Destituição da procuradora-geral da República "iria criar um verdadeiro pânico" na opinião pública

14 nov 2023, 23:07
PGR Lucília Gago, na abertura do Ano Judicial

O Ministério Público faz buscas, o Governo cai, o Ministério Público pede prisão para os suspeitos, o juiz manda todos para casa, o Ministério Público sai mal? Há uma parte de tudo isto que foi "normal" e outra que "devia ter sido feita de forma diferente" - e isso tem consequências na "honra das pessoas". Mas atenção: "Não foi o Ministério Público que demitiu o primeiro-ministro"

Sim, "calculo que esta situação toda possa parecer relativamente inexplicável". Sim, o advogado Manuel Nóbrega Correia admite que estejamos todos confusos. Tendo em conta que "se esperava mais" ao nível da "gravidade" dos crimes indiciados pelo Ministério Público para justificar as "consequências políticas" do caso, há quem já peça a demissão de Lucília Gago, procuradora-geral da República. Mas tal "iria criar um verdadeiro pânico no espaço público", diz outro advogado ouvido pela CNN Portugal, Guilherme Figueiredo.

"Todos os dias acontece nos nossos tribunais que o Ministério Público peça, por exemplo, prisão preventiva como medida de coação e o juiz de instrução não concorda e decreta uma medida inferior", diz o advogado Luís Menezes Leitão. Aliás, acrescenta o ex-bastonário da Ordem dos Advogados, "a função de um juiz de instrução" é precisamente essa, ou seja, sendo um "juiz das liberdades terá uma perspetiva mais próxima dos direitos e liberdades dos arguidos".

No entender de Luís Menezes Leitão, esta discrepância não implica, por isso, "qualquer fragilização do Ministério Público, até porque [este último] decidiu recorrer, o que significa que está convencido do que se passou". O que aconteceu é a tramitação "normal" de um processo criminal: enquanto o Ministério Público efetua diligências para apurar indícios de práticas de ilícitos, o juiz de instrução determina se existem de facto "perigos que justifiquem a gravidade" das medidas de coação solicitadas.

Apesar de tudo ter decorrido conforme a lei - isto é, de o Ministério Público ter efetuado buscas para apurar indícios de práticas de ilícitos e, consequentemente, ter solicitado ao juiz de instrução criminal determinadas medidas de coação -, o advogado Guilherme Figueiredo admite que "tudo isto deveria ter sido feito de forma diferente".

Começando, desde logo, pelo último parágrafo do comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR), divulgado na sequência das buscas e que faz referência ao conhecimento, no decurso das investigações, "da invocação por suspeitos do nome e da autoridade do primeiro-ministro e da sua intervenção para desbloquear procedimentos no contexto suprarreferido". Ora, no entender do advogado Guilherme Figueiredo, aquele parágrafo "era desnecessário", pelo menos nos termos em que foi redigido, defendendo que o mesmo "deveria ser mais esclarecedor".

"Não se pode dizer apenas que foi instaurado no Supremo Tribunal da Justiça um inquérito para analisar as referências feitas naquele contexto. É evidente que, quando isto chega ao espaço público assim, o que as pessoas vão entender é que [o primeiro-ministro] está metido [no caso]. Eu não sei se está ou não, não quero colocar isso em causa, mas (...) há aqui alguma displicência relativamente à honra das pessoas", argumenta Guilherme Figueiredo, salientando a importância da presunção da inocência dos arguidos.

No limite, acrescenta o advogado, aquele parágrafo até podia nem ter sido divulgado. "Se existia algum facto que determinasse a abertura de um inquérito no Supremo Tribunal da Justiça, devia ter sido iniciado mas não precisava de ser comunicado enquanto não existissem factos concretos."

O advogado Luís Menezes Leitão, por sua vez, entende que o parágrafo que faz referência ao primeiro-ministro "diz o que é óbvio e o que tinha de dizer sempre, que é: 'houve referências ao primeiro-ministro neste processo, [mas] como não temos competência para investigar essas referências ao primeiro-ministro remetemos para o foro próprio, que é o Supremo Tribunal da Justiça".

"Não foi o Ministério Público que demitiu o primeiro-ministro"

Na sequência do comunicado da PGR, António Costa acabou por pedir a demissão ao Presidente da República, mas, de acordo com os advogados ouvidos pela CNN Portugal, o primeiro-ministro "não tinha de o fazer". "Se o primeiro-ministro tomou a decisão de se demitir, a verdade é que não era obrigado a fazê-lo, uma vez que nem sequer foi constituído arguido. Isto foi uma decisão sua, da qual não pode ser imputado nada ao Ministério Público", argumenta Luís Menezes Leitão.

Já o advogado Marinho e Pinto diz mesmo que "não foi o Ministério Público quem demitiu o primeiro-ministro, foi o primeiro-ministro que abandonou o cargo", frisando que "o Ministério Público cumpriu a sua função".

Por isso, os advogados dizem não entender as críticas dirigidas à procuradora-geral da República, Lucília Gago, sobre quem estão agora centradas todas as atenções. "Atribuir responsabilidades ao Ministério Público pela demissão de um Governo parece extremamente exagerado", considera Luís Menezes Leitão, lembrando que este caso ainda se encontra numa fase "muito embrionária" de investigação.

O também ex-bastonário da Ordem dos Advogados Marinho e Pinto assinala que a procuradora-geral da República "não tem nada que ver com o inquérito" no âmbito deste processo. "Não é responsável nem tem competência para interferir nos inquéritos", reitera.

O advogado Guilherme Figueiredo diz mesmo que uma eventual destituição da procuradora-geral da República nesta altura, na sequência deste caso em específico, "iria criar um verdadeiro pânico no espaço público". "Não faria sentido haver agora uma destituição da procuradora. O que faz sentido é que se faça reflexões por parte do poder político, nomeadamente a Assembleia da República, que deve refletir também sobre estas matérias. O que não significa vir a mexer no Conselho Superior do Ministério Público, mas significa que é preciso olhar para isto e exigir medidas melhores. Se for necessário alterar alguma coisa, altere-se."

Por outro lado, Guilherme Figueiredo admite que a Procuradoria-Geral da República tem "uma lição a tirar" de toda esta situação, nomeadamente a importância da "defesa da honra das pessoas". Por isso, o advogado considera que Lucília Gago deve procurar "comunicar mais" e "esclarecer" a opinião pública com "comunicações mais razoáveis e reiteradas", sem que se viole o segredo da justiça e explicando o que é "a figura do arguido e a sua presunção da inocência".

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