Despesa dos hospitais do SNS com medicamentos está em máximos

ECO - Parceiro CNN Portugal , Joana Morais Fonseca
18 jan, 07:16
Saúde

A fatura ascendeu em 2023 a quase 2 mil milhões de euros e ainda falta contabilizar o mês de dezembro. Nunca os hospitais públicos gastaram tanto em medicamentos

A despesa dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) com medicamentos tem crescido desde 2015 e, atualmente, está em máximos. Nos primeiros 11 meses de 2023, os encargos superaram os 1,8 mil milhões de euros, ultrapassando o total do ano de 2022.

Ao ECO, o presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) admite que a situação é “absolutamente insustentável” e defende que deve ser criado um sistema que avalie “o impacto real” dos medicamentos, nomeadamente os inovadores, que são geralmente mais caros, na vida dos doentes.

Entre janeiro e novembro do ano passado, a despesa dos hospitais do SNS com medicamentos superou os 1,85 mil milhões de euros, ultrapassando os cerca de 1,71 mil milhões gastos em todo o ano de 2022. É um máximo histórico, de acordo com os dados do portal da Transparência do SNS consultados pelo ECO e com base numa série iniciada em 2011.

Em termos homólogos, nos primeiros 11 meses de 2023, os hospitais públicos gastaram mais de 20 milhões de euros (+12,10%) face aos cerca de 1,66 mil milhões de euros gastos em igual período de 2022, segundo contas feitas pelo ECO.

E se a comparação for feita com o período pré-pandemia, a diferença é ainda mais expressiva: entre janeiro e novembro de 2023 foram gastos mais 63 milhões de euros do que nos primeiros 11 meses de 2019, quando a despesa dos hospitais do SNS com medicamentos se situava em cerca de 1,2 mil milhões de euros nesse período.

Uma fatura que se arrasta há anos

A tendência não é nova. Desde 2015 que os encargos dos hospitais públicos com medicamentos têm crescido paulatinamente. Só na última década, os custos quase duplicaram, dado que em 2014 rondavam os 959 milhões de euros. Ainda assim, e apesar de faltar contabilizar o mês de dezembro, o valor da despesa em 2023 cresceu a um ritmo inferior face à média anual dos cinco anos anteriores à pandemia, que apresentou um crescimento médio anual de 6,51% entre 2015 e 2019.

Em declarações ao ECO, o presidente da APAH aponta que este aumento da despesa se deve a “vários efeitos sinérgicos”. Por um lado, tem-se verificado “um aumento de procura e um aumento de produção” do SNS, fator que está “muito associado” à despesa com medicamentos, dado que “muitos desses fármacos”, nomeadamente “fármacos para doenças oncológicas ou doenças autoimunes são muito caros” e administrados em contexto hospitalar.

Além disso, Xavier Barreto nota ainda a que expectativa é a de que os hospitais fecharam 2023 com “volumes recordes” de atividade assistencial, que fez subir a despesa. “Obviamente que este aumento também decorre do envelhecimento da população, de termos mais patologias“, diz, mas sublinha que estes números devem-se também ao surgimento de medicamentos inovadores “que são geralmente mais caros”.

Xavier Barreto, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, admite que o aumento da despesa dos hospitais públicos com medicamentos é “absolutamente insustentável” do ponto de vista das contas públicas, mas sublinha que não é possível considerar se é excessivo ou não, dado que não há acompanhamento dos resultados.

O panorama é corroborado por Pedro Pita Barros, que sinaliza que o aumento prende-se com “novas terapêuticas com preços muito elevados e mais pessoas a serem tratadas com essas novas terapêuticas“.

Em declarações ao ECO, o especialista em Economia da Saúde e professor na Nova SBE nota ainda que “uma área onde é muito claro esse efeito é na oncologia” e que esta “não é uma especificidade portuguesa“, dado que há vários países “da Zona Euro, da União Europeia e um pouco por todo o lado” a registarem aumentos de despesa. Ainda assim, a informação disponível não permite desagregar a decomposição dos elementos que contribuem para o aumento dos encargos.

Nos EUA, por exemplo, de acordo com um estudo publicado em 2022 e intitulado “Trends in Prescription Drug Launch Prices”, entre 2008 e 2021, “o preço de novos medicamentos aumentou exponencialmente”, cerca de 20% por ano, e entre 2020 e 2021, quase metade (47%) dos novos fármacos custavam inicialmente acima de 150 mil dólares (cerca de 138 mil euros à taxa de câmbio atual) por ano — e mesmo após o ajuste com os descontos dos fabricantes e alterações em certas características, o preço dos medicamentos subiu cerca de 11% por ano.

Por isso, os investigadores sugeriram que o governo dos EUA devia “deixar de permitir que os fabricantes de medicamentos fixem livremente os preços e seguir o exemplo de outros países industrializados que negoceiam os preços dos medicamentos aquando do seu lançamento”, lê-se.

De notar que, em Portugal, os preços dos medicamentos disponibilizados em contexto hospitalar são alvo de uma negociação entre a indústria e o Infarmed.

Da revisão dos protocolos à monitorização dos resultados

Os dados do portal da Transparência do SNS permitem também observar que, apesar de o aumento de despesa dos medicamentos não estar associado à sazonalidade, é possível constatar que tem existido desde 2017 uma quebra na despesa nos meses de dezembro.

“É frequente o aumento de despesa durante o ano levar a que se exceda limiares pré-acordados, e é possível que os mecanismos de devolução de despesa em medicamentos da indústria farmacêutica afetem a despesa registada em dezembro (final do ano), bem como aplicação de eventuais descontos comerciais”, admite o economista Pedro Pita Barros. Também Xavier Barreto aponta que a discrepância deverá estar relacionada com a emissão de notas de crédito lançadas em dezembro.

Certo é que os encargos têm crescido de ano para ano e têm suscitado preocupações. O próprio ministro da Saúde já tinha considerado “insustentável” o aumento da despesa dos hospitais com medicamentos, tendo defendido a necessidade de diálogo com a indústria para “garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde”, isso sem que os doentes deixem de ser acesso a medicamentos inovadores. “Tem de haver partilha entre a indústria e o Estado para continuar a garantir a sustentabilidade do SNS”, garantiu.

Pita Barros sugere incorporar “elementos explícitos de divisão do valor gerado pela inovação” na negociação dos preços para baixar a fatura do SNS, mas isso teria que ser discutido internacionalmente “para que todos os países possam ter uma posição comum quanto aos princípios usados para fixar preços.

Em declarações ao ECO, o presidente da AHAP admite que o aumento da despesa é “absolutamente insustentável” do ponto de vista das contas públicas, mas sublinha que não é possível considerar se é excessivo ou não, dado que não há acompanhamento dos resultados.

Nesse sentido, Xavier Barreto considera que é preciso aferir “se os protocolos clínicos estão a ser cumpridos” e se “têm ou não margem para serem revistos” de modo a começar-se a fazer-se uma “negociação com fornecedores mais baseada em valor” e “em resultados”.

No entanto, para que isso suceda é necessário criar “um sistema que avalie de facto a médio e longo prazo” o “impacto real” da administração destes medicamentos na vida dos cidadãos e com “base num standard de indicadores”.

Na prática, a ideia é monitorizar o estado de saúde dos doentes e a “forma como vivem, como regressam ao trabalho ou como conseguem levar uma vida normal ou não” após a administração dos fármacos. “Não faz sentido comprar centenas de milhões de euros em medicamentos inovadores não confirmando depois se cumprem ou não a expectativa que nos criaram”, sintetiza o gestor hospitalar.

Por outro lado, Pita Barros sustenta que “medidas possíveis no âmbito nacional estão já a ser aplicadas pelo Infarmed”, mas aponta que a solução pode passar por incorporar “elementos explícitos de divisão do valor gerado pela inovação” na negociação dos preços, mas isso teria que ser discutido internacionalmente “para que todos os países possam ter uma posição comum quanto aos princípios usados para fixar preços (gerando um balanço entre capacidade de pagar por parte dos sistemas de saúde e existência de incentivos à inovação por parte da indústria farmacêutica)”, remata.

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