadores recomendam que sejam abertos processos a vários dos 22 membros do Comité Executivo que participaram naquela votação de 2 de dezembro de 2010. E alguns deles foram subsequentemente ou afastados ou alvos de sanções pela FIFA, que passou entretanto também ela por muitas mudanças e vários outros problemas. Que levaram, antes de mais, à queda de Joseph Blatter e também de Michel Platini, antes da eleição do novo presidente, Gianni Infantino. Também há casos judiciais pendentes em relação a vários dos então membros do Comité Executivo.

O relatório também reforça a ideia de que toda a lógica do processo de candidatura potenciou as suspeitas, ao juntar dois Mundiais diferentes, que seriam atribuídos a dois continentes diferentes, e «criou o risco de conluio». Critica também a falta de transparência do processo, com voto secreto de que os membros do Comité Executivo não abdicaram também na investigação. E diz que muitos dos atos relatados minaram a «integridade do processo».

Nas conclusões, o relatório mostra-se também muito crítico em relação aos membros do Comité Executivo: «Muitas das falhas no processo de candidatura que este relatório identificou estão ligadas a uma cultura de expectativas e de direitos a regalias. Quando vinham em primeira classe e com tratamento VIP, seja ou não em representação da FIFA, quandos lhes pedem ou lhes são pedidos favores pessoais ou benefícios como fundos para o «desenvolvimento do futebol», ou quando lhes é pedido para cumprir obrigações éticas para contribuir para os esforços do Comité de Investigação para apurar os factos de um caso, muitos membros do Comité Executivo mostraram desrespeito por diretrizes éticas e a atitude de que as regras não se aplicam a eles.» 

A partir do relatório completo, o Maisfutebol resume aqui em cinco pontos algumas das questões que ilustram o processso. Incluindo as suspeitas, que também não são novas, de conluio entre a candidatura conjunta de Portugal e Espanha ao Mundial 2018 com o Qatar para troca de votos.

A Rússia e os computadores destruídos

O relatório fala de várias suspeitas em torno da candidatura que venceu mesmo a organização do próximo Mundial, que vão de movimentações de políticos russos junto de membros do Comité Executivo, a começar pelo próprio Vladimir Putin, a organização de jogos ou promessas de dinheiro para desenvolvimento do futebol (o que é recorrente em todas as candidaturas, passando pela oferta de iPads a membros da comissão de avaliação da candidatura, mas conclui «não haver provas suficientes» para abrir procedimentos. Mas também menciona, bem no final, que não teve acesso a muita documentação que podia ser útil. Isto porque os computadores da candidatura russa foram destruídos. Segundo a organização, foram usados em regime de «leasing». Pertenciam à Konoplyov Football Academy, com ligações a Roman Abramovich. E esta confirmou que os destruiu quando foram devolvidos, por estarem «obsoletos».

O Qatar e dinheiro para uma criança de 10 anos

A candidatura vencedora do Qatar ao Mundial 2022 é a que tem mais espaço no relatório, num extenso rol de casos que, chega a dizer o investigador, «minaram a integridade do processo». A referência surge em concreto quando se fala da academia Aspire, que o Qatar usou  «na órbita da candidatura de formas significativas». Mas há também a influência do Governo do país no processo, o facto de o então secretário-geral da FIFA, Jerome Valcke, ter chegado a dizer que o Qatar «comprou» a candidatura ou o dinheiro comprovadamente pago para financiar um congresso da CAF em Angola, ou o rasto do que foi pago para financiar um particular entre Brasil e Argentina. Ou ainda o encontro de Michel Platini, então presidente da UEFA e membro do Comité Executivo, com Nicolas Sarkozy, então presidente francês, e o emir do Qatar. E no meio disto uma história insólita que envolve o ex-presidente do Barcelona Sandro Rosell, atualmente detido por branqueamento de capitais. Rosell, que seria «consultor» da candidatura do Qatar, transferiu dois mil euros para a conta da filha de Ricardo Teixeira, então presidente da Confederação Brasileira. A criança tinha 10 anos na altura. A explicação dada ao Comité foi que o dinheiro não tinha a ver com a candidatura do Qatar e que foi transferido para essa conta para evitar pagar impostos. Também em relação ao Qatar o relatório defende investigações a membros do Comité Executivo, mas quanto à candidatura considera que não ficaram provadas ligações com a compra de votos.

Villar e os e-mails perdidos da candidatura ibérica

Outro dos temas abordados no relatório, noticiado na altura, é do alegado conluio entre a candidatura de Portugal e Espanha com o Qatar para a troca de votos. Concorriam, recorde-se, a Mundiais diferentes. O caso foi arquivado numa primeira fase pela FIFA e esta investigação voltou a ele. Mas frisou que se deparou com dificuldades inusitadas, que não aconteceram com qualquer outra candidatura. Garcia relatada uma conversa estranha com Angel Villar, o presidente da Federação espanhola e da candidatura ibérica, em que este se limitou a exigir saber quem tinha ordenado a investigação e exigia escusa de Garcia do caso, por o investigador ser norte-americano. Depois respondeu por escrito. Além disso, Garcia relata que, depois de várias diligências junto da federação espanhola sobre documentação relativa à candidatura, foi informado pelo seu secretário-geral que, como o processo era antigo, os e-mails relativos a toda a candidatura tinham sido apagados. Não há registo de contactos com ‘ «lado» português da candidatura, e Garcia não se deslocou a Portugal nesta investigação.

Inglaterra, emprego para o «filho adotivo» de Warner

Sobre a Inglaterra, o relatório põe a nu a disponibilidade da candidatura em agradar aos membros do Comité Executivo, com vários casos. Entre eles uma ligação particular a Jack Warner, então vice-presidente da FIFA e presidente da Concacaf, atualmente sob investigação judicial por corrupção. A candidatura inglesa acedeu a um pedido de Warner para arranjar emprego a Richard Sebro, alguém que o dirigente disse que considerava como seu «filho adotivo». Sebro ganhou mesmo emprego no Tottenham e em Wembley.

Japão, as prendas de luxo

A única candidatura a que o relatório nada aponta é a apresentação conjunta de Bélgica e Holanda. Todas as outras levantaram questões. Muitas delas a corroborar essa ideia de tráfico de influências. Entre elas impressiona a lista de presentes que a candidatura do Japão ofereceu a membros do Comité Executivo: vão desde malas de um «conceituado artesão» japonês no valor de dois mil dólares cada uma oferecidas às esposas dos membros do Comité Executivos a câmaras digitais avaliadas em 1200 dólares cada ou jóias no valor individual de 1000 dólares, ou ainda a uma pulseira de madeira especial denominada «yakusugi ball», 1200 dólares por peça também, oferecida a Blatter e a vários membros do Comité Executivo.

Mais Lidas

Patrocinados