Poderemos estar perante o nascimento do movimento #MeToo no futebol português?

9 out 2022, 15:00

Especialista diz que queixas contra o ex-treinador do Rio Ave, Miguel Afonso, vão "certamente abrir as portas para que outros casos sejam denunciados"

As denúncias de várias jogadoras do Rio Ave contra o ex-treinador do clube, Miguel Afonso constituíram uma ocorrência sem precedentes no futebol português: pela primeira vez, no contexto do desporto, um grupo de atletas acusou um técnico de assédio sexual.

O caso está a ser investigado pela Federação Portuguesa de Futebol e as jogadoras já formalizaram a queixa junto da Polícia Judiciária. Entretanto, o Famalicão, clube cujo presidente sabia das denúncias de assédio sexual, suspendeu Miguel Afonso das funções de treinador principal da equipa feminina, bem como o diretor desportivo, Samuel Costa, pelo mesmo motivo.

As reações ao caso sucederam-se. A ex-internacional portuguesa Tita, afirmou nas redes sociais que também ela fora vítima de assédio e que iria denunciar o treinador que praticou o crime.

“Com esta publicação hoje assumo publicamente que também já fui vítima de assédio sexual enquanto jogava futebol (não pelo Miguel, há outros…) e que até hoje não tomei as medidas necessárias por falta de provas, sob pena de ser julgada por difamação, mas ainda assim, agora mesmo farei uma denúncia”, escreveu a ex-capitã do Benfica no Instagram.

À CNN Portugal, Mariana Vaz Pinto, antiga team manager da Belenenses SAD, que divulgou algumas das mensagens entre Miguel Afonso e as jogadoras, referiu que acredita haver muitos outros casos que não são conhecidos, apelando para que sejam denunciados.

“Ainda hoje recebi mensagens do diretor para as jogadoras, portanto, não é só o treinador que está envolvido. Nas mensagens que vi do treinador para as jogadoras, elas estão completamente intimidadas e não sabem o que dizer a uma pessoa que é superior a elas”, afirmou.

Caso no Rio Ave “vai abrir a porta a outras denúncias”

Em entrevista à CNN Portugal, Teresa Figueiras, especialista em psicologia do desporto do Observatório Nacional de Violência contra Atletas, afirma que este caso “vai abrir portas” para que outras ocorrências “sejam denunciadas”.

“As atletas estão a ser extraordinariamente corajosas. O facto de estas atletas, e repare na idade delas, conseguirem denunciar, vai certamente abrir as portas para que outros casos sejam denunciados”. A especialista frisa, no entanto, que isto “não significa que os casos estejam a aumentar, mas sim que este fenómeno tem sido muito ocultado”.

“O facto de aparecer alguém com coragem para denunciar é muito importante para que se possa dar visibilidade ao fenómeno e tratá-lo sem andar a “caçar” ninguém. Ninguém está à procura disso”, sublinha a mesma especialista.

Teresa Figueiras traçou o perfil dos envolvidos nas denúncias feitas ao Observatório, sublinhando que a maioria dos agressores são treinadores. “Quem denuncia casos ao Observatório são testemunhas ou ex-atletas. São pessoas mais velhas, que fazem uma análise daquilo que foi a experiência de vida. Os nossos relatos indicam [que as vítimas têm] uma média de idades de 17 anos e são, na sua maioria, mulheres”, garante.

A especialista justifica o baixo número de denúncias durante a carreira desportiva com o facto de “muitos dos comportamentos” serem validados no contexto desportivo.

“Acontece frequentemente que, só após deixarem a prática desportiva, é que os próprios atletas reconhecem que, durante o processo, alguns comportamentos não foram adequados”, explica.

“O próprio atleta acaba por se conformar com aquela situação. Temos vindo a perceber que essa soma de comportamentos e atitudes que tornam o atleta uma vítima acaba por se refletir na sua performance, mas estão habituados a não assumir tais comportamentos como inadequados”.

Outra variável que contribui para a não denúncia dos casos é a influência sobre o futuro do atleta. No caso do treinador do Rio Ave, uma das denunciantes, de apenas 19 anos de idade contou aos progenitores a situação das trocas de mensagens e colocou Miguel Afonso a par disso. Em resposta, este começou a afastá-la dos jogos e da equipa.

Referindo que, no caso específico do treinador do Rio Ave, as denúncias, a serem verdadeiras, o que está em causa é um crime, o que “já ultrapassa as questões desportivas”, Teresa Figueiras nota que os abusos começam, muitas vezes, “pelo tipo de linguagem que se utiliza”, evoluindo depois para outros comportamentos “como a violência sexual e o assédio”.

“Temos de aceitar que estamos a fazer as coisas menos bem para poder fazer melhor e melhorar o desporto. Estas denúncias, a que se seguirão outras, são parte de um caminho que temos de fazer. Só temos de estar, de alguma forma, agradecidos à coragem destas mulheres”, diz a psicóloga.

FPF tem canal para denúncia de casos de assédio

Logo após a notícia do jornal Público, o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) suspendeu o treinador, e anunciou a criação de uma equipa especial para se dedicar, com urgência, à investigação dos processos instaurados na sequência das denúncias de assédio sexual.

A Federação informou que a equipa será constituída por membros do próprio Conselho de Disciplina e da Comissão de Instrução Disciplinar da Federação.

Contactada pela CNN Portugal, fonte da FPF refere que a instituição tem uma plataforma para denúncias de casos de assédio e outras práticas ilegais, disponível neste link, que salvaguarda o anonimato do queixoso.

A mesma fonte explicou também que, após feita a denúncia, a mesma segue para o Conselho de Disciplina para avaliação, sendo depois reencaminhada para a Polícia Judiciária e para o Ministério Público caso exista algum indício de práticas criminais.

A APAV, por seu lado, revelou à Lusa que acompanha várias vítimas de violência em contexto desportivo, tanto homens como mulheres, atletas amadores e profissionais.  

"Estamos a falar de um número com alguma relevância”, adiantou, sem quantificar, Carla Ferreira, a assessora técnica da direção da APAV e gestora da rede especializada que trabalha com crianças e jovens vítimas de violência sexual.

O futsal, a ginástica ou o futebol são modalidades praticadas por algumas das vítimas a quem a APAV presta apoio, “mas estamos a falar de um fenómeno que é transversal”, vincou Carla Ferreira, sublinhando que serem conhecidos, ou se falar em mais situações de alguns desportos, não significa que não aconteça nos outros.

Para a técnica da APAV, adiantar qualquer número “será sempre redutor, porque nenhum número vai ser representativo da realidade, por não se poder achar que os casos reportados são os crimes que acontecem”.

Segundo Carla Ferreira, se no caso dos menores a queixa tem de ser formalizada, embora se procure que esse seja um passo articulado com a família e feita pela própria, quando se trata de vítimas em contexto desportivo adultas, “a maior parte não denuncia”.

Presidente do COP diz que “não é a primeira vez” que ocorre assédio no desporto

O presidente do Comité Olímpico de Portugal (COP), José Manuel Constantino, afirmou esta sexta-feira que o assédio sexual no desporto português, “uma chaga” na sociedade, não é um fenómeno novo, faltando “articulação de estratégias de combate”.

“Não creio que as evidências que tenham ocorrido no desporto sejam de natureza distinta das que ocorrem noutros contextos sociais. Não há dados estatísticos que nos permitam ter uma evidência de que no mundo do desporto estes casos ocorrem em maior número do que em outras dimensões sociais”, explicou o dirigente, em entrevista à Lusa.

Como “não é a primeira vez” que o assunto surge, diz Constantino, o desporto não é “um mundo à parte das restantes práticas sociais”, pelo que o assédio sexual, e o abuso, “é também uma chaga” neste setor, “que precisa de ser denunciada e combatida”.

“Que todos os casos conhecidos possam ser objeto de denúncia, para serem avaliados e eventualmente sancionados. Simultaneamente, trabalhar no sentido da educação e formação cívica, de modo a que estas práticas não possam ocorrer no mundo do desporto. É absolutamente indispensável, sobretudo para as famílias, dar sólidas garantias que o mundo do desporto combate estas práticas e faz tudo ao seu alcance para evitar ocorrências”, declarou.

Entre vários alertas, José Manuel Constantino destaca este como um problema seja entre homens e mulheres, mas também entre homens e também entre mulheres, neste caso algo “que também existe no desporto, mas está completamente camuflado e tem alguma incidência”.

Uma preocupação do presidente do COP é que Portugal possa acompanhar uma “tendência que se verifica em alguns contextos internacionais”, a do abandono de crianças e jovens do desporto, seja por vontade própria ou por decisão dos pais, após o surgimento destes casos.

O organismo que lidera emitiu, em abril de 2020, um comunicado que alertava para a prevalência destes fenómenos no universo desportivo, que persistiam “na opacidade”, louvando as denúncias feitas por figuras importantes de vários setores, de campeãs olímpicas a atrizes e outras figuras das artes.

Analisando o tipo de violência sexual incidente no contexto desportivo e lamentando a falta de “indicadores seguros quanto aos números”, antes uma “perceção de que a problemática não é residual”, o COP pedia “a criação de um conjunto de estratégias” para o combater.

“Acho que pregámos no deserto. Quando chamámos à atenção para a necessidade de se articularem estratégias de combate quer ao assédio quer ao abuso, como outro tipo de problemas que ocorriam no seio dos sistemas desportivos, não tivemos grande eco nem retorno do ponto de vista das organizações quer com responsabilidades políticas, quer responsabilidades desportivas”, lamentou.

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