Crianças e jovens "mais vulneráveis" aos malefícios das redes sociais. "Se o seu filho fosse para o meio de um shopping exibir-se, você permitia?"

11 nov 2023, 22:00
Facebook

Nos Estados Unidos, 42 procuradores avançaram com um processo contra a Meta, dona do Facebook e do Instagram, porque a empresa sabia que as redes sociais têm funcionalidades que viciam jovens e crianças e nada fizeram para evitar casos graves de problemas de saúde mental. Especialistas portugueses deixam o alerta: é preciso cultivar a literacia digital dos jovens e atuar desde tenra idade

Mais de quatro dezenas de procuradores-gerais dos Estados Unidos avançaram com um processo judicial contra a Meta, a dona do Facebook e do Instagram, por prejuízo à saúde mental de milhares de crianças e jovens. Alegam que a gigante tecnológica tem funcionalidades que viciam os utilizadores e que nada fizeram para o evitar. Mais: consideram que as redes sociais promovem a comparação social e a dismorfia corporal e garantem que foram reunidos dados de menores sem que os seus tutores tivessem uma palavra a dizer sobre o assunto. Especialistas portugueses asseguram que os procuradores-gerais de 42 Estados norte-americanos têm razão nas alegações e deixam importantes alertas aos utilizadores e aos seus responsáveis: a utilização excessiva das redes sociais é uma realidade, não é exclusiva dos jovens, mas eles estão muito mais vulneráveis.

“Há três áreas ligadas às tecnologias que constituem uma preocupação: jogo online, pornografia e jogos de azar. Muitos dos mecanismos presentes nos jogos de azar estão presentes nas redes sociais. Prejudicam a saúde mental e saúde física e é importante percebermos o mecanismo de funcionamento destas funcionalidades, que nos fazem manter agarrados”, começa por alertar Tito de Morais, um dos mentores do projeto Agarrados à Net.

“Mantêm agarrados crianças, jovens e adultos. Mas as crianças e os jovens são mais vulneráveis. As redes sociais usam os chamados ‘padrões negros’, funcionalidades que nos fazem manter ali e querer lá voltar”, acrescenta Cristiane Miranda, outra das responsáveis do projeto.

São funcionalidades “que exploram as fragilidades do cérebro em desenvolvimento das crianças e dos jovens”, como o autoplay, o scroll infinito ou o like. E se para um adulto já é difícil gerir determinadas emoções provocadas pelo que vê e lê online, para uma criança a tarefa torna-se ainda mais difícil.

“Um jovem quando coloca uma fotografia do seu gatinho nas redes sociais, na cabeça do jovem, quem põe um like naquela fotografia não está a dizer que gosta do gato, está a dizer que gosta dele próprio”, explica Cristiane Miranda.

E o jovem tende a colocar mais fotografias e, por vezes, fotografias mais ousadas, levando a uma maior exposição, à comparação dos corpos, conduzindo, por exemplo, a mais casos de bulimia e outras desordens alimentares ou a mais jovens a tomar substâncias perigosas como esteroides. “Antigamente, comparávamo-nos com o colega do lado. Agora comparamo-nos com o mundo inteiro”, constata Cristiane Miranda.

Especialistas não duvidam do impacto negativo das redes sociais na saúde mental de todos, principalmente dos jovens

Tito de Morais assegura que as gigantes tecnológicas estão conscientes do mal que estão a causar, até porque há “developers que desenvolveram estas funcionalidades que agora dizem que estão arrependidos e admitem que criaram um monstro”. “Muitos deixaram as empresas onde trabalhavam para criarem um movimento para alertar os colegas”, lembra Tito de Morais.

Os perigos podem mesmo ser fatais. Tito de Morais lembra que o algoritmo das redes sociais vai detetando as preferências de cada um e dá aos utilizadores aquilo que eles querem ver. “Se houver alguém que tenha tendências depressivas e tendência para ver conteúdos depressivos, o algoritmo vai mostrar mais conteúdos desse género. (…) Por isso é que temos mais casos de suicídio, bulimia, anorexia e comportamentos autolesivos”, sublinha.

Raparigas mais expostas

Ivone Patrão, psicóloga e investigadora do Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), do projeto Geração Cordão, lembra que os rapazes estão mais sujeitos aos perigos do jogo e as jovens mais expostas às redes sociais. “Instagram e TikTok têm um perfil muito mais feminino. A maior parte da investigação em Portugal e lá fora mostram que o perfil de dependência das redes sociais é muito mais feminino do que masculino. Embora haja aqui uma rasteira: no jogo, eles também usam redes sociais, com o Discord ou o Telegram”, alerta.

A psicóloga sublinha ainda que há uma espécie de perigo escondido nas redes sociais, já que estamos alerta para a dependência do jogo online, por exemplo, mas as redes sociais são de consumo comum à família. “Nem nos apercebemos, no contexto familiar, do tempo que é consumido pelas redes sociais e, com isso, acabamos por validar o seu uso. E o problema agudiza-se tanto que acaba por invadir as outras áreas da vida dos jovens”, alerta.

“Preocupam-me os que estão em situação de maior vulnerabilidade. Os que têm problemas familiares, os que já têm tendências depressivas. As redes permitem-lhes fugir da própria realidade”, acrescenta.

Ivone Patrão, Tito de Morais e Cristiane Miranda concordam quando sublinham que “devemos atuar precocemente”. “A prevenção começa no momento em que lhes colocamos um ecrã à frente”, diz Cristiane Miranda.

“Quando introduzimos a tecnologia, devemos adequar à idade, com supervisão do tempo e dos conteúdos. Vem aí o Natal. Não basta oferecer presentes quadrados e retangulares e está arrumado o assunto. É preciso conversar com eles e prepará-los para o que vão receber. E não é uma conversa. São várias. Ser mãe e pai dá muito trabalho”, acrescenta Ivone Patrão.

Os riscos e sinais de alerta

Os riscos são reais e os sinais de alerta também. E estão lá. Basta estar atento. De acordo com Ivone Patrão, os argumentos dos procuradores norte-americanos são válidos e há estudos que o comprovam, mostrando que os níveis de dopamina de um jovem viciado nas redes sociais são semelhantes aos de um adito no jogo ou em algumas substâncias ilícitas.

Os jovens que utilizam excessivamente as redes sociais tornam-se mais isolados, têm mais dificuldade nas competências sociais, uma autoestima mais baixa e uma diminuição no rendimento escolar. Têm também níveis mais elevados de depressão e de ansiedade e há, em muitos casos, alterações de peso (“com o uso excessivo das tecnologias, comem muito mais finger food, que lhes permite comer com uma só mão e usar o telemóvel com a outra. E isso reflete-se no tipo de alimentação, que é pouco variada e menos saudável”, explica Ivone Patrão).

Estudos demonstram que as raparigas estão mais vulneráveis aos perigos das redes sociais para a saúde mental 

Além disso, “as redes sociais promovem muito a questão da imagem” e conduzem a uma distorção da própria imagem. “Sobretudo elas fazem muito as cirurgias digitais. Os retoques, os filtros… Isso é percetível nas fotografias que publicam de si próprias”, alerta a psicóloga, falando mesmo um “self das redes sociais e um self da vida real”.

A prevenção e o remédio

A chave para prevenir estes comportamentos está no diálogo em casa, sublinha Cristiane Miranda. A especialista lembra que os mais novos “absorvem todo o tipo de informação” e “não leem o jornal”. A informação chega-lhes precisamente por via das redes sociais e há riscos na visualização de conteúdos sem qualquer tipo de filtros.

“As redes sociais têm muitas vantagens e muitos benefícios. Há que ensinar as crianças e jovens a aproveitar as coisas boas que estas funcionalidades têm. Conversar com a criança sobre o que ela está a ver, como é que isso pode ser útil na sua vida. É importante manter uma conexão com os nossos filhos desde pequenos e não pensar que isto só acontece aos 10 ou 11 anos quando recebem o primeiro telemóvel”, resume.

Entre pais e filhos, não pode haver conversas tabu. É preciso dar abertura às crianças para falarem de tudo com os pais, porque eles vão ter contacto com as diferentes realidades e “vão aprender e vão aprender da pior forma”.

“Tem de haver regras. Regras muito claras. Eles vão sempre querer esticar a corda. Eles vão sempre querer mais um bocadinho e é preciso ser firme”, acrescenta Ivone Patrão.

É importante também mostrar aos filhos que há mundos para além do mundo digital. “Nós somos os vendedores do mundo offline. O mundo online é muito apetecível e a concorrência é desleal. Promover passeios em família, idas ao parque, jogos de tabuleiro… A tecnologia está a invadir tudo e é importante mostrar-lhes vida para além daquilo”, aconselha a psicóloga.

Na introdução das tecnologias, é fundamental o acompanhamento das crianças por parte dos pais

Além disso, a vigilância é fundamental. “Se o seu filho fosse para o meio de um shopping exibir-se, você permitia?”, questiona Cristiane Miranda.

“É preciso ser pai também online. Jogar o que eles jogam, ver o que eles veem, visitar o que eles visitam”, acrescenta ainda Ivone Patrão.

Os três especialistas ouvidos pela CNN Portugal são unânimes em alertar os pais, mas também são unânimes em dizer que é preciso aliviar o peso da culpa. O importante é dar o primeiro passo e ter a humildade de perceber que a parentalidade não é tão intuitiva como se pensa e que é sempre possível pedir ajuda.

“Amar pode ser intuitivo, mas educar não é intuitivo. Não chega. Como posso ser melhor mãe e melhor pai? Isto estuda-se. Isto aprende-se. (…) Não há pais perfeitos. Vamos sempre errar. É bom termos sempre essa consciência. Até para a saúde mental dos nossos filhos”, resume Cristiane Miranda.

Uma ação destas seria possível em Portugal?

Tito de Morais sublinha que a realidade portuguesa não é assim tão distante da norte-americana, onde a Meta está a ser processada. “Essas funcionalidades estão presentes também em Portugal. Se a legislação portuguesa não tem referência a isso, há uma série de diretivas e regulamentos europeus que incluem questões relacionadas com os padrões negros. Por isso, um processo destes é possível em Portugal, sim!”, diz.

Opinião semelhante tem o advogado Nuno Cardoso-Ribeiro. “Em Portugal, não existe uma figura equivalente à dos Procuradores-Gerais norte-americanos, nem se prevê no Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) a legitimidade dos órgãos de fiscalização para instaurar ações desta natureza. Isto não significa que uma ação similar fosse completamente inimaginável. Embora pouco utilizadas, as ações populares previstas no artigo 52.º da Constituição permitem aos cidadãos ou associações de defesa de interesses o direito de promover a prevenção, cessação ou perseguição judicial das infrações contra os chamados interesses difusos (saúde pública, direitos dos consumidores, etc). Aliás, o artigo 21 da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (Lei n.º 27/2021 de 17 de maio) prevê expressamente o recurso à ação popular digital para defesa de direitos nesta matéria”, explica o advogado.

“No caso das redes sociais utilizadas por crianças e adolescentes, poderão, por exemplo, estar em causa a violação do artigo 8.º, do RGPD (consentimento de crianças) e do artigo 16.º da CDC, que garante a salvaguarda das crianças a intromissões arbitrárias e ilegais na sua vida privada, ou então direitos como o da reserva da vida privada, o direito à saúde, o direito à integridade psíquica e o direito ao desenvolvimento da personalidade, todos com assento constitucional”, acrescenta.

O advogado admite, contudo, que, “em termos práticos”, a probabilidade de sucesso de uma ação desta envergadura lhe parece “extremamente remota, pois não é claro como se conseguiriam demonstrar os pressupostos de que dependeria a responsabilização da empresa tecnológica”.

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