“Estamos a entrar num movimento muito disruptivo”. Inteligência Artificial já está a mudar a Saúde em Portugal

8 abr 2023, 08:00
Doença (DR: Pexels/Anna Shvets)

A utilização de Inteligência Artificial está a revolucionar o setor da saúde em Portugal, proporcionando aos doentes uma forma eficiente de diagnosticar, monitorizar e receber assistência médica. Os especialistas reconhecem que ainda existem muitas aplicações potenciais desta tecnologia, que tem um calcanhar de Aquiles

Uma revolução na forma como as pessoas se relacionam com o sistema de Saúde, num país que está a envelhecer e onde os recursos humanos altamente especializados são cada vez mais escassos. Do apoio ao diagnóstico de doenças, à monitorização e assistência de pacientes a passar pela análise de imagens médicas, a Inteligência Artificial já está a mudar a Saúde em Portugal, mas os especialistas sublinham que há muitas utilidades que, para já, ainda nem conseguimos imaginar.

“Estamos a entrar num movimento muito disruptivo. A Saúde, até agora, era uma relação muito desigual. Estas ferramentas põem uma grande responsabilidade no próprio [utente], que antes ia ao médico e este lhe dizia o que tinha. Entusiasmante, mas desafiante”, afirmou Paula Brito Silva, durante um painel que debatia o impacto da Inteligência Artificial num conjunto de debates organizados pela Universidade Nova e pela CNN Portugal.

Desde fevereiro de 2022, que a CUF tem em funcionamento um avaliador de sintoma digital na sua aplicação móvel. Este sistema combina a “inteligência artificial” com “o conhecimento médicos e a evidência científica” para permitir aos doentes perceberem as possíveis causas para os seus sintomas e receberem o acompanhamento clínico adequado. “Este sistema permite, a partir de um primeiro sintoma que a pessoa tenha, responder a um conjunto de perguntas na nossa aplicação que lhe dá uma probabilidade de diagnóstico no final e faz-lhe o encaminhamento automático. É uma espécie de pré-rastreio”, adianta Paula Brito Silva.

Mas o grupo conta também com alguns projetos piloto que já estão em andamento. Um deles é, tal como o ChatGPT, um chatbot, que responde de forma inteligente aos utentes que fizeram uma cirurgia em ambulatório e precisam de fazer um follow-up. Tipicamente este processo seria feito por um enfermeiro, mas aqui “mediante protocolos muito rigorosos”, o algoritmo vai colocando várias questões ao utente e, caso exista algum desvio, é ativado o contacto humano. A CUF espera que, caso venha a ser implementada, esta tecnologia permita aumentar o número de follow-ups e libertar os recursos humanos para tarefas mais especializadas.

“Está a correr bem e as pessoas estão a reagir bem. Isto vai permitir fazer muitos mais follow-ups, em muito mais casos. Com este género de ferramentas, podemos ir mais longe. Muitos dos desenvolvimentos futuros já estão a ser testados, outros nem sequer os conseguimos imaginar”, afirma a Paula Brito Silva.

Numa primeira fase, a Inteligência Artificial vai alterar por completo a forma de relacionamento do cidadão com o sistema de Saúde. Muitos dos processos que hoje temos com os médicos e enfermeiros deverão ser “muito agilizados” com esta tecnologia. Num futuro não muito distante, os utentes poderão lidar ter aplicações médicas a ajudá-los a gerenciar sua medicação e a fornecer informações sobre seu tratamento. Mas para já, os sistemas de Inteligência Artificial e os modelos de linguagem existentes ainda não são completamente fiáveis.

“Questionando o próprio ChatGPT sobre se ele é um método fiável de diagnóstico, ele admite que só até certo ponto e que depois é sempre preciso um método diagnóstico humano. Nós ainda não temos os instrumentos suficientes para confiar integralmente na Inteligência Artificial para fazer tudo”, admite Pedro Pita Barros, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa.

O papel da Inteligência Artificial não fica apenas pela monitorização e assistência ao Em fevereiro de 2023, o Hospital da Luz, em parceria com o Instituto Superior Técnico, começou um projeto-piloto com 50 pacientes voluntários com pelo menos duas doenças crónicas. O projeto que visa agregar todos os dados do paciente numa única plataforma, fornecer sugestões de intervenções médicas e criar uma pontuação para o risco de hospitalização de um determinado paciente. Para isso, os especialistas vão utilizar sensores dos smartwatches ou tapetes colocados no colchão da cama para monitorizar a atividade física diária e a qualidade do sono.

Isto permite aos profissionais de Saúde terem acesso a informação muito mais pormenorizada acerca da atividade e do estado de saúde de um paciente do que o próprio é capaz de explicar ao médico. Além disso, o projeto espera conseguir descobrir tendências ou aspetos das doenças que podem ter passados despercebidos, através da capacidade que a Inteligência Artificial tem para descobrir padrões. Essa capacidade permitiria aos especialistas passar a ter uma ação mais preventiva.

Um dos aspetos que mais entusiasma os especialistas com a incorporação da Inteligência Artificial na Saúde é precisamente a análise de imagens por parte do algoritmo. “Toda a parte de processamento de imagem e de informação baseada em imagem também está muito mais avançada, tendo em conta que os algoritmos já conseguem detetar muito precocemente alterações que o olho humano não consegue encontrar nas imagens. Isso dá um avanço grande na deteção de cancros e outros problemas”, refere Pedro Pita Barros.

Para Liliana Ferreira da Fraunhofer Portugal, o salto que está a ser dado pela introdução de tecnologias de Inteligência Artificial ou de modelos de linguagem com o ChatGPT é “absolutamente brutal” e, neste momento, vive-se um misto de “entusiasmo e de curiosidade”. A empresa trabalha há vários anos com a Inteligência Artificial “num espectro muito alargado”, com projetos na área da visão computacional, da deteção de risco em imagens de pele, com a deteção de melanoma ou dos parasitas da malária em amostras de sangue, na monitorização e no acompanhamento dos doentes, por exemplo.

Quase toda a atenção está, neste momento, posta nos modelos de linguagem como o ChatGPT ou o Bard, da Google. Estes sistemas conseguem prever criar respostas com base em modelos probabilísticos que aprender a prever a probabilidade de uma sequência de palavras. Os modelos são treinados com grandes quantidades de texto para aprender a utilizar linguagem de uma forma semelhante à dos humanos.

“O ChatGPt poderá ser um aspeto muito interessante na monitorização remota com hospitalização domiciliária, permitindo ao utente ter uma conversa mais humana com algo que ele não sabe o que é, que ajuda a quem está à distância receber um sumário para poder trabalhar”, explica Pedro Pita Barros.

Muitos especialistas estão a olhar com particular atenção para as potencialidades desta tecnologia num país que está a envelhecer e onde os recursos humanos altamente especializados são cada vez mais escassos. “Nós hoje temos uma enorme discussão sobre os recursos que estão disponíveis para tratar uma população que está a envelhecer, com patologias novas, cada vez mais crónicas, criando enorme pressão nos sistemas de saúde”, alerta a administradora executiva da CUF.

Por outro lado, muitas pessoas temem que a Inteligência Artificial venha a ter um impacto demasiado disruptivo no mercado de trabalho e acabe por roubar empregos. Para Paula Brito Silva esta pode ser uma oportunidade para libertar estes profissionais das tarefas mais rotineiras e que acabavam por ocupar tempo de trabalho dos médicos, como o preenchimento de dados. “Nós ainda não vimos o impacto que isto pode vir a ter do ponto de vista da gestão. Não numa lógica de substituição dos médicos, mas sim numa lógica de libertar tempo e trabalho para aquilo que é verdadeiramente importante”, refere.

Quantidade de dados – o calcanhar de Aquiles

Mas todas as futuras utilizações destas tecnologias estão dependentes de quantidades enormes de informação, que necessita ser recolhida e trabalhada para tornar mais eficiente o sistema de Saúde. “Tudo isso vai exigir uma quantidade de informação que nós nem podemos imaginar”, refere Pita Barros. Esse será um dos maiores desafios do progresso da Inteligência Artificial no campo da Saúde. “Este é o grande calcanhar de Aquiles: quanta informação vamos querer dar, quem é que vai dar?”, questiona o especialista.

De acordo com a IBM, uma pessoa gera aproximadamente 200 terabytes de informação médica ao longo da sua vida, embora cerca de 90% desses dados acabe por se perder simplesmente por não serem armazenados. O estudo da IBM, em parceria com a consultora Mckinsey e com a Orange Healthcare, afirma ainda que se os especialistas tivessem acesso a toda essa informação seria possível reduzir a mortalidade global em cerca de 20%.

Muita dessa informação pode já hoje ser recolhida nos smart watches e nos smartphones que utilizamos. Estes nossos já recolhem muita informação e, no futuro, podem ser tratados por uma aplicação, que nos dá indicação se devemos ou contactar o médico ou fazer novos exames. Com acesso a todos esses dados, existe um conjunto de “possibilidades que hoje ainda não conseguimos imaginar”.

“A Inteligência Artificial vai pegar em processos que já existem e substituí-los por processos mais rápidos e eficientes com mais informação, que é recolhida de forma mais automática. Quando falamos nisto, podemos falar de dispositivos que o utente utiliza e permite a monitorização à distância”, afirma Pita Barros.

Esta questão levanta também algumas preocupações acerca da natureza dos dados. “Se nós tivermos sobre determinado assunto só informação desviada, com alguns preconceitos ou dados que não sejam corretos, isso vai influenciar o resultado. À medida que utilizamos mais e mais a Inteligência Artificial, temos de ter disponíveis bases de dados que sejam realmente representativos de um acontecimento, para que as conclusões sejam tiradas, sejam com base nessa informação. Temos de ter cuidado com o que está por detrás a alimentar estes algoritmos”, refere Helena Canhão.

“É tudo muito entusiasmante e muito novo, mas nós não percebemos efetivamente se estas tecnologias protegem a privacidade dos dados que as estão a modelar. Temos de perceber de que forma podemos criar algumas proteções para que a utilização desta tecnologia seja o mais benéfica possível”, sublinha Liliana Ferreira.

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