Elas estavam a fazer história na NASA. E os jornalistas só queriam saber se choravam ou se haveria romance no espaço

CNN , Catherine E. Shoichet
23 set 2023, 17:00
As candidatas a astronautas (da esquerda para a direita) Sally Ride, Judy Resnik, Anna Fisher, Kathy Sullivan e Rhea Seddon fazem uma pausa no treino, perto da Base Aérea de Homestead, na Florida, em 1978. NASA

Sally Ride era astrofísica, Judy Resnik era engenheira eletrotécnica, Kathy Sullivan geóloga e oceanógrafa, Shannon Lucid bioquímica e Anna Fisher e Rhea Seddon médicas. As seis, que ficaram conhecidas como 'The Six', foram as primeiras astronautas norte-americanas

Enquanto Sally Ride se preparava para fazer história como a primeira mulher americana no espaço, deveria ter sido um momento de celebração da ciência.

Mas, em vez disso, um jornalista colocou uma questão que deixou Ride e os seus colegas de equipa estupefactos.

"Durante os exercícios de treino, como membro deste grupo, quando surgia um problema - quando ocorria uma falha engraçada ou algo do género, como é que reagias?", perguntou. "Como encaravas isso enquanto ser humano? Choravas? O que é que fazias?"

Ride respondeu diplomaticamente, observando que nunca tinham feito essa pergunta a um dos seus colegas de tripulação masculinos.

A troca de palavras, ocorrida numa conferência de imprensa, a poucas semanas do lançamento do vaivém espacial Challenger da NASA, em 1983, é uma das muitas cenas fascinantes e embaraçosas reveladas e detalhadas pela autora Loren Grush no seu novo livro, "The Six: The Untold Stories of America's First Women Astronauts".

Grush referiu que, tal como muitos americanos, cresceu a ouvir o nome de Ride e o seu feito histórico. Mas a jornalista começou a interrogar-se sobre as outras mulheres que se formaram ao lado de Ride na primeira classe de astronautas mistas da NASA. Essas mulheres - todas elas formidáveis e bem-sucedidas - também competiram por uma oportunidade de participar no mesmo voo histórico.

No livro de Grush, publicado na semana passada, a escolha de Ride para a viagem histórica tornou-se o ponto de partida para uma história ainda mais profunda sobre as primeiras mulheres astronautas da agência espacial norte-americana, incluindo o que aconteceu durante os seus primeiros voos, as pressões que enfrentaram no trabalho e a enxurrada de perguntas sexistas que tiveram de enfrentar ao longo do caminho.

"Estou a tentar contar a história delas de uma forma que deveria ter sido contada na altura", disse Grush, jornalista que faz a cobertura de notícias espaciais para a Bloomberg.

Falou recentemente com a CNN sobre o livro e a razão pela qual as histórias que explora continuam a ressoar décadas depois.

O relatório contundente que apontou a falta de diversidade na NASA

No início dos anos 70, um relatório contundente - citado no livro de Grush - denunciava a falta de diversidade nos quadros da NASA.

"Foram enviadas três fêmeas para o espaço pela NASA", indicava o relatório. "Arabella e Anita - ambas aranhas. E a sra. Baker - uma macaca."

Uma coautora desse relatório, Ruth Bates Harris, foi demitida da agência por ser considerada uma "força disruptiva", escreve Grush, embora tenha sido readmitida mais tarde, após repercussões políticas. Foi preciso cerca de uma década para que uma lista mais extensa de nomes - todos humanos – aumentasse o número de mulheres enviadas para o espaço pela NASA, graças a um enorme esforço de recrutamento.

"Tivemos o movimento pelos direitos civis. Tivemos o movimento feminista. Era algo que a NASA já não podia ignorar", disse Grush.

Mais de 1.500 mulheres candidataram-se a astronautas entre 1976 e 1977, escreve Grush.

Por fim, esse grupo foi reduzido a seis (“The Six”).

"The Six: The Untold Story of America's First Women Astronauts", de Loren Grush, foi lançado a 12 de setembro. Cortesia Simon & Schuster

As “The Six” tinham mais em comum do que apenas o género

As "The Six" passaram a fazer parte do Grupo 8 de Astronautas da NASA, uma seleção de 35 candidatos para iniciarem a formação no Centro Espacial Johnson, em Houston, em 1978. E as mulheres não foram as únicas a fazer história. O grupo de astronautas em formação foi também o primeiro da NASA a incluir pessoas de cor - três afro-americanos e um americano de ascendência asiática.

Ride era astrofísica. As outras mulheres da classe eram a engenheira eletrotécnica Judy Resnik, a geóloga e oceanógrafa Kathy Sullivan, a bioquímica Shannon Lucid e as médicas Anna Fisher e Rhea Seddon.

Elas tinham algo notável em comum: nenhuma tinha sido treinada para pilotar jatos, embora Resnik, Lucid e Seddon tivessem alguma experiência de pilotagem. O programa do vaivém espacial tinha introduzido o novo cargo de "especialista de missão", que não exigia experiência de voo. "A NASA conseguiu alargar os critérios a cientistas e médicos. (...) Isso permitiu que, não apenas mulheres e pessoas de cor, mas mais pessoas com diferentes formações pudessem participar do programa", explicou Grush.

Seddon, Fisher, Resnik, Shannon Lucid (quarta a contar da esquerda), Ride e Sullivan lado a lado no Centro Espacial Johnson da NASA, em Houston, a 31 de janeiro de 1978. NASA

Décadas mais tarde, algumas das questões levantadas por jornalistas são chocantes de ler

A pergunta que, em 1983, um repórter fez a Ride, sobre se chorava durante o treino, ia ao encontro dos comentários de muitos jornalistas da época, e essa perspetiva também ecoava quando as “The Six” eram descritas em reportagens impressas e televisivas.

"Quando apresentavam as mulheres na televisão, o apresentador lia os seus nomes um a um, seguindo-se o estado civil de cada uma e dando ênfase às que eram solteiras", escreve Grush. "Vários artigos referiam-se a elas como 'raparigas' ou 'senhoras do espaço', e escritores diligentes faziam questão de incluir idades, alturas e pesos nas suas descrições."

Numa entrevista televisiva, referida no livro, Tom Brokaw, da NBC, perguntou a Resnik: "Acha que chegará o momento em que haverá romance no espaço?"

Como parte da sua pesquisa, Grush disse que não leu apenas as transcrições das conferências de imprensa, mas também obteve imagens.

"Assistir ao vídeo é ainda pior do que ouvir ou ler as transcrições, porque se pode ver o rosto de Sally enquanto responde a essas perguntas idiotas sobre chorar no simulador ou se ela queria ser a primeira mãe no espaço", descreveu Grush. "Os meios de comunicação social encapsularam os sentimentos da época e as pressões a que as 'The Six' estavam sujeitas."

As astronautas Ride e Fisher participam num teste de sequência de missão no Centro Espacial Kennedy da NASA, na Florida, em Maio de 1983. NASA

Um “detalhe surpreendentemente apelativo” sobre Sally Ride chamou a atenção

Embora a classe de astronautas tenha sido escolhida por um comité, as suas missões nos vaivéns espaciais dependiam, em grande parte, de um homem: George Abbey, o diretor de operações de voo da NASA, à época.

Abbey estava convencido de que Ride era a pessoa certa para a missão que enviaria a primeira mulher americana ao espaço. No entanto, o diretor do centro espacial, que, em última análise, tinha de dar luz verde à escolha, não concordou.

Por isso, para debater o seu argumento, escreve Grush, Abbey reuniu-se com os principais intervenientes, incluindo Bob Crippen, que tinha escolhido para ser o comandante do histórico sétimo voo do vaivém espacial.

Segundo Grush, Crippen e Abbey sentiram que, para além das muitas competências de Ride, como a capacidade de trabalhar sob pressão e de se dar bem com os outros membros da tripulação, a astrofísica possuía uma característica que era "surpreendentemente apelativa".

"Como era introvertida, Sally não era exatamente uma pessoa que procurasse as luzes da ribalta ou a fama. E ambos concordaram que uma personalidade assim se enquadrava melhor para ser 'A Tal'", escreve Grush. "Eles não queriam escolher alguém que desejasse demasiada atenção."

No final, Abbey fez uma folha de cálculo comparando as mulheres, com um X a assinalar cada uma das suas competências. Ride superou a concorrência com mais um X na grelha, "o que indicava que ela tinha uma melhor compreensão de mais sistemas do que as outras classificadas", contou Grush. Além disso, a sua habilidade com o braço robótico, algo que seria essencial para a missão, "selou o acordo", escreve Grush.

Sullivan e Ride foram juntas para o espaço a bordo do vaivém espacial Challenger em outubro de 1984. A viagem foi a segunda de Ride ao espaço. Sullivan fez história, tornando-se a primeira mulher americana a caminhar no espaço. NASA

Por que razão as experiências destas astronautas ainda ressoam hoje?

Embora Ride tenha sido a primeira, todos os membros das “The Six” acabaram por voar num vaivém espacial. No seu livro, Grush relata as suas viagens, incluindo o desastre do Challenger, em 1986, que matou Resnik no seu segundo voo.

As histórias das “The Six” são significativas em qualquer época, mas Grush afirma que há lições particularmente importantes a serem aprendidas ainda hoje com o que Ride e as suas colegas vivenciaram.

"A NASA está atualmente a planear voltar à lua com o seu programa Artemis. E um dos objetivos desse programa é enviar a primeira mulher à superfície lunar. Por isso, penso que é uma lembrança oportuna sobre aquilo com que as mulheres tiveram de lidar no passado, e também de como foram tragicamente excluídas do programa durante muitos anos", considerou Grush. "Espero que, quando voltarmos à lua com mulheres, elas tenham uma experiência muito mais fácil do que tiveram as primeiras mulheres nos anos 70 e 80."

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