Folhetim de voto: Ventura, o valentão do regime e a carpideira do sistema

8 fev 2022, 06:59
Debate eleitoral entre António Costa e André Ventura

O PS dá sinais contraditórios sobre o seu absolutismo maioritário, mas continua a usar a tensão com o Chega como statement político. O Chega ajuda, assumindo o seu racismo, enquanto Ventura oscila entre os dois papéis que mais gosta de desempenhar: valentão e carpideira. A análise e opinião de Filipe Santos Costa sobre o que estes e os outros protagonistas retiraram dos resultados das eleições

PS. Enquanto António Costa arruma as peças do futuro governo, o PS deu dois sinais relevantes sobre o que aí vem. Segundo o Expresso, vai deixar cair da proposta de Orçamento o englobamento no IRS das mais-valias mobiliárias, medida tomada por pressão da antiga geringonça. Se assim for, Costa falha a sua primeira promessa eleitoral - apresentar o mesmo OE que foi chumbado em outubro. Ainda nem tinha passado uma semana sobre a conquista da maioria absoluta, e já havia promessas a cair… porque o PS ficou com mãos livres. Do lado socialista, ninguém se deu ao trabalho de desmentir a notícia, justificada por razões técnicas. Costa até pode ter inventado a “vaca voadora” que foi a geringonça, mas está por demonstrar que possa criar o bacalhau com asas que seria uma “maioria absoluta dialogante”. 

Em contraponto com a primeira notícia relativa ao OE, o PS pode dar um sinal precioso se aceitar o regresso dos debates quinzenais. Consta que se prepara para o fazer. Simbolicamente, será importante. Não garante nada - basta lembrar que foi no tempo da maioria absoluta de Sócrates que os debates quinzenais nasceram - mas mostrará uma saudável disponibilidade de princípio para o escrutínio parlamentar. 

 

Não passará. Se há promessa que Costa parece empenhado em cumprir é a de que, consigo, o Chega “não passará”. O voto contra Diogo Pacheco do Amorim para vice-presidente da AR parece estar escrito nas estrelas (Ana Catarina Mendes já pré-anunciou essa certeza - “Não é exigível a um democrata que possa votar em alguém que está contra a democracia”). Mas Costa vai mais longe: soube-se ontem que o primeiro-ministro começará amanhã um conjunto de audições com partidos políticos e organizações da sociedade civil, “no âmbito da preparação do próximo ciclo político”. E que o Chega não entra nessa agenda. Foi quanto baste para Ventura voltar a fazer de Calimero, um dos seus dois papéis preferidos (voltarei ao assunto). Parafraseando Pacheco Pereira no último Princípio da Incerteza, “o Chega deve ter todos os direitos que o facto de ter deputados eleitos na Assembleia lhe permite” - mas isso não lhe dá direitos que não existem. Por exemplo, o direito a chá e simpatia da parte de quem não o queira ouvir a não ser quando a isso seja obrigado. Suponho que Costa continuará a convidar Ventura para ir a São Bento sempre que tenha de o fazer protocolarmente, tal como aconteceu na legislatura que agora acaba. Continuará a responder às perguntas que o Chega lhe coloque nos debates parlamentares, como fez até agora. Tal como debateu com Ventura e com todos os representantes de todos os partidos ao longo da campanha eleitoral, sem discriminar nenhum (houve quem faltasse a debates, não Costa). Neste caso, não estando em causa audições impostas legal ou protocolarmente, mas uma iniciativa do futuro primeiro-ministro no sentido de ouvir quem muito bem entende, estranho seria se António Costa convidasse alguém que manifestamente não quer ouvir.

Já aqui o escrevi, antes e depois das eleições: politicamente convém ao PS esta tensão permanente com o Chega. Deu frutos nas legislativas. Pode ser um jogo perigoso, com consequências não intencionadas? Pode. Mas é um jogo que veio para ficar.  

 

Um racista assume-se. Não convidando André Ventura para ir a São Bento na semana que vem, António Costa perderá a oportunidade de esclarecer as teorias racistas do Chega. É de racismo puro e duro que falamos quando alguém afirma que os portugueses têm uma cor: “A nossa cor de origem é a cor branca, todos nós sabemos” e “a nossa raça é a raça caucasiana“, disse na Rádio Observador Diogo Pacheco do Amorim, o homem que o Chega quer elevar a vice-presidente da Assembleia da República. Por muito que depois se embrulhe em adversativas e juras de respeito pelos “outros”, dizer que “a nossa cor de origem é a cor branca” e que “a nossa raça é a raça caucasiana” significa fazer, de todos os que não cumpram esse requisito, portugueses de segunda. Racismo é isto.

Foi clarificadora a declaração de Pacheco do Amorim, como o foi a defesa que André Ventura fez do seu deputado. Na CNN Portugal, Ventura não se demarcou das afirmações racistas de Pacheco do Amorim, antes as subscreveu. Vale a pena ver a entrevista, conduzida pela Judite de Sousa, e apreciar a forma como Ventura meteu os pés pelas mãos, ora invocando uma discussão “científica” que desconhece, ora lançando palavreado como “matriz civilizacional com índole e com pendência racial”. O que fica, no fim do dia, é ouvir a Ventura a mesma declaração racista que havia sido proferida por Pacheco do Amorim: “A nossa raça é caucasiana, creio que é indubitável. (...) dizer o contrário é absurdo”. É bom quando os racistas se assumem, porque clarifica o debate. Mesmo que se parecem envergonhados daquilo que são (“Nunca o Diogo Pacheco do Amorim teve qualquer manifestação de racismo”, jurou Ventura).

 

Vitimização. Perde-se, portanto, uma fascinante conversa entre Costa e Ventura no gabinete do primeiro-ministro sobre o que é e o que não é racismo, quem é e quem não é da “nossa raça”, quem encaixa ou não na nossa “matriz civilizacional com índole e com pendência racial”. Uma pena. Tanto que António Costa - e logo ele! - poderia aprender sobre “cor de origem”, brancos, caucasianos e portugueses, essa raça.

Sem surpresa, a exclusão de Ventura desta ronda de contactos do primeiro-ministro deu-lhe mais uma razão para carpir as suas mágoas de pobre excluído do sistema. Eis “um tique já preocupante de António Costa no início da maioria absoluta”, denunciou o líder do Chega na CNN Portugal. Ventura tanto é o valentão que quer dar cabo do regime como é a carpideira a quem o sistema não dá de mão beijada tudo aquilo que Ventura acha que deve receber do sistema que quer destruir. É incoerente? É. Mas a coerência não é para aqui chamada. Só a gritaria e o queixume. Resultam sempre e nunca exigem grandes explicações. Se há coisa que Trump demonstrou é que a um populista ninguém exige coerência em troca de palco. Apenas decibéis. 

Já vimos o suficiente para ter uma certeza: o debate sobre a vitimização do Chega é o debate mais inútil da política portuguesa. No limite, o facto de o Parlamento não aprovar todas as propostas do Chega dará a Ventura razões para se vitimizar. Porque, de cada vez que as propostas do Chega são chumbadas, Ventura irá queixar-se de que o seu eleitorado “não foi ouvido”. A vitimização é uma parte essencial do seu jogo. Inibir os outros jogadores com base no argumento de que “isso vitimiza o Chega” seria entregar o jogo ao Chega. Que partido ganharia com isso? Pois. 

 

PSD. Sobre o PSD já escrevi longamente aqui e aqui. Evitarei maçar-vos com o assunto. Registo apenas que Rui Rio continua a acumular triunfos. Ontem, o seu secretário-geral e uma deputada do partido foram ilibados de uma suspeita de crime. 

 

Liberal. “Não é normal um partido com a história e a influência do PSD na política portuguesa não se definir como uma alternativa séria e clara ao PS”, disse João Cotrim Figueiredo, este fim de semana, em entrevista ao JN e à TSF. A preocupação da IL com o PSD é evidente. Apesar de ter muito a ganhar com a crise do maior partido à direita do PS, e apesar de acreditar que a IL continuará a crescer, como os partidos congéneres na Europa, Cotrim sabe que ainda é o PSD o partido em condições de ser o motor de um governo não socialista. Interessante, desse ponto de vista, a declaração de que preferia ter tido “menos deputados”, se com isso tivesse “evitado a maioria absoluta do PS”. É uma frase de efeito, que fica bem a quem a diz. Apenas contraria toda uma campanha em que Cotrim tentou (e com sucesso) desviar votos do PSD para a IL. 

 

Bloco. Catarina Martins disse este fim de semana as palavras que custam: admitiu uma “derrota pesada”, sem eufemismos nem paninhos quentes. A admissão da realidade é o primeiro passo para a compreender - veja-se a diferença semântica em relação ao PCP. A questão é o que explica essa “derrota pesada”. Em parte, o BE admite responsabilidades próprias na sua derrocada, quando assume que "não foi capaz de explicar as razões do chumbo do Orçamento do Estado". Também nisto, o BE mostra-se a anos-luz da atitude do PCP.

Admitir isto é admitir que o BE foi castigado por aquilo que fez - o chumbo do Orçamento -, e não por aquilo que o PS, o governo, Marcelo, ou o mundo em geral, lhe tenham feito. Mas o BE fica a meio desse caminho. A capacidade de autocrítica não vai tão longe. Admite que falhou na explicação do chumbo do OE, mas não na razão para chumbar o OE. Fica pela metade o reconhecimento de responsabilidades próprias do BE pelo seu descalabro eleitoral. Porque à pergunta sobre o que faria o BE de diferente, a resposta é: nada. “Se soubéssemos os resultados das eleições não teríamos alterado o voto”, como diz aqui o dirigente Jorge Costa. O cálculo do BE, que também o fez, foi, primeiro, demarcar-se quanto antes do PS em tempos de crise; depois, arriscar dar um passo atrás para conseguir dois passos à frente. Talvez não imaginasse que o passo de dia 30 fosse tão atrás, mas acredita que, como em 2015, poderá recuperar o terreno perdido. Em 2015, a austeridade da troika ajudou; agora, o BE aposta que os erros da maioria absoluta do PS ajudarão. Acreditar que Costa possa ser o Passos de 2026, e que a maioria absoluta possa ter um efeito comparável à troika talvez seja esticado. Mas é o que há. “A vida difícil começa agora, e o poder absoluto será um dos seus problemas. A maioria absoluta é um risco para o PS. Já lá esteve e não foi feliz”, escreveu Francisco Louçã no último Expresso. Pode ser que sim. Mas é uma fezada. Como estratégia política, pode ser curto.

 

PCP. Ao contrário do BE, o PCP não parece ter aprendido o que quer que seja com o resultado de dia 30. Apenas confirmou as suas suspeitas de que o PS é feio, mau e de direita, e que Marcelo Rebelo de Sousa anda mancumunado com os socialistas. O PS e Marcelo nunca os enganaram. Antes das eleições, quando os comunistas juravam que não havia qualquer hipótese do PS ter maioria absoluta, já tinham a certeza de que, em maioria relativa, o PS faria acordos com a direita. Curiosamente, agora que a maioria absoluta é um facto, Jerónimo de Sousa continua convencido de que o PS fará acordos com a direita. Há coisas que nunca mudam. Tal como a incapacidade do PCP pronunciar a palavra derrota. Oficialmente, teve uma “quebra eleitoral” - o que é um facto e, em simultâneo, o maior eufemismo político da temporada. 

O que concluirá o PCP deste resultado? Pelos vistos, muito pouco. “O acerto da nossa orientação política não é, nem pode ser, medido pelos resultados eleitorais, porque, naturalmente, os resultados eleitorais são influenciados por muitas outras coisas que não a orientação política do PCP. Claro que há um conjunto de fatores externos que não dependem de nós, nomeadamente o posicionamento de outros partidos, a forma como, do ponto de vista global e mediático, a posição de cada um é expressa” - as palavras são de João Oliveira, uma das vítimas da “quebra eleitoral”, que o deixou fora do Parlamento. A entrevista de João Oliveira ao DN, no fim de semana, é um raio X à forma de pensar do PCP. Derrotas no caminho? Guardo-as todas. “A nossa existência enquanto partido não está dependente de termos votos ou deixarmos de ter, ou de termos representantes ou não [no Parlamento]”, assegura o futuro ex-líder parlamentar comunista. Isto de ser um partido centenário que atravessou a ditadura e a clandestinidade faz a diferença - a ausência de votos não. “Mas um partido vive dos votos e dos eleitores…”, contrapôs o jornalista do DN. “Um partido como o nosso não. Se fosse assim, nem sequer existíamos, pois se durante 48 anos não pudemos participar em eleições, já viu se vivêssemos dos votos?” 

Deve ser um conforto do ponto de vista existencial. Mas é meio caminho andado para a completa irrelevância. 

 

PAN. Tirando o PCP (e, vá lá, o BE…), os partidos são todos bastante parecidos. São bichos que procuram poder e têm um apurado instinto de sobrevivência. É esse instinto que, por regra, os torna pouco tolerantes com quem falha. Podem os partidos ser mais ou menos tradicionais, mais ou menos jovens, a regra de afastar quem falha fala quase sempre mais alto. É o que se tem visto no PAN. Qualquer que seja o ponto de vista, Inês Sousa Real falhou. É verdade que só esteve 8 meses no cargo, mas foram 8 meses fortíssimos em desaires. Até pode ter “legitimidade” formal para se manter em funções, como reclama, mas os formalismos podem pouco quando chocam com a realidade. A realidade é um partido quase esvaziado, com uma única deputada eleita por uma unha negra, depois de ter conquistado quatro lugares no Parlamento há três anos. Podia dar-se o caso de Inês Sousa Real não ter quem lhe disputasse o lugar, mantendo-se por inércia. Nem isso. André Silva, primeiro líder do partido, está de volta, e o texto em que assumiu esse regresso foi uma pré-declaração de recandidatura ao lugar que já foi seu. Por muito que garanta que não quer voltar ao cargo que abandonou, por sua vontade, há pouco mais de um ano, não é isso que indicia o fogo cerrado que tem feito sobre a sua sucessora. Nove meses depois de ter renunciado aos cargos para que fora eleito, com a justificação de apanhar o “comboio da paternidade”, André Silva aproveita o apeadeiro das legislativas para voltar a tomar conta da locomotiva do PAN. 

A forma como Inês Sousa Real se tenta agarrar ao lugar começa a tornar-se constrangedora. Diz que não receia um congresso, mas opta por não o convocar. Diz que não teme uma disputa de liderança, mas inviabiliza-a. Cada um tem o Chicão que merece. Ontem, demitiram-se dez dirigentes do PAN, em protesto por não ter sido marcado um congresso extraordinário com disputa de liderança. É uma questão de tempo. Tic-tac, tic-tac. 

Será André Silva capaz de colar os cacos de um partido que já se estava a esboroar sob a sua liderança? Conseguirá relançar o PAN? Tempo não lhe falta. Terá quatro anos para o tentar. Com a desvantagem, desta vez, de já não ser novidade e não ter um lugar no Parlamento que lhe dê visibilidade. E o atual espetáculo dado pelo PAN pouco fará pela sua reabilitação. Há circunstâncias que, uma vez deitadas fora, são irrepetíveis. O PAN só se pode queixar de si próprio.

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