Ninguém nos liga nada

2 mai 2022, 21:30

No mundo que se diz e proclama global, com uma circulação de informação instantânea, seria de esperar que, quando chegássemos aos assuntos mais importantes, houvesse uma relativa sintonia no peso noticioso que lhes fosse atribuído. Por exemplo, tomando um caso muito concreto, começava-se pelo futebol, seguia-se, em crescendo, a cultura, o 1.º de maio pelo País, uma ou outra notícia de política nacional e, depois, no internacional, a Ucrânia. Escusado será dizê-lo, não se trata de ser editor de coisa nenhuma, mas cada um comporá a primeira página do seu jornal pessoal como bem entender. Seria de crer que, na grande maioria dos casos, a guerra na Ucrânia ocupasse mais ou menos espaço nas primeiras páginas. Nuns casos mais, nuns casos menos. Só que não.

O que primeiro me chamou a atenção, para depois tentar indagar um pouco mais a fundo, foi um artigo recente do USA Today que, em concreto, se interrogava sobre a razão por que a grande maioria dos Estados não nos tinha acompanhado na decisão coletiva de aplicar contramedidas e embargos vários à Federação Russa devido àquilo que todos sabemos. Com efeito, andarão em torno de quarenta os Estados que tomaram essa decisão, ficando de fora, por isso, à volta de 150.

Naturalmente, isto diz-nos tudo, mas não diz quase nada. Para a Rússia, o peso do que decidiram estes tais 40 é muito relevante, e, como a Presidente da Comissão já declarou, a expectativa é a de que, mais tarde ou mais cedo, será inevitável a falência do Estado russo e, por conseguinte, a impossibilidade prática de este continuar o conflito. Admitamos que sim.

Porém, o tal artigo vai um pouco mais longe, procura saber porque é que, além disso, muitos povos e regiões olham com indiferença, se não mesmo com hostilidade, para aquilo que representamos e para aquilo que defendemos. E dá alguns dados curiosos, sobretudo sabendo-se que o USA Today não será dos órgãos de comunicação social mais “mundialistas”, para dizer o menos.

Por exemplo, e isto deveria servir de exemplo para quem concebe uma dita “democracia” internacional através do princípio da igualdade soberana dos Estados, se olhássemos à população dos países que votaram a favor, contra e se abstiveram na resolução da Assembleia Geral que suspendeu a Federação Russa do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, chegaríamos a conclusões curiosas. Primeiro, embora o número de Estados que votaram contra esta suspensão seja em muito menor número do que aquele dos que votaram a favor, ainda assim representam mais população. E, se juntarmos a estes aqueles que se abstiveram, então a diferença passa a ser gigantesca. Isto quer dizer o quê? Nada de muito especial, mas o suficiente para que o Secretário de Estado Blinken, a quem foi pedido um comentário, reconhecesse duas ou três coisas que entre nós talvez o fizessem logo pró-Putin.

Verificou desde logo, sem especiais problemas que, sim, é um facto, a maioria dos Estados não apoia a aplicação de contramedidas à Rússia. Bastantes, por outro lado, tendem a considerar que estamos a atuar ilicitamente contra a Federação Russa. Esta, como se sabe, é atualmente a posição da República Popular da China. A isto Blinken responde, creio que bem, que nem sempre o ser contra “sanções” significa ser a favor da posição da Federação Russa. E que esse é também o papel da diplomacia, ir trazendo mais Estados para o “nosso” lado através do diálogo. Porém, e reconhece depois (o que é muito surpreendente), há muitos Estados que se colocam questões legítimas a respeito de comportamentos passados de intervenção dos Estados Unidos. E esta?

Fechados como estamos no presente quadro conflitual na Ucrânia, os olhares de fora podem ser interessantes e ajudar-nos a “ver” com mais nitidez. Como é que o resto do Mundo olha para tudo isto?

Deu-me para consultar um daqueles sítios que agregam capas de jornais de todo o Mundo (https://www.freedomforum.org/todaysfrontpages/#1). Pareceu-me amostra suficiente para, pelo menos, dar por indiciada uma tendência. O que ressalta mais é que, fora do quadro europeu e americano, a questão ucraniana é quase “irrelevante” (no sentido de que nem tem chamada de primeira página) ou, quando muito, é tratada com muito menos peso do que outras notícias que, segundo o nosso olhar, nem se lhe comparam em importância relativa.

Como pode entender-se isto, como pode explicar-se esta “ignorância”? É simples. Para esses quadrantes, dignos como o nosso, a Ucrânia é uma abstração, está longe, é uma coisa nossa, pouco habituados que estamos àquilo com que os outros convivem desde sempre.

Mas, coloque-se a pergunta ao contrário. Quantas vezes demos protagonismo apaixonado ao que se passou na República Democrática do Congo, onde tombaram milhões? A que debates e controvérsias demos palco a propósito do Líbano e dos refugiados que este País, em número espantoso para a sua dimensão, alberga? Quem é capaz de descrever com o mínimo de pormenor casos de rutura constitucional no continente latino-americano? Quantos poderão certificar a importância que (não) demos à notícia recente da OXFAM sobre a terrível novidade de que, até ao fim de 2022, pode haver mais 250 milhões de pessoas em situação de pobreza extrema?

Não se critica aqui ninguém, as coisas são como são. Mas pelo menos explica-se a indiferença ou quase hostilidade de tantos face ao nosso sentimento legítimo de indignação relativamente à Rússia.

Ainda não o sabemos com nitidez, mas talvez estejamos a assistir, quase em direto à confirmação, em 78 rotações, daquilo que era apenas um processo difuso. Está a diluir-se a “comunidade internacional” única e unida pelo direito que sempre demos como certa, representada mais do que simbolicamente pelo fórum mundial que é a Assembleia Geral das Nações Unidas. É como se, pouco a pouco, emergissem dos escombros de uma unidade aparente várias comunidades internacionais distintas, com a renovação de alguns aspetos do sistema feudal. Cada uma dessas comunidades, diferente da outra, em princípio, adversária, oposta em muitas convicções, oposta, quase sempre, nas leituras do passado; do presente; e do que esperam que aí venha – são comunidades cujas relações são de inimizade e desconfiança crescentes.

Todas a quererem como máximo, e quando muito, pontes para que o conflito e o confronto não se desenvolvam, sobretudo se em seu detrimento. Nenhuma a acreditar em nenhuma das outras. Cada uma, virada mais para si, a desenvolver regras “comunitárias”, não aplicáveis a quem quer que seja das “outras” comunidades. E o direito internacional “geral”, mais fino e adelgaçado, a assumir-se como o passadiço suspenso que impede o corte radical. Também é assim que se pode e deve ler, e interpretar, a nossa reação coletiva exacerbada à invasão da Ucrânia pela Federação Russa; e o papel secundário que outros atribuem ao mesmíssimo facto.

Doravante, mas só para “nós”, a Rússia integra, de vez, uma qualquer outra comunidade.

Assim se explica que seja tão crucial não dependermos dela e estarmos a fazer tantos esforços para a enfraquecer e para dela nos “libertarmos”. O Direito entre “nós” e “eles” poderá ser, por isso, uma espécie de regresso a um passado já longínquo, a uma era em que se aplicavam regras diferenciadas consoante o interlocutor estivesse mais ou menos próximo, consoante o tivéssemos como mais ou menos igual.

Mas a inversa também é verdadeira ou, talvez melhor, também é tida como verdadeira por quem se nos opõe.

Vi alguma irritação por Serguei Lavrov ter denunciado em entrevista a “influência” do Ocidente, inimigo do Mundo, colonizador, racista, e etc. A acusação é aborrecida, ainda por cima vinda do alto representante de um País que ainda há pouco invadiu, e continua a agredir, um País soberano e independente. Aquilo a que temos de nos habituar, no entanto, é ao facto de, descontada devidamente a propaganda e a retórica de uso nestes casos, estas serem afirmações que fazem sentido para muitos. E afirmações que são, explícita ou mais discretamente, assumidas por outros poderes, noutras latitudes.

Será isto bom? Não, de todo. A desistência do multilateralismo seria, por maioria de razão para Países como Portugal, uma notícia devastadora. Voltarmos agora a uma espécie nova de Sacro Império, mesmo que muito digital e tecnológico, seria sempre um recuo profundamente negativo. Anunciarmos agora que esta pode ser a batalha final entre os bons (nós) e os maus (todos os outros) é uma tontice.

Recordo apenas que, depois de uma guerra como nunca existiu outra, se reconstruíram novos alicerces, mais sólidos e universais, através das Nações Unidas. Cabe-nos, sem desistir, continuar a fazer o mesmo esforço, as vezes que forem necessárias. É mais exigente, mas também muito mais estimulante, do que qualquer trejeito catastrofista.

Colunistas

Mais Colunistas

Patrocinados