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André Ventura, o Príncipe das Trevas

11 mar, 15:47
Presidente do Chega, André Ventura (LUSA/Nuno Veiga)

"Mais uma vitória como esta, e estou perdido." As palavras são de Pirro – rei do Epiro e da Macedónia e um dos maiores inimigos da Roma Antiga, no fim da Batalha de Ásculo, da qual saiu vencedor com enormes baixas para o seu exército –, mas bem podiam ter sido ditas à boca pequena na noite de domingo por Luís Montenegro. A AD venceu as eleições por uma unha negra, mas ganhou um rival à sua direita a encostá-lo à parede – um Chega insuflado por mais de 1,1 milhões de votos, com uma bancada de pelo menos 48 deputados e um líder galvanizado que exige um lugar ao sol na governação. 

Pela primeira vez em 33 anos, o mapa do país político pintou-se de três cores: o Chega conseguiu ser a primeira força no distrito de Faro, e também a segunda em Beja, Setúbal e Portalegre. Mais de 18% do eleitorado escolheu a via do extremismo – uma mudança de fundo na sociedade portuguesa, um grito de revolta ou um sinal de alarme que não pode ser ignorado? As três opções são válidas. Não é crível que tantos portugueses sejam racistas, xenófobos ou antidemocráticos – mas estão suficientemente saturados para não se importarem de alinhar com alguns deles. Gente cansada de se sentir ignorada pelas elites, e que encontrou em Ventura o seu Príncipe das Trevas – o porta-voz possível para os indignados, que diz, sem pruridos, o que antes parecia indizível. Eleitores que não querem saber de rótulos nem têm paciência para debates ideológicos: exigem apenas ser ouvidos e respeitados.

Eles são os jovens abandonados pelos partidos tradicionais, são os trabalhadores zangados que chegam ao fim do mês a contar tostões, são os que vivem fora das zonas metropolitanas e se sentem esquecidos por Lisboa, são os mais velhos que não conseguem marcar uma consulta, são os que aspiram a mais mas não conseguem lá chegar, são os saturados do politicamente correto, são os saudosistas de outros tempos. E são também portugueses comuns, simplesmente fartos de mais do mesmo. André Ventura fala para todos eles – se uma qualidade lhe assiste, é a de ser o mais eficaz catch-all de descontentamentos que o Portugal democrático já viu. 

Luís Montenegro sai, pois, vitorioso das eleições, mas altamente periclitante, e tem agora a mais árdua das batalhas pela frente: manter a sua palavra, respeitar o “não é não” que garantiu aos portugueses e formar um governo minoritário sem ser engolido pelos inimigos de ambos os lados. As opções parecem todas toldadas pela fatalidade anunciada: se ficar o bicho pega, se correr o bicho come. Se lhe der a mão, Ventura engole-lhe o braço, se o afrontar e tentar combater, pode voltar-se contra ele.

Desenganem-se, porém, os que pensam que o Chega é apenas uma dor de cabeça para a AD. As extremas-direitas são um problema de todas as forças políticas, e é assim que têm de ser encaradas. O sentimento que marcou a noite, mais do que o de mudança segura, foi o de ressentimento. E este ressentimento só está tão forte porque os partidos do sistema – e sobretudo os de governo – não responderam aos problemas concretos das pessoas, levando-as atrás da corneta estridente do Príncipe das Trevas. 

Ainda falta apurar os votos da emigração, mas é evidente que o PS foi o grande derrotado das eleições. Perdeu mais de meio milhão de votos e no mínimo 38 deputados, e reúne, com o PSD e o CDS, o segundo somatório mais baixo da história democrática. “Chegados” aqui, cabe ao PS, que esteve no governo em 15 anos nas últimas duas décadas, fazer também o seu ato de contrição – onde falhou e porque falhou? Também os socialistas estão agora enredados nos seus dilemas e contradições: o Chega foi, durante muito tempo, um aliado objetivo e um seguro de vida, porque fazia encolher o seu principal adversário. Agora, é o elefante no meio do hemiciclo, a força bloqueante com o qual o PS vai também ter de conviver adiante. E que o Presidente da República, a quem coube a decisão de convocar eleições e que terá de avaliar as condições de governabilidade, terá de gerir.  

Uma coisa parece certa: o recuo da abstenção, com pelo menos mais 700 mil pessoas a votar, reforçou o Chega. Desde 1995 que não iam tantos portugueses às urnas e isso tem de ser visto como boas notícias. É a democracia a funcionar, mas a democracia tem destas coisas: nem sempre os sinais de vitalidade são garantes de boa saúde. 

“O populismo é a doença autoimune da democracia”, explica o cientista político John Keane numa metáfora feliz. Estas patologias são aquelas em que os mecanismos de defesa do organismo atacam as células saudáveis do corpo. É mais ou menos o que acontece com os populistas: os valores democráticos dão-lhes condições para prosperar e eles voltam-se contra o sistema que lhes permitiu chegar ali. As democracias modernas enfrentam um terrível dilema: baixar a guarda das defesas e integrar os populistas, ou tentar combatê-los, mas dando-lhes novos argumentos para crescer? Não se encontrou ainda a resposta certa. Mas desta resposta pode depender o nosso futuro coletivo.

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