opinião
Especialista em Ciência Política e Relações Internacionais: Segurança e Defesa, do Centro de Investigação do Instituto de Estudos Políticos (UCP). Jurista, foi jornalista de Política Internacional e é consultora em Public affairs e Comunicação

Equívocos dramáticos sobre os cuidadores informais

9 fev, 16:55

A semântica engana. Na expressão “cuidador informal” nada é correto. Nenhum “cuidador informal” é cuidador: é pai, é mãe, é cônjuge, é irmão, é filho. Residuais devem ser os que têm competência e ferramentas para serem cuidadores, e todos os outros se sentem como se o céu lhes tivesse caído em cima da cabeça, abruptamente confrontados com mil (complexas e exigentes) responsabilidades e continuamente empurrados para os seus limites, de disponibilidade e de capacidade.

O outro termo da expressão “cuidador informal” é ainda mais equívoco. “Informal” significa “casual, descontraído, relaxado”. O chamado cuidador informal é todo o contrário. Às suas habituais responsabilidades de trabalho e família, passa a ter a magna responsabilidade de uma situação de dependência, que não admite cansaço nem descanso, para a qual não é rendido e à qual tem de dar de si muito mais do que dá em tudo o resto: porque a dependência de quem se ama pede não só o serviço sem enganos, mas também e sobretudo o sorriso sem tréguas. 

O dito cuidador informal não tem “plano b”. O deserto e o abismo abatem-se sobre estas situações e à volta tudo desaparece. Os desejáveis equilíbrios da vida entram em rutura e a balança descamba: a vida social deixa de existir, o lazer também, e a casa, de lugar de descanso, passa a ser o cenário do serviço, da última hora do dia à primeira hora da manhã. 

Serviço não é tarefa, é responsabilidade total: medicamentos, farmácia, alimentação, consultas, exames, análises, cuidado pessoal, passeios higiénicos, e, mais importante do que tudo, o olhar sobre a pessoa, história, preferências e cada um dos desejos, que são os sonhos ao pé da porta, a felicidade possível. 

Na equação, o dito cuidador informal vai largando tudo de si como secundário, num movimento centrípeto que parece ser inexorável, nas curtas 24 horas de cada dia para chegar a tudo o que tinha mais o que passou de ter, que afinal é bem maior do que o resto. 

O dito cuidador informal não tem dores, nem gripe, nem achaques. Acomoda tudo isso e muito mais, porque outra coisa não é possível. O cuidador informal percebe o que vale cada minuto da sua vida, e fá-lo render de uma maneira inacreditável, como inacreditável é o bálsamo do silêncio contemplativo que diariamente busca para retempero da alma.

Abate-se igualmente uma espécie de manto da invisibilidade sobre o dito cuidador, como se ninguém conseguisse perceber e vir em seu socorro, nessa onda gigante que tantas vezes o sufoca. Nem gritando. Porque “é suposto que seja assim, é suposto que seja assim, então como será de outra forma?” As raras e puras almas que penetram esse manto são mensageiras do eterno e seus vínculos para sempre. 

O dito cuidador, entretanto, vai fazendo muitos lutos: o luto lento e visível por aquele a quem cuida que, sendo o mesmo, desaparece um pouco todos os dias, o luto por tudo o que, da sua vida, vai enterrando, os lutos pelos que fogem sem deixar rasto, e os lutos pelos que, estando ou sendo próximos, se colocam à distância. Muitos lutos. 

Chamar cuidadores informais aos que morrem diariamente pelos seus familiares é um erro e é um crime. Eles ficam assim esquecidos num erro semântico que supõe competência e facilidade onde só existe dúvida e exaustão, comportando um risco enorme para ambos os lados da equação: para quem é cuidado e para eles mesmos. 

Este texto foi escrito no dia em que lembramos a morte da nossa avó paterna. O avô adoeceu primeiro, mas a avó morreu primeiro. Como tantas mulheres que se tornam cuidadoras sem saberem nem poderem, que cuidaram sem nunca serem olhadas e sem nunca terem a possibilidade de olhar para si mesmas. 

É preciso perceber esta realidade com a dimensão que ela tem, que é enorme, e não a ignorar nem adiar as soluções. Necessitam-se soluções de capacitação e de acompanhamento. Ensinem-nos e ajudem-nos a cuidar sem morrermos. 
 

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