Folhetim de voto: Campanha de poucos amigos

5 jan 2022, 07:08

Faltam 25 dias para as eleições, e podem faltar centenas de milhares de eleitores no dia de votar, por causa da pandemia. Na coluna diária de análise e opinião assinada pelo jornalista de política Filipe Santos Costa fica o alerta de que este ano os candidatos correm mais riscos de estar a falar para o boneco. Mas fazem-no, cada vez mais, com caras de poucos amigos

Confinamento. No dia das eleições poderá haver quase meio milhão de pessoas em isolamento devido à covid-19. A previsão é feita pelo matemático Carlos Antunes, e noticiada pelo Expresso, que conseguiu finalmente voltar a estar online (por enquanto, com um site provisório). Num país com 50% de abstencionistas, nada nos diz que todas essas pessoas quisessem mesmo ir votar, mas meio milhão são 10% de todos os que foram às urnas em 2019. É um valor que equivale a praticamente todos os votos recebidos pelo BE, o terceiro partido; é mais do que os votos que o PCP recebeu, e mais do dobro de todos os votos no CDS há dois anos. Inês de Sousa Real já tinha chamado a atenção para esse problema, e Jerónimo de Sousa também fez o mesmo. 

Com a variante Ómicron ainda em crescimento, e sem sabermos se já atingimos o pico desta vaga, a única hipótese de não haver tanta gente impedida de votar é haver uma alteração às regras de isolamento, por exemplo, aliviando as limitações impostas a quem teve contactos de risco ou contraiu o vírus mas não ficou doente. O encontro desta quarta-feira no Infarmed pode dar pistas. A continuar tudo na mesma, serão uma eleições menos democráticas, com uma grande fatia do eleitorado impedida administrativamente de votar. Uma lotaria, que aumenta ainda mais a incerteza do resultado eleitoral. Com outro risco acrescido: se os negacionistas decidirem desrespeitar as regras da DGS e sair de casa para votar, mesmo com ordem de isolamento, essa batota terá consequências eleitorais. E sabemos bem para onde os negacionistas se inclinam mais.

O bom, o assim-assim, o péssimo. Ontem foi dia de três debates, e dificilmente poderiam ter sido mais contrastantes. O frente-a-frente ao fim da tarde entre Catarina Martins e Rui Tavares permitiu algo que ainda não se tinha visto neste ciclo de debates: discussão de propostas alternativas. Foi sereno e substancial. O confronto entre António Costa e Jerónimo de Sousa valeu menos pelo conteúdo e mais pela forma: a frieza nunca antes vista do líder socialista em relação ao secretário-geral do PCP foi a melhor demonstração de que 2022 não é mesmo 2019, e menos ainda 2015. À esquerda, tudo mudou, até entre PS e PCP. O embate entre Francisco Rodrigues dos Santos e Inês Sousa Real foi pouco mais do que um episódio de vergonha alheia.

 

Costa. Durante anos foi evidente a cumplicidade de António Costa com Jerónimo de Sousa. O PCP foi sempre o parceiro preferencial dos socialistas na geringonça, e Costa nunca o escondeu. Ontem, não se viu nem sombra dessa preferência. Costa mostrou-se sempre com cara de poucos amigos, focado na destruição dos (frágeis) argumentos do seu oponente, fixado em passar a mensagem de que estas eleições nada têm a ver com as duas anteriores, porque os parceiros à esquerda deixaram de ser confiáveis a partir do momento em que chumbaram o Orçamento. Foi bom - “Enquanto houve caminho para andar andámos. Tenho muita pena e muita dificuldade em compreender porque é que foi interrompida (...) e o Orçamento mais progressista apresentado na AR foi chumbado na AR” - mas acabou-se: “Com a mesma frontalidade com que disse há dois anos atrás [sic] que para mim não haveria solução fora do quadro da geringonça, tenho de dizer aos cidadãos que neste momento não sinto confiança para dizer que essa é uma solução estável”.

A culpa, na narrativa de Costa, não morre solteira. O primeiro-ministro não cedeu à disponibilidade de Rui Rio para acordos à direita, PCP e BE é que se aliaram à direita.  “M’lá ver: eu honrei a minha palavra”.

Jerónimo de Sousa e António Costa

 

Jerónimo. No seu primeiro debate desta campanha (e penúltimo, pois só irá confrontar-se com Costa e Rio, os dois debates em canal aberto), Jerónimo de Sousa mostrou-se cansado, frágil, parecendo por vezes inibido. Fez lembrar a Helena Matos “o idoso a quem Costa ia dando um par de sopapos no Terreiro do Paço”. Nem isso, na opinião de Sérgio Sousa Pinto: “Jerónimo entrou para este debate derrotado e saiu derrotado” (foi no Crossfire de ontem, pode ver aqui e aqui).

Todas as análises pós-debate concordam num ponto - o líder do PCP falhou no principal desafio frente a Costa: justificar bem o chumbo do Orçamento, que acabou por fazer cair o Governo e precipitar eleições. Falou no aumento do salário mínimo, falou das leis laborais, falou na vontade de o PS provocar uma crise, à espreita de uma maioria absoluta (que nenhuma sondagem indica que possa sequer ser uma hipótese). Mas nunca pareceu convencido dos argumentos que ia alinhavando. E não contou, desta vez, com a simpatia que Costa lhe dirigiu noutros momentos. Não foi um debate crispado, mas foi gelado. Como constatou Carlos Magno, no CNN Primetime, “António Costa está, de facto, muito cruel”. Como dizem nos filmes de Hollywood, “no more Mister Nice Guy”. O único momento em que o líder socialista esboçou um sorriso foi quando Jerónimo se demarcou de Catarina Martins, que acusou Costa de ser agora um obstáculo aos entendimentos à esquerda. 

 

“M’lá ver”. Se achar os debates aborrecidos, ou fracos na vertente de entretenimento, pode sempre contar quantas vezes os líderes recorrem às suas bengalas linguísticas favoritas. No caso de António Costa, é “m’lá ver”, uma espécie de “vamos lá ver”, mas engolindo o V, o A, o O e o S. 

 

“P’tanto”. No caso de Jerónimo, o jogo faz-se com a (espécie de) palavra “p’tanto”. Faites vos jeux.

Catarina Martins e Rui Tavares

Debater propostas. Aliviados do magno tema da governabilidade e de eventuais maiorias parlamentares, a líder do BE e o fundador do Livre puderam fazer algo completamente original neste ciclo de debates: discutir propostas concretas para o país. Falaram de leis laborais, do SNS, da TAP, da ferrovia, de economia circular, de Europa, 25 minutos deram para muito. Apesar da proximidade entre ambos (Tavares chegou a ser eleito eurodeputado pelo BE, tendo depois rompido com o partido), ficaram claras coincidências e diferenças. Sem dramas, sem atropelos nem gritaria. E ficaram claras as diferenças de percurso e de atitude. Catarina Martins (numa pose “paternalista”, segundo a Ana Sá Lopes) falou da experiência destes 6 anos: “Se o Rui Tavares propõe estudar e equacionar a exclusividade dos médicos, António Costa diz logo que sim e cria um grupo de trabalho e vai passar 4 anos a estudar a exclusividade, que é algo que está a ser estudado e equacionado desde 2017, e precisa de ser implementado”. Tavares falou em “intransigência” do BE, e Catarina respondeu que “parece António Costa a falar”. Tavares deu sempre um enquadramento europeu às suas propostas, e mostrou uma crença maior da potencialidades de um entendimento à esquerda, talvez alimentada por não ter o desgaste destes 6 anos, e por não ter chumbado este orçamento. Num debate “sereno”, ou “morno”, conforme os gostos, a grande diferença entre ambos pode ser mesmo esta: em setembro, Rui foi a votos coligado com o PS; em outubro, Catarina ajudou a derrubar um governo PS.

Francisco Rodrigues dos Santos e Inês Sousa Real

Touro enraivecido. Não foi nem sereno nem morno o terceiro debate de ontem, entre os líderes do CDS e do PAN. Inês Sousa Real bate-se para o PAN manter a relevância que tem, Francisco Rodrigues dos Santos luta para ter alguma relevância e para o CDS não perder a que já teve. O ar sempre esbugalhado e ofegante do líder centrista mostra como tem noção de que está em jogo não só o seu futuro político, como a existência do seu partido. Ao longo de 25 minutos, pareceu um náufrago a agarrar-se a tudo a que pudesse deitar mão. Num debate em que um dos pontos de fricção foi a discordância radical sobre touradas, “Chicão” teve “uma atuação qual touro enraivecido contra a líder do partido animalista” - a descrição é do Martim Silva, no Expresso. Acusou o PAN de ser “radical” e “ditatorial”, e disse do partido o que Maomé não disse do tofu. Em resposta, “Chicão” foi acusado de ainda não ter chegado ao século XXI em matérias como os combustíveis fósseis, a defesa das touradas ou os direitos LGBTI. Na CNN Portugal, tanto a Anabela Neves como o Sebastião Bugalho concordaram que há algo de muito anacrónico neste CDS. “O líder do CDS que está em muitas matérias ainda no século XX”, disse a Anabela; “o CDS votou ao tempo do pré-portismo”, notou o Sebastião. 

Apesar das divergências e da crispação, PAN e CDS têm um ponto em comum: ambos admitem contribuir para uma maioria liderada para o PSD. Se Rui Rio ficar à frente de António Costa, claro. Um grande “se”. Mas há outro: se PAN e CDS continuarem a ter representação parlamentar.

Já agora volto a propor um exercício, como já fiz aquando do debate de Catarina Martins com André Ventura: imagine que Inês Sousa Real se apresentava em estúdio com a mesma postura de forcado histriónico de Francisco Rodrigues dos Santos. O que não se diria da líder do PAN? Aposto que "histérica" seria o adjetivo mais suave.

 

Costa tuita... Depois de Rui Rio se ter enredado em considerações sobre a prisão perpétua no debate com André Ventura (recusou frontalmente a prisão perpétua sem hipótese de comutação de pena, mas não excluiu aquilo a que chamou “prisão perpétua mitigada”), aconteceu exatamente o que era previsível. O PS não perdeu tempo. Num vídeo no Twitter, António Costa acusou Rio de, “por conveniência ou necessidade eleitoral”, se ter disposto “a considerar com André Ventura diferentes modalidades para restabelecer a pena de prisão perpétua”. Um retrocesso que “nem a ditadura” ousou fazer. Estava-se mesmo a ver que seria esta a consequência da prestação televisiva de Rio na noite de segunda-feira.

 

… Rio retuita. O vídeo de Costa não ficou sem resposta de Rio, também no Twitter. Não para desmentir o que havia dito (ou dado a entender) no debate, nem para esclarecer o que realmente pensa sobre o assunto, nem para clarificar algo que possa ter ficado mal explicado no calor do frente-a-frente. Não. Rio decidiu apenas queixar-se de Costa ter deturpado as suas palavras, republicando o vídeo do socialista. Ou seja, o líder do PSD deu ainda mais publicidade ao tuite original de António Costa, o que é uma opção… estranha e, talvez até, contraproducente. Mais: Rio fez ironia, o que costuma ser uma opção arriscada para um político.

 

Chega likes Ana Gomes. Uma parte do debate pré-eleitoral vai correndo nas redes sociais. Ana Gomes, a ex-eurodeputada do PS e candidata presidencial, muito ativa no Twitter, comentou ontem o frente-a-frente de António Costa com Jerónimo de Sousa. E deu razão a Jerónimo, quando este acusou o socialista de ter provocado uma crise com objetivos eleitorais. Parafraseou a réplica de Costa - “alguém acha q um PM, no meio desta crise pandémica, quis provocar eleições?” -, e deu-lhe resposta: “Por exemplo, eu acho. E sei que não sou só eu….”. Um tweet que nas últimas horas tornou Ana Gomes muito popular entre os apoiantes do Chega, que o têm reproduzido a alta velocidade nas redes sociais.

 

5 dias. O PS lançou no seu programa eleitoral a ideia de ponderar a introdução da semana de 4 dias em Portugal. Segundo o Público, os sindicatos agradecem, mas acham que não é uma prioridade. Os patrões não agradecem nem acham que seja uma prioridade.

 

Ordem do dia. Esta quarta-feira há três debates. João Cotrim Figueiredo estreia-se contra Francisco Rodrigues dos Santos, num confronto à direita marcado para o final da tarde (18h30, RTP3). No primetime, Catarina Martins troca argumentos com Rui Rio (21h, SIC) e a jornada termina aqui na CNN Portugal com o embate entre Rui Tavares e André Ventura (22h).

Embora poucochinha, também há pré-campanha fora do ecrã. André Ventura vai para o adro da Igreja de Santa Cruz (Coimbra) para falar de combate à corrupção e de ensino superior. Catarina Martins visita a ACAPO. Jerónimo de Sousa estará numa iniciativa sobre emigração (mas esta, em rigor, não é fora do ecrã, pois trata-se de uma sessão apenas online).

 

A frase do dia.

“Há um obstáculo. Chama-se António Costa.”

Catarina Martins, no debate com Rui Tavares

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