Invasão da Arménia por parte do Azerbaijão “não pode ser excluída”. Mas primeiro Baku "vai aproveitar a fuga em massa dos arménios para ‘azerbaijanizar’ o Nagorno-Karabakh"

Pedro Falardo , Artigo atualizado às 10:14
28 set 2023, 07:00
Soldados do Azerbaijão após a vitória na Segunda Guerra do Nagorno-Karabakh (AP)

A ambição azeri de estabelecer um corredor para ligar os seus dois territórios é pública e declarada - e tudo depende das intenções de Turquia, Irão e Rússia. E a União Europeia dificilmente será um obstáculo

“O Naquichevão é a terra ancestral do Azerbaijão. Lamentavelmente, em 1920, o Zangezur Ocidental foi retirado ao Azerbaijão pelas autoridades soviéticas, pelo que a ligação geográfica entre o resto do Azerbaijão e o Naquichevão foi cortada.”

A declaração é de Ilham Aliyev, presidente do Azerbaijão, durante uma conferência de imprensa conjunta com o homólogo turco, que se deslocou ao exclave azeri do Naquichevão na segunda-feira para mostrar apoio ao aliado regional e incrementar as relações entre os dois países.

O timing da visita de Recep Tayyip Erdogan não é inocente: há cerca de uma semana, a 19 de setembro, o Azerbaijão lançou uma ofensiva sobre o território do Nagorno-Karabakh e está a conseguir expulsar todos os 120 mil arménios da região.

Menos inocentes ainda são as declarações de Aliyev transcritas no primeiro parágrafo. Desde a independência do Azerbaijão que o regime de Baku sonha em ligar o exclave de Naquichevão com o restante território do país. Pelo caminho está a região do Zangezur Ocidental – para os arménios, Syunik -, reconhecida internacionalmente como território da Arménia.

A ambição azeri de estabelecer um corredor para ligar os dois territórios é pública e declarada, mas as palavras de Aliyev abrem a porta a algo mais. À CNN Portugal, o especialista em Relações Internacionais Tiago André Lopes explica que, sob determinadas condições, uma invasão da Arménia por parte do Azerbaijão é uma hipótese “que não pode ser excluída”.

“Se o Azerbaijão sentir que o Irão e a Turquia estão dispostos a apoiar financeira e militarmente uma incursão militar na região, e ao mesmo tempo sentir que a Rússia não vai interferir de forma alguma, eu não excluiria essa opção”, diz o professor universitário.

Esse cenário não vai acontecer “de momento”, antecipa Tiago André Lopes, uma vez que o Azerbaijão está a procurar consolidar a sua posição no Nagorno-Karabakh.

“O que vai acontecer, e isso é bastante claro, é que o Azerbaijão vai aproveitar a fuga em massa dos arménios para ‘azerbaijanizar’ a região”, aponta o docente. “Se os Estados Unidos, a França e a Rússia quisessem levar isto para o processo negocial do Grupo de Minsk da OSCE [Organização de Segurança e Cooperação na Europa], um dos pontos que tinha sido acordado entre as duas partes era a organização de um referendo [para decidir que país os habitantes de região querem integrar]. Interessa ter na região uma maioria de população azeri caso venha a haver, putativamente e no futuro, um referendo.”

Uma eventual invasão também serviria para manter o atual regime no poder após a saída de Ilham Aliyev, projeta o especialista.

“A sucessão a Aliyev não é uma coisa clara, nós não sabemos quem é que vai para o lugar dele. À partida será a sua esposa, que até já é vice-presidente, mas isto não é claro. Se a sucessão estiver em causa e o regime se sentir ameaçado, uma campanha militar pode justificar a sua sobrevivência.”

Porque é que a União Europeia quase não reagiu à ofensiva azeri?

Para Tiago André Lopes, a resposta é simples: o conflito no Nagorno-Karabakh é um “não assunto” para a Europa.

“Não é vinculativo, não é relevante, não é prioritário, é um problema que a Europa assume desta forma. Não é por acaso que na última resolução votada na ONU em relação ao Nagorno-Karabakh, em 2008, houve 146 países que ou não votaram ou estiveram ausentes da votação. Dos Estados europeus e da União Europeia, quase ninguém votou [apenas Geórgia, Sérvia, Ucrânia e Moldova, a favor, e França, contra, se manifestaram]. Isso demonstra o desinteresse.”

Mesmo a reação francesa, país que conta com uma grande comunidade arménia de cerca de 750 mil pessoas e detém a copresidência do Grupo de Minsk, ficou aquém do esperado na opinião do docente.

“Do lado francês, Emmanuel Macron fez uma condenação, mas foi uma coisa muito fluída. Obviamente que se põe do lado da Arménia, até porque o parlamento francês reconhece o Genocídio Arménio e tem um braço de ferro com a Turquia por causa disso, mas não há mais que isso, houve uma condenação política e ficou por aí. É peculiar”, considera o académico.

A fraca reação pode ser explicada com facto de a União Europeia ser o destino de mais de metade das exportações do Azerbaijão. Só a Itália absorveu, no ano passado, 47% das exportações azeris, seguida de países como a Grécia, a República Checa, a Croácia, Espanha e Portugal - apenas estes seis países importaram mais de 60% dos bens azeris vendidos ao exterior.

Ursula von der Leyen e Ilham Aliyev na assinatura do acordo para aumento das importações de gás azeri por parte da União Europeia, Baku, 18 de julho de 2022 (Getty Images)

Com o corte no consumo do gás russo após a invasão da Ucrânia, a União Europeia está numa posição frágil.

“É uma questão a acompanhar nos próximos tempos. Vamos voltar a comprar energia à Rússia, sim ou não?  Se a resposta for não, então o corredor que existe é Azerbaijão. A alternativa africana, sendo politicamente interessante, não é viável nesta fase. A Europa precisa de energia, o inverno está a chegar e, uma vez mais, o trabalho de casa não foi feito”, afirma Tiago André Lopes.

“A Europa tem aqui duas escolhas: ou volta a comprar discretamente à Rússia, reativando os Nord Stream, ou então compra energia aos azeris. Se compra energia ao Azerbaijão, não o pode hostilizar diplomaticamente. Daí esta condenação mais discreta.”

Caso o Azerbaijão decida invadir a Arménia, adotará a União Europeia a mesma posição que teve com a Rússia? Tiago André Lopes duvida.

“É provável que decretasse algumas sanções políticas, mas tudo de baixo nível. Nesta fase, seria apenas para marcar a sua condenação, iria muito provavelmente, por via da França, pedir o regresso à mesa negocial. Mais do que isso, não acredito. Não haveria uma resposta nem coordenada, nem musculada, como houve no caso da Rússia quando invadiu a Ucrânia”, antevê o especialista.

O professor da Universidade Portucalense afirma que a União Europeia “não costuma reagir” quando estão em causa “violações dos direitos humanos” e que se “escuda” muito “nas questões jurídicas”.

“Se a Europa de facto estivesse preocupada com o assunto, já poderia ter oferecido à Arménia ajuda para a integração da população. A Arménia vai receber, num curto espaço de tempo potencialmente 120 mil pessoas. Para um Estado pequeno como a Arménia, isto vai ter um impacto orçamental enorme. Poderia ter feito como fez com os refugiados ucranianos e criar sistemas de ajuda, neste caso, para ajudar o governo arménio a incorporar estas pessoas. Mas não o fez e, obviamente, desculpa-se no facto de que a Arménia ainda não pediu ajuda.”

E a Rússia?

A ausência de ajuda de Moscovo, tradicional aliado da Arménia, prende-se com o deteriorar das relações entre os dois países desde que Nikol Pashinyan assumiu o cargo de primeiro-ministro da Arménia em 2018, justifica Tiago André Lopes.

“Nos últimos três ou quatro anos, [Pashinyan] deteriorou as relações com a Rússia. Os arménios sentem que esta foi uma aposta falhada. Pashinyan confiou que, caso acontecesse uma coisa como esta que aconteceu, o Ocidente, a União Europeia e os Estados Unidos iriam proteger a Arménia. Mas aconteceu o mesmo que à Geórgia. Há uma resposta diplomática vaga, mas não há uma ajuda efetiva.”

Para além desta situação, há também o interesse da Rússia em ter o Azerbaijão “na sua alçada”, afirma.

“Do ponto de vista diplomático e estratégico, a Turquia e o Azerbaijão interessam muito mais à Rússia do que a Arménia, que não tem nem recursos, nem capacidade tecnológica, nem capacidade militar para oferecer. O Azerbaijão tem recursos, dinheiro, e tem fornecido à Rússia até componentes para a produção de armamento na guerra, de forma indireta”, sublinha.

Para o especialista, só há uma dimensão em que a Rússia está a perder, a ecuménica.

“Para a Rússia, que assume uma missão de proteger o espaço da cristandade ortodoxa, a proteção da Arménia sempre fez sentido. Não é tanto ajudar os arménios, é ajudar os irmãos cristãos ortodoxos. Nesse ponto, há de facto uma fragilização da Igreja Ortodoxa Russa. Mas é a única dimensão”, explica.

A resposta russa fica ainda aquém do esperado como membro da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (CSTO, na sigla em inglês), aliança militar que a Rússia formou com a Arménia e outros quatro ex-Estados soviéticos após a dissolução da URSS.

Segundo o governo arménio, já entraram no país vindos do Nagorno-Karabakh cerca de metade dos 120 mil que residiam no território.

A deslocação forçada começou no domingo, cinco dias depois de o Azerbaijão ter lançado uma ofensiva sobre Nagorno-Karabakh, que matou mais de 200 arménios e feriu, pelo menos, outros 400, de acordo com os últimos dados disponibilizados pela provedoria dos direitos humanos de Artsakh, entidade política que administrava o território.

O Ministério da Defesa do Azerbaijão exigiu a “total e incondicional” retirada das tropas arménias da região, reconhecida internacionalmente como território azeri, a qual considera ser a “única forma de garantir a paz e a estabilidade na região”.

Esta operação foi desencadeada após seis azeris – quatro polícias e dois civis – terem sido mortos com a explosão de minas numa zona da região controlada por Baku.

Os arménios começaram a habitar o Nagorno-Karabakh desde, pelo menos, o século II a.C.. A saída destas 120 mil pessoas termina, assim, com milhares de anos de ocupação do território por parte deste povo.

Relacionados

Ásia

Mais Ásia

Patrocinados