O homem que foi tocado por Deus e namorou com o Diabo: Henry Kissinger, 1923-2023

1 dez 2023, 08:06

Henry Kissinger foi grande. Tão grande que, mesmo agora que é certo que morreu, continua a ser difícil dizer “foi”. Digamos de outra forma: se alguns seres humanos são mais do que a sua condição, Henry Kissinger vai além do facto da sua morte, a 29 de novembro, já mais do que centenário.

Quase todos falam agora de um génio, e não serei eu a colocar-me como exceção. No entanto, e o aspeto é invulgar, já há muito que muitos o viam como tal. Essa, a título de introito, será a primeira evidência: não precisou de morrer para que aqueles que o veneraram ou odiaram aceitassem, com entusiasmo ou a contragosto, que Kissinger teve o dom de uma inteligência superior e de uma vida extraordinária. Hoje, talvez seja mais recordado pelo que escreveu e ensinou depois da política, e algumas das suas obras são fundamentais para quem gosta de tentar interpretar o Mundo e o Poder. Para outros, a memória mais vívida será uma das suas últimas aparições, quando falou sobre a guerra na Ucrânia, contra aquele que era o mainstream, e veio depois a ser glorificado por ter mudado de opinião.

É, aliás, uma fotografia extraordinária, aquela que regista a visita que lhe fez Volodimir Zelensky já em setembro deste ano, nos Estados Unidos – sessenta e tal dias antes da morte de Kissinger. Ao centro, Kissinger, pequenino, encolhido e encarquilhado pela idade. A rodeá-lo, em veneração quase religiosa, três pessoas, entre as quais o Presidente da Ucrânia. Mas, não tinha sido Zelensky que tinha dito do defunto “parece que o seu calendário está em 1938 e não em 2022”? Sim, foi ele. Mas o líder ucraniano sabia o poder imenso de Kissinger, e não podia atrever-se a deixá-lo morrer sem que dali viesse uma qualquer bênção. A bênção veio, efetivamente, mas aposto que nada convicta: realpolitik até ao fim, não é? A lição mais importante é outra. Kissinger tinha cem anos, e estava no centro. Como sempre tinha estado: a mandar.

24 de setembro de 2023: Volodimir Zelensky, à direita, ouve Henry Kissinger, ao centro, durante a visita do presidente da Ucrânia aos Estados Unidos. A fotografia é de Andrii Yermak, chefe de gabinete de Zelensky, e foi então publicada na rede social Telegram.

Pelo meio, Kissinger teve tempo para, sempre com um sotaque carregado e sem nunca perder a compostura, ver admiração e ódios extremos em torno de si. Nessa perspetiva, sim, Kissinger também foi um pensador e homem de ação extremista e um radical, incompatível com linhas medianas e avesso à composição de teses opostas.

Recebeu o Prémio Nobel da Paz em 1973. Ora bem, acasalar Kissinger e paz na mesma frase parece uma contradição nos termos. Porém, Kissinger foi dois Mundos. Uns, só se lembrarão do lado sombrio e amoral, implacável, até sinistro. Muitos não conseguem esquecer, e terão razão, a forma como tantas vezes espalhou o caos na América Latina, como quem joga xadrez de forma displicente e sacrifica peões para, daí a cinco jogadas, cercar o Rei. Tantos, não conseguem passar uma esponja sobre o facto de, precisamente no ano em que foi agraciado com o Nobel, ter mandado derrubar Salvador Allende e colocar no poder outro. O outro, Augusto Pinochet, cuja alma deve ter visto menos luz do que os olhos, apesar de vendados por óculos de sol cor de betume. Não é possível atenuar o que decidiu no Vietname, embora dali tenha conseguido sair, é certo que deixando tombar no abismo, de certeza que sem qualquer remorso, o aliado do Vietname do Sul. Não é perdoável que decidisse a violência dos bombardeamentos por razões puramente pragmáticas, como quem decide o envio de uma carta diplomática.

A inteligência brutal era a sua arma, como também a violência foi a sua língua, a forma como se expressava. Era conforme aquilo que fosse definindo como o melhor, não só para o seu País como para o Mundo. De facto, teve nas mãos um poder tão imenso que, a certa altura, só dependia de uma pessoa: Henry Kissinger himself.

Principalmente, e este é um juízo pessoal, não é perdoável o que fez ou deixou que fosse feito com Timor. Não é perdoável o que resulta já em finais de 1975 da transcrição da reunião que, mesmo antes da invasão, aconteceu em Jacarta entre Sukarno, de um lado, e Gerald Ford e Kissinger, do outro. Não se pode apagar o que ali foi dito, legitimando aquele que viria a ser o sofrimento imenso dos timorenses durante quase um quarto de século. Não se consegue desvalorizar que Kissinger tivesse pedido que a Indonésia esperasse até ele e Ford saírem dali para fora, que era importante que a Indonésia (aquela Indonésia) fizesse depressa o que tinha a fazer; que, durante a invasão, evitasse usar armamento americano; ou que preparasse a justificação aceitável, que até podia ser invocar legítima defesa.

Kissinger, de facto, namorou com o Diabo, o mesmo Diabo que agora, de forma chique e com um piquinho snobe, vem sendo descrito como realpolitik. Por isso talvez, mesmo já passados os seus noventa, houvesse ainda quem não desistisse de o acusar como criminoso de guerra.

Mas, convenhamos, era um cérebro superior, talvez tenha sido um génio, e foi o maior Secretário de Estado da história dos Estados Unidos. A sua realpolitik, que teve sobejos momentos odiosos, foi também capaz de promover a normalização das relações com a China comunista, selada em 1972 com a visita histórica a Pequim de Richard Nixon. Sim, esse, que depois tombaria com estrondo com Watergate. Kissinger, imperturbável, continuou a servir aquele que lhe sucedeu, Gerald Ford (bem, talvez servir seja palavra que nunca se tenha podido aplicar a Kissinger). E só Jimmy Carter achou que já chegava.

Lembram-se do sketch em que Ricardo Araújo Pereira conta que a sua vida dava um filme indiano? Bem, a vida de Kissinger dava um filme americano. Nasceu na Alemanha, numa cidade ali logo acima e à esquerda de Nuremberga. E, sendo judeu, a primeira ironia da sorte é que nasceu no mesmo ano em que, na mesma Baviera, Hitler tentou o putsch de Munique, e no mesmo ano em que, já preso, escreveu o primeiro volume do Mein Kampf. Kissinger, esta é a segunda ironia, vem ao mundo junto a Nuremberga, onde, depois da guerra, foram julgados e condenados alguns dos principais responsáveis do nazismo e do Holocausto judeu. Kissinger foi um homem do século XX, de alguma forma personificou os extremos desse tempo. Fugiu da Alemanha com quinze anos, um ano antes do eclodir da Segunda Guerra Mundial. Combateu, foi para Harvard onde se doutorou (aos 31 anos), foi conselheiro de segurança nacional (aos 46 anos) e Secretário de Estado dos Estados Unidos (aos 50). É caso para dizer: arre!

Talvez o Kissinger mais consensual seja o do intelecto, em que é impossível a ausência do toque de Deus. O homem do saber e cultura infindáveis, dos trabalhos monumentais, da liderança à China, sem esquecer aquela que talvez seja a sua obra-prima, Diplomacia. Foi conselheiro até ao fim, já centenário, de todos os grandes. E, quando decidiu morrer, ouviram-se palavras de pesar vindas de Putin e Xi Ji Ping, e palavras que, da forma também menos provável, talvez tenham sido sinceras.

O lado pior da realpolitik de Kissinger fez mal ao Mundo. O lado menos mau, esse, terá evitado alguns males ao Mundo. Por enquanto, dizer mais do que isto é fazer juízos a quente. Kissinger viveu um século, temos tempo para lavrar a sentença.

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