As minhas crianças estão bem mas pediram-me para ir ao psicólogo

CNN Portugal , FMC
26 nov 2022, 16:00
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Devem as crianças procurar um psicólogo mesmo quando não têm problemas? É uma questão que pode ser complexa - e até estranha - para os pais quando se deparam com ela

“Nos últimos anos notei uma grande diferença”, começa por notar a psicóloga Jordana Cardoso, coordenadora da equipa de parentalidade e desenvolvimento infanto-juvenil da Academia Transformar, ao referir-se ao aumento do número de pessoas, sejam elas crianças ou adultos, que procuram acompanhamento profissional. Contudo, nem todas apresentam graves problemas, apenas querem “conhecer-se melhor ou sentem que alguma coisa no seu mundo” não está a 100%, explica a especialista.

Também Melanie Tavares, psicóloga clínica e coordenadora no Instituto de Apoio à Criança, indica que tem conhecido crianças, especialmente na idade da adolescência, que procuram abertamente ajuda profissional sem apresentar quadros preocupantes.  

Diana conta que foi a filha, com 13 anos, que pediu para ir a uma consulta. Segundo Diana, a filha “sempre foi uma miúda muito calma e estruturada”, não apresentando quaisquer sinais preocupantes ou graves problemas que precisem de uma ajuda maior. Quando questionada sobre a razão do pedido, a jovem justificou que “gostava de falar com alguém sobre as suas coisas”. Sem nunca ter tido qualquer acompanhamento, a procura agora explica-se por uma necessidade de “querer falar”.   

E tal começa a deixar de ser a exceção, principalmente em adultos e em adolescentes, que começam a ter “uma maior consciência” de si e procuram melhorar certos aspetos na sua vida, como explica Jordana Cardoso.   

A criança de nove anos que chorou compulsivamente ao ver o pianista

Joaquim, de nove anos, de vez em quando pede uma visita à psicóloga - que já o ajuda há algum tempo. Manuela, a mãe, lembra que ao fim de 15 dias de confinamento, no início da pandemia, uma imagem de um pianista a tocar numa sala vazia para um público invisível despertou nele um choro compulsivo, que “demorou duas horas” a desaparecer. Perante o panorama, Manuela decidiu procurar ajuda e o filho começou a ser acompanhado.

Se à época as consultas eram mais necessárias e, por isso, ocorriam de forma regular, agora são esporádicas e subsequentes a um pedido, apenas porque o filho “quer falar”. Manuela sublinha que ele o faz porque “gosta, porque lhe faz bem”. “Ele vai quando sente que não tem ferramentas para lidar com certos assuntos”, diz, evidenciado que ocorre quando o filho se sente mais ansioso.   

Melanie Tavares não deixa de louvar esta iniciativa. “Estas atitudes expressam um nível de maturidade bastante desenvolvido e uma inteligência emocional muito grande.” Para Jordana Cardoso, esta necessidade de falar com os psicólogos pode não ser indicativo de falta de confiança nos pais ou de algo que tenha de suscitar cautelas. “Os filhos podem estar muito confortáveis com os pais mas os psicólogos ajudam de uma forma diferente, porque não há julgamentos, não emitem juízos de valor e existe uma maior neutralidade e uma maior clareza”, clarifica, acrescentado que são “relações diferentes e complementares”.   

Este também parece ser o caso da filha de Diana. “Apesar de ela até falar bastante comigo, sei que muitas vezes é mais fácil falar com alguém que não faz parte do círculo familiar ou de amigos”, atesta esta mãe.   

Melanie Tavares normaliza a situação. “Às vezes querem falar de coisas da família mas nem são coisas graves. Podem ser coisas leves, como as regras e os limites.” A especialista acrescenta ainda que tal nem sempre é mau.  

“Nós gostamos muito de promover o diálogo familiar, mas a verdade é que existem assuntos que pertencem a uma outra esfera” e que não podem ser ditos aos pais porque estes não são amigos.  

Ainda assim, Jordana Cardoso não descarta que, em certos casos, exista falta de algum espaço de comunicação, tanto pelo temperamento próprio da criança como pela maneira de ser dos pais. Por vezes, numa tentativa de ajudar e arranjar soluções para os problemas dos filhos, os pais acabam por impedir que as crianças se sintam ouvidas.   

“Os conselhos rápidos, a falta de tempo, alguns julgamentos” inocentes são alguns dos exemplos que podem levar a que as crianças procurem outros sítios para serem escutados, menciona a psicóloga.   

“Ainda somos vistos muitas vezes como tratadores das doenças, mas nós somos promotores de saúde mental”

A procura de especialistas, mesmo em casos ligeiros, pode ser vital para a evolução emocional dos mais novos, bem como no relacionamento com os outros, como testemunham as mães que falaram com a CNN Portugal. Mesmo que “não existam sinais de alerta, acho que é importante que as crianças possam falar abertamente sobre os seus sentimos com profissionais que não fazem parte do seu núcleo e com quem estarão mais à vontade para falarem do que quiserem”, defende Diana.   

Nestes casos, o acompanhamento é importante porque fornece ferramentas crucias e úteis para conseguirem lidar com situações futuras. “Ainda somos vistos muitas vezes como tratadores das doenças mas nós somos promotores de saúde mental”, frisa Jordana Cardoso, que não deixa de destacar o trabalho concretizado nesse sentido pela Ordem dos Psicólogos. 

Melanie Tavares também sai em defesa da sua profissão, expressando que servem para “partilhar os pensamentos, dando-lhes sentido e significado”. Apesar disso, Jordana Cardoso alerta que, seguindo um código de ética, este acompanhamento não é feito se não houver um objetivo concreto. Ou seja, para que exista uma terapia, há algo a resolver ou a melhorar, mais não seja uma carência de um maior autoconhecimento.   

Quem já recorreu a estes especialistas sabe que no início as consultas são mais frequentes e que depois vão ficando gradualmente mais espaçadas. O desígnio último da terapia é que os pacientes ganhem autonomia para lidar com os obstáculos que aparecem, alcançando uma vida independente do psicólogo, refere Jordana Cardoso, afirmando que, quando tal ocorre, é dada “uma alta”.  

O mundo está a evoluir, mas o estigma está longe de ser residual  

Tanto Diana como Manuela foram alvos indiretos de alguns estigmas. Diana conta que o pai da filha “desvaloriza completamente” este tipo de terapia, alegando que os problemas se resolvem somente com a ajuda dos pais ou que as filhas o conseguem fazer por si mesmas.   

No caso de Manuela, o comentário partiu de um familiar. “Um dia estava no consultório e enviei uma fotografia para o grupo da família”, onde expunha que estava a acompanhar o filho a uma consulta de psicologia. A pergunta imediata de um dos participantes foi “porquê?”, relata.   

“Nem toda a gente encara isto com naturalidade”, denota Manuela, que da experiência do filho só tem elogios a fazer. “Ele é muito resiliente e muito consciente dele próprio e tenho consciência que o é por causa da psicóloga. A terapia refortalece-o.”

Mas será imperativo que todos façam terapia? Jordana Cardoso diz que não existe uma resposta “de sim ou não”. “Num mundo ideal, teríamos psicólogos em todas as escolas” para acompanhar as crianças, para fazer “uma observação na sala de aula e falar com os professores”. Desta forma, algumas problemáticas poderiam ser tratadas em grupo, sem que impere a necessidade de um seguimento individual, observa. Neste mundo alternativo, em que os psicólogos existem em número suficiente e estão presentes em todos os estabelecimentos, as questões menores seriam logo resolvidas sem que escalassem e a sinalização para quem precisasse de um acompanhamento mais individual seria feita atempadamente, evitando situações mais problemáticas.

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