Folhetim de voto: A esquerda mais estúpida do mundo?

24 jan 2022, 07:30
António Costa em Vila do Conde
 (MIGUEL A. LOPES/Lusa)

Uma eleição que parecia ganha tornou-se imprevisível. Mérito da direita e demérito da esquerda e da sua tendência para o harakiri, escreve o jornalista de Política Filipe Santos Costa na coluna diária de análise e opinião à campanha. Qualquer lado pode ganhar e a incerteza é tal que o PS pode ganhar, mas a direita ficar com a maioria no Parlamento. Lembra-lhe alguma coisa? Faltam 7 dias para as eleições

Harakiri. Durante muito tempo disse-se que a esquerda francesa era “a esquerda mais estúpida do mundo”. É fácil perceber porquê: à força de tantos tiros nos pés, de tantas querelas, de tanto sectarismo e ódios recíprocos, de tanta incapacidade de dialogar e identificar os adversários comuns à direita, em poucos anos a esquerda francesa implodiu e ficou remetida às franjas do mapa eleitoral. A prova: neste momento, a poucos meses das presidenciais francesas, o candidato de esquerda melhor posicionado é Jean-Luc Mélenchon, populista de extrema-esquerda, com apenas 10% das intenções de voto. À sua frente estão o centrista Emmanuel Macron, dois candidatos de extrema-direita (Marine Le Pen e Eric Zemmour, que por vezes faz Le Pen parecer moderada) e uma candidata da direita tradicional, Valérie Pécresse, herdeira de Sarkozy.

Tenho-me lembrado deste epíteto que foi colado à esquerda francesa, porque por estes dias a esquerda portuguesa parece muito bem posicionada para disputar o título aos seus congéneres gauleses. 

O caso começa logo por uma evidência: só estamos à beira de eleições por responsabilidade da esquerda - a mesma que foi capaz de se entender ao longo de seis anos em torno de orçamentos assim-assim, mas encontrou divergências irreconciliáveis no último orçamento, que, sob qualquer prisma, era mais à esquerda do que os anteriores. Daí, a esquerda entendeu que seria melhor arriscar ir a votos e dar ao país um espetáculo de fratricídio do que fazer cedências para evitar o que pode ser um harakiri. 

 

A História explica. Nada de novo na história das esquerdas em Portugal e no mundo. O sectarismo é um traço essencial numa história feita de purgas e donos de verdades absolutas, cada um vendo-se como a única e legítima esquerda, e olhando os demais como travestis, ou fantoches, ou radicais utópicos, ou pragmáticos vendidos. Enfim… A história diz-nos que insólito não é aquilo a que estamos a assistir nesta campanha - insólito e anormal foram os anos da geringonça. E todos os parceiros do defunto entendimento de esquerda parecem empenhados em demonstrar que isso são águas passadas.

 

Empatas. A direita, naturalmente, agradece. Não padece do desgaste da governação e da gestão da pandemia, nem tem de lidar com a acrimónia e as recriminações mútuas deixadas por essa convivência forçada numa maioria colada a cuspo. O resultado está à vista nas sondagens. Uma eleição que há umas semanas parecia um passeio para o PS sem sobressaltos para a esquerda, tornou-se uma roleta russa.

Entre o último Folhetim de Voto, na sexta-feira, e este, o PSD ultrapassou ligeiramente o PS nas intenções de voto, e voltou a ser ultrapassado pelo PS. Refiro-me à tracking poll da CNN Portugal que, como escrevi no primeiro dia, se tornou na peça central para se acompanhar esta campanha eleitoral - já tinha sido assim noutras campanhas em que algum órgão de comunicação social disponibilizou este tipo de ferramenta. 

Mais uma vez, mais do que os valores absolutos apontados para cada partido, a relevância de uma tracking poll é revelar tendências. E a tendência, neste momento, é de empate. O que significa que PS ou PSD podem vencer - algo impensável há apenas uma semana - e que tanto poderá haver no Parlamento uma maioria de esquerda como de direita - algo ainda mais inimaginável há apenas uma semana.

 

Sondagem das sondagens. Se não quiser fiar-se pela nossa tracking poll, que tem caraterísticas muito particulares, lembro-lhe que a última sondagem do Público relevava a mesma tendência de empate técnico. E acrescento mais um instrumento bastante útil: a sondagem das sondagens feita pela Rádio Renascença. Trata-se de uma ponderação com base nas várias sondagens divulgadas em Portugal, e pode segui-la aqui. O que diz? O mesmo que cada sondagem individual: em dez dias, a vantagem do PS sobre o PSD, que era de quase 9 pontos, caiu para cerca de metade. 

Nesta ponderação PS e PSD não estão empatados, mas estão quase em situação de empate técnico. E a tendência é a mesma, de aproximação entre os dois primeiros. Ao olharmos para o balanço direita/esquerda, o efeito é o mesmo.

Os sinais estão todos lá: PSD, Chega e IL reforçam bastante as suas posições (só o CDS destoa na onda direitista), enquanto PS, BE e PCP vêem fugir intenções de voto (quando muito, à esquerda talvez o Livre fuja a esta tendência, mas os seus valores são tão baixos que é difícil aferir).

 

“Não ajuda nada”. Rui Tavares, com aquele tom pedagógico que tem adotado desde o início da campanha, fazia ontem um bom ponto da situação do que está a acontecer ao seu espaço político. “O passa-culpas entre partes da esquerda não ajuda nada. Quando a esquerda demonstra vontade de convergência, o eleitorado de esquerda sente-se mobilizado, com mais vontade de ir votar e acontece o que aconteceu em 2019, quando toda a esquerda subiu. Se há partidos que põem a tática à frente da estratégia, desmobilizam o eleitorado e aí corre-se o risco de termos uma maioria de direita encostada à extrema-direita. É bom que os partidos percebam que o caminho que estavam a seguir era errado.” 

 

Estabilidade? Numas eleições em que António Costa colocou a “estabilidade” como o alfa e o ómega do que está em causa, quem diria que o fogo cruzado à esquerda não dá confiança ao eleitorado para apostar numa solução à esquerda?... Numas eleições em que António Costa fez da maioria absoluta a sua bandeira, quem diria que a maioria absoluta está cada vez mais distante, correndo o risco de que o voto no PS possa ser percepcionado como um voto inútil? Se é tudo ou nada em relação à maioria absoluta, e se as sondagens indicam que não haverá maioria absoluta nenhuma, o voto no PS serve para quê? Para o PS procurar os acordos que agora diz serem impossíveis, com os parceiros que considera não merecerem confiança? Para governar à Guterres, a tal governação que dependeu de acordos com o CDS e com o PSD, a direita que passou anos a demonizar, e continua a fazê-lo? Para ressuscitar a navegação à vista guterrista que, na análise de Costa, “foi o que foi”, e acabou como acabou, num pântano? Que estranho isto não entusiasmar o eleitorado, não é? (#alertadeironia).

 

E se Costa ganhar e a esquerda perder? Percebe-se, desde o início, que a aposta de Costa para chegar à maioria absoluta era secar os partidos à sua esquerda - sobretudo o BE, o primeiro a romper com a geringonça, logo em 2020, e aquele cujo eleitorado é mais instável. Admitamos, por absurdo, que o PS conseguiria, de facto, secar o BE e ir buscar muitos votos ao PCP, apesar do comunista ser bastante mais disciplinado - pelo que se vê neste momento, isso até poderia chegar a Costa para vencer as eleições. Mas nada nos diz que garantisse uma maioria de esquerda no Parlamento. 

O reequilíbrio a que se assistiu na última semana entre as forças à esquerda e as forças à direita pode significar que, no limite, Costa vença, mas sem maioria absoluta e sem maioria de esquerda na Assembleia da República. Imagine-se o berbicacho, para usar a expressão de Marcelo Rebelo de Sousa: o PS ser o partido mais votado, mas com o PSD muito perto, e a IL e o Chega a valer mais do que PCP e BE, formando uma maioria de direita. Lembra-lhe alguma coisa?

Sim, é possível. Porque quando vemos que a eleição está taco a taco, que a IL e o Chega podem ficar à frente do PCP e do BE, todas as hipóteses estão em aberto. Nesse caso, convinha estarmos também abertos a todas as hipóteses.

 

Viragem. Como chegámos aqui? Por mérito das campanhas da direita e falta de visão das campanhas da esquerda. Sobretudo graças à guerra civil que se instalou na antiga geringonça. Acicatada pela verbalização do pedido de maioria absoluta que nunca antes António Costa tinha assumido.

Escrevi, na sexta-feira passada, que aquele podia ser o momento decisivo da campanha - por causa de duas sondagens que davam empate técnico PS/PSD e esquerda/direita. Já se vêem as consequências do susto que esses estudos provocaram, sobretudo no PS. E, embora de forma ainda mitigada, no BE e PCP.

 

Costa corrige. Dizem os repórteres que acompanham em permanência a campanha socialista que António Costa nunca mais pronunciou o pedido de maioria absoluta desde o final da semana passada. E as condições de governabilidade deixaram de ser o prato forte da ementa socialista. Seja porque já percebeu que isso lhe está a fazer mal e a afugentar eleitorado, seja porque concluiu que é uma impossibilidade, seja porque voltou àquele ponto em que estava em 2015, quando dizia, coberto de razão, que as maiorias absolutas não se pedem, ou se ganham ou não se ganham. 

Para além desta correção de tiro, as crónicas dos comícios e ações de campanha de Costa dão conta de outros três acertos no discurso. 

  • Por um lado, o alerta de que ninguém pode ficar em casa - já bem bastou o efeito da desmobilização do eleitorado socialista em Lisboa, que permitiu a Carlos Moedas uma vitória retumbante, apesar do PSD pouco ter subido no concelho. Nunca houve palavra de ordem mais apropriada do que “Nessum Dorma” (“Ninguém durma”), a ária de de Puccini que é o hino de campanha dos socialistas.

Vale a pena acrescentar que o eleitorado do PS, sendo tendencialmente mais idoso do que o do PSD, pode ter maior receio de ir votar em contexto de pandemia, ainda mais desde que houve luz verde para que pessoas infetadas com covid possam ir às urnas no próximo domingo. Se muitos ficarem em casa nesta fatia do eleitorado, a vitória do PS será ainda mais difícil.

  • Por outro lado, Costa está agora a dedicar mais tempo do seu discurso ao cotejo entre as propostas do PS e as do PSD, dedicando menos energias aos partidos à sua esquerda. Nunca falta a censura à “irresponsabilidade” de quem chumbou o OE e precipitou a crise (ontem acusou o BE de procurar no PS “um bode expiatório” para a crise, e exortou Catarina Martins a “pedir desculpa de ter rompido com a unidade de esquerda já em 2020”). Mas as baterias estão agora mais focadas nos riscos de uma vitória do PSD e do “regresso da direita”. 
  • No fogo cerrado sobre o PSD, Costa acrescentou agora um novo argumento, acusando Rui Rio de ser um Passos escondido com rabo de fora.

 

Rejeição. Transformar Rio no diabo (como antes Passos Coelho agitava diabos que nunca se concretizaram) terá a eficácia necessária? Veremos, mas está, pelo menos, de acordo com o ar do tempo. Paulo Portas, no seu comentário Global de ontem, na TVI, avisou que esta vai ser “uma campanha mais centrada na rejeição do que na adesão”. Quem melhor conseguir espicaçar a rejeição do adversário mais possibilidades poderá ter de sucesso. 

 

Incerteza. Certeza, só uma: haverá incerteza até ao fim. Basílio Horta, que anda nisto desde o PREC, dizia ontem à noite no programa Princípio da Incerteza: “Não me recordo de uma campanha tão renhida como esta.”

 

Pequenos. No mesmo comentário no Global, Portas previu que a última semana de campanha, com a incerteza do resultado e a tentação do voto útil no PS e no PSD “não vai ser uma semana fácil para os outros partidos”. Daí a dificuldade - sobretudo à esquerda, onde a pressão de Costa para o voto útil é maior - do exercício de bloquistas e comunistas. É claro que a guerra fratricida à esquerda está a ser contraproducente, mas nem um nem outro se podem deixar “comer” pelo PS (uso “comer” entre aspas, porque em tempos foi o verbo usado pelo comunista Miguel Tiago)

 

Catarina afina, mas pouco. Ontem, Catarina Martins afinou o discurso: voltou a atacar a direita, e desafiou o PS para, no dia a seguir às eleições, começar a negociar um acordo de governo à esquerda com “medidas e metas para quatro anos”, para o que já definiu prioridades. Mas, ao mesmo tempo que Catarina acusava Costa de “queimar pontes à esquerda”, o deputado José Soeiro dedicou um discurso inteiro contra o PS. E Mariana Mortágua associou o PS à “tralha dos interesses” da direita. E, fazendo as diferenças entre PS e BE, colocou aquele tipo de pergunta que não costuma criar bom ambiente para negociações: “Em quem deve o país confiar: em quem combateu o saque ou em quem alimentou o saque?”

 

João vira, mas não muito. Também João Oliveira virou a mira para a direita. O facto foi tão notório e relevante que o Público faz hoje título com a grande novidade do dia: “Pela primeira vez nesta campanha, CDU faz da direita o alvo”. Sim, ma non troppo. Pelo meio dos tiros à direita, as habituais equiparações do PS com os partidos à sua direita. E a costumeira denúncia dos “arranjinhos” dos socialistas com os sociais-democratas.

Uma nota divertida na campanha da CDU (ou seja, a coligação que inclui o PCP e os Verdes, aquele partido que só vai a votos coligado com os comunistas, lembra-se?): João Oliveira acusou o PAN de ser “uma criação artificial sem adesão à realidade”. Sim, o João Oliveira da CDU, a tal que leva sempre os Verdes à boleia. Inês Sousa Real não esteve com meias palavras e acusou o PCP de ser “negacionista no que respeita às alterações climáticas”. 

 

Pedro, Mónica, Rui & Rui. Termino com quatro notas curtas sobre quatro protagonistas.

 

Pedro. Nuno Santos, promovido pelo PSD e pelo CDS a “papão da esquerda”, comiciou ao lado de António Costa em Aveiro, distrito onde é cabeça de lista. E transformou o fetiche da direita pela sua pessoa num argumento eleitoral a favor do líder socialista: “Se Rui Rio acha que eu sou um papão, só tem uma solução, que é votar em António Costa”. 

 

Mónica. Quintela, cabeça de lista do PSD por Coimbra, fez campanha este fim de semana ao lado de Rio, no distrito por onde é candidata. Mónica Quintela é advogada e ficou conhecida do país quando defendeu Pedro Dias, então o homem mais procurado do país, que andava a monte depois de alegadamente ter assassinado duas pessoas, uma delas um guarda da GNR. Na altura, Quintela negociou com a RTP a entrega de Pedro Dias - mas isto foi antes de ser candidata pelo partido que é contra a “justiça espetáculo”. Este fim de semana, a advogada e candidata considerou que “a justiça tem andado cega, mas já é tempo de tirar a venda”. O absurdo desta frase é ainda maior vinda de uma jurista. A Justiça é representada com uma venda, precisamente porque deve ser cega e julgar todos por igual. Justiça sem venda é o que existe em regimes autoritários, não em democracias liberais.

 

Rui R. Por falar em regimes autoritários, Rui Rio elogiou este fim de semana a justiça do Estado Novo, considerando que “em termos de eficácia, a justiça piorou desde o 25 de abril”. Pudera! Antes do 25 de abril a investigação, o julgamento e a condenação faziam-se sem qualquer garantia de direitos dos acusados. Sim senhor, era uma limpeza. Em rigor, Rio fez uma ressalva: “Tirando os julgamentos políticos, em termos de eficácia desde o 25 de abril a justiça piorou”. Haverá quem ache que esta ressalva faz diferença.

 

Rui M. E por falar em falta de eficácia, tivemos finalmente a sentença do Caso Selminho, que nos últimos anos pesou sobre Rui Moreira. Eficácia zero do lado da acusação: Moreira foi ilibado por falta de provas. Não é preciso um grande esforço de memória para lembrar todas as vezes que Rui Rio condenou Moreira, dizendo conhecer bem o processo, pois tinha sido presidente da Câmara do Porto e não tinha dúvidas sobre o seu sucessor “não ser confiável”, “ter interesses imobiliários” incompatíveis com o interesse público e “fazer negócios em benefício pessoal”. Rio, o tal que denuncia os “julgamentos de tabacaria”. Rio, que ataca as “condenações na praça pública”. Rio, que talvez prefira, como a sua candidata, uma Justiça sem venda nos olhos. 

 

Frase do dia. “Qual cansado? Estou cheio de energia!”

António Costa em campanha

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