Inês Sousa Real: a história da líder do PAN, que está há meses debaixo de fogo (dos mirtilos ao desastre dos votos) e não se demite

7 fev 2022, 19:45
Inês de Sousa Real chega ao Centro Cultural de Belém, em Lisboa (José Sena Goulão/Lusa)

O que começou com uma acusação de prática de agricultura intensiva acabou por se transformar num rol de datas e informações contraditórias sobre as empresas de produção agrícola - e não só - a que Inês Sousa Real está ou esteve ligada. A par disso, o PAN vive o seu momento mais critico desde a fundação, em 2009, com a única deputada eleita nas últimas eleições debaixo de fogo

Os maus resultados nas eleições legislativas antecipadas fizeram tremer ainda mais a liderança de Inês Sousa Real, que para além de ser agora deputada única do partido, viu esta segunda-feira uma dezena de membros da Comissão Política Nacional do PAN pedirem a demissão, alegando “total asfixia democrática interna”.

Entre os demissionários está Nelson Silva, uma das vozes mais críticas dos resultados obtidos no último sufrágio, onde seguraram apenas um deputado, tendo perdido mais de 92 mil votos em relação às eleições de 2019, onde tinham obtido 174.511 votos. O ainda deputado já tinha pedido a realização de um congresso eletivo para “apurar responsabilidades” pelo resultado das eleições legislativas, mas a atual líder do partido reiterou que é necessário ouvir as bases “para perceber se daqui resulta também essa sua vontade”. Esta posição foi criticada pelos membros que se demitiram esta segunda-feira.

Inês Sousa Real, agora única deputada do PAN na Assembleia da República, já disse que recusa demitir-se, mesmo após críticas do ex-líder do partido, André Silva.

Dias antes das eleições legislativas antecipadas, que ditaram a perda de três deputados por parte do PAN, a revista Visão noticiou duas novas polémicas associadas às práticas agrícolas de Inês Sousa Real. Desta vez, diz a publicação, uma das empresas agrícolas da porta-voz do partido pediu autorização para usar o inseticida Delegate 250 WG, que serve para matar moscas da fruta (Drosophila suzukii), e recorreu ainda a uma subespécie de abelha, a mamangava-de-cauda-amarela-clara (Bombus terrestris), que, segundo a revistas é considerada uma ameaça para as abelhas portuguesas. 

Mas as polémicas que envolvem Inês Sousa Real e as suas empresas agrícolas não são de agora.

Inês Sousa Real, porta-voz do partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN), começou por estar no centro das atenções em novembro do ano passado, após uma denúncia que dava conta de que as duas empresas de produção agrícola a que estaria associada - primeiro diretamente, depois indiretamente - recorrem a estufas e fazem agricultura intensiva, duas práticas que são criticadas pela própria deputada por irem contra os ideias de produção biológica e do partido. A denúncia foi avançada pelo Nascer do Sol.

A ligação da deputada às empresas de agricultura intensiva, a Berry Dream Lda. e a Red Fields Lda, foi escrutinada no final do ano pelos media. O Correio da Manhã avançou com uma ligação de Sousa Real a estas empresas, dando conta também de que acumulou indevidamente funções em cargos públicos e privados ao longo de alguns meses, entre 2012 e 2013. Além disso, a passagem de quotas para a sogra que, por seu turno, passou para o filho (o marido de Inês Sousa Real) levantou dúvidas.

O jornal digital Observador noticiou também em novembro passado a ligação de Inês Sousa Real a uma terceira empresa, desta vez sem ser do setor agrícola, e à omissão, por parte da deputada, da comunicação dessa mesma empresa na declaração do registo de interesses, a ser entregue na Assembleia da República e na declaração de rendimentos, que deve constar no Tribunal Constitucional.

A estas polémicas, Inês Sousa Real respondeu, na altura, com uma nota à imprensa de cinco páginas e com 30 tópicos enviada por e-mail.

Acusação de agricultura intensiva e uso de plástico

Os negócios agrícolas em que Inês Sousa Real está ou esteve envolvida foram criticados por parte de Luís Mira, presidente da Confederação dos Agricultores de Portugal, que, em declarações ao jornal Inevitável (no dia 15 de novembro), pediu a demissão da porta-voz do PAN, acusando-a de praticar aquilo que o partido que dirige condena: agricultura intensiva e uso de estufas. Em causa estavam as empresas Berry Dream Lda. (com sede em Oeiras) e Red Fields Lda. (com sede no Montijo), especializadas na produção e comercialização de frutos vermelhos. 

A agricultura intensiva caracteriza-se pela produção de grandes quantidades de um único tipo de fruta ou vegetal, recorrendo, para isso, a um grande uso de produtos químicos, não respeitando as necessidades do solo se regenerar. Sobre este ponto, o PAN garante, em comunicado, que “ambas as empresas pugnam por boas práticas ambientais, sem recurso ao uso de pesticidas”.

A empresa Berry Dream, Lda. tem certificado pela SATIVA, mas nem isso impediu que fosse alvo de críticas, uma situação que, segundo Paulo Horta, da associação ambientalista ZERO, apenas faz sentido se em causa estiverem problemas não identificados pela empresa responsável pela fiscalização e certificação, algo que é incomum acontecer. O site da Red Fields Lda. não faz qualquer menção a certificado biológico e a empresa não consta no registo do diretório de operadores orgânicos certificados, onde está a Dream Berry, Lda. A CNN Portugal pediu, em novembro, as datas de quando as duas empresas obtiveram a certificação biológica, mas não obteve resposta.

À acusação de usar estufas, Sousa Real respondeu que eram túneis. O ambientalista da ZERO esclarece que, de facto, “são métodos diferentes” e que o primeiro, o que Inês Sousa Real diz que usa na empresa e, segundo a própria, cujas “coberturas são amovíveis” (no site da Berry Dream, Lda. há uma imagem que mostra os túneis), é usado na agricultura biológica, permite a circulação de ar e das águas da chuva, a respiração do solo e o acesso a animais, o que pode ajudar a controlar pragas. 

A associação das empresas de Inês Sousa Real ao uso de estufas ganhou mais escala depois de terem sido noticiados anúncios de emprego para essas empresas onde eram mencionadas estufas e não túneis. Sobre isto, o PAN diz que “prende-se tão somente com o facto de, neste tipo de anúncios online, ser comum a utilização do referido termo para facilitar o reconhecimento do tipo de funções agrícolas que são procuradas por quem procura emprego”, frisando que “não se pode confundir a descrição utilizada nos anúncios com o modo de produção e as estruturas que estão efetivamente colocadas e a uso - o sistema de túneis”.

Quanto à dimensão dos terrenos, também alvo de crítica, “no que à Berry Dream respeita trata-se de um terreno de pequena dimensão, com 3,7 hectares, dedicado essencialmente à produção em modo biológico de mirtilo (devidamente certificado), cuja ocupação se reparte da seguinte forma: dois hectares de mirtilo, vendido a granel e em embalagens de cartão e apenas 0,5 hectares de framboesa, em modo de produção integrada e com túneis para proteger das intempéries (uma vez que se trata de um pequeno fruto bastante sensível), e não estufas como tem sido referido”, lê-se na nota enviada por e-mail, em novembro, por parte do PAN, que dá ainda conta da dimensão dos terrenos da Red Field, “com um total de quatro hectares, com uma ocupação de apenas 1,5 hectares de framboesa, em modo de produção convencional, mais uma vez com túneis e não estufas, estando todos os demais 2,5 hectares em pousio”. Os dois terrenos, diz o PAN, “estão situados em Reserva Agrícola Nacional, estando, por isso, aptos para a atividade que ali é exercida”.

Um outro aspeto que colocou Inês Sousa Real no centro das atenções foi a forma como as framboesas são comercializadas. Se o mirtilo é vendido em embalagens de cartão, as framboesas produzidas pela empresa a que está ligada são comercializadas em plástico, situação que foi também criticada por parte do presidente da CAP. Sobre esta matéria, a resposta que o PAN enviou à CNN Portugal, em novembro, revela que, “é o próprio comprador que impõe ao produtor as regras de embalamento” das framboesas, “exigindo determinado tipo de material de embalagem ou chegando até, muitas vezes, a fornecê-la diretamente. Ou seja, o produtor fica sem qualquer participação nesta escolha”.

Acumulação de funções

Assim que o tema do tipo de produção levado a cabo pelas empresas agrícolas a que Inês Sousa Real está ou esteve associada veio ao de cima, as datas e as funções pela agora deputada geraram dúvidas, até porque, numa primeira declaração, a deputada do PAN deu a entender ao Nascer do Sol que a cessão de quotas na Berry Dream tinha ocorrido em 2013, mas, na verdade, apenas ocorreu em 2019 e depois de um aumento de capital.

Relativamente à Berry Dream, Lda., segundo a informação existente no Portal da Justiça, a empresa foi criada em 2012 com um capital de cinco mil euros (uma quota de 2.500 euros de Inês Sousa Real e outra, de igual valor, do seu marido). A nota enviada pelo PAN revela que se trata de uma “empresa familiar”, criada pelo cônjuge da porta-voz do partido numa altura em que “se encontrava desempregado e decidiu criar um negócio próprio”.

Inês Sousa Real exerceu nesta empresa o cargo de sócia-gerente “sem remuneração” com 50% do capital até 12 de outubro de 2013. Embora defenda que a sua função na empresa não era remunerada e em nada entrasse em conflito com o cargo que exercia na Câmara de Sintra (técnica superior de Direito), tanto a Lei 12-A/2008, publicada em Diário da República, como a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 2/2020, de 31/03, que pode ser consultada no site da Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa) defendem que “as funções públicas são, em regra, exercidas em regime de exclusividade”, tal como se lê no Artigo 26.º da Lei 12-A/2008. Porém, a mesma lei diz, nos artigos 28º e 29º, os casos em que a acumulação de funções pode ser exercida e a necessidade de ser pedida a respetiva autorização, algo que, diz a Câmara de Sintra, não aconteceu (embora Inês Sousa Real tenha pedido autorização para acumular as funções de provedora municipal dos Animais de Lisboa e para dar duas aulas, tal como avançou o Correio da Manhã).

Entre 10 de dezembro de 2012 e 2 de setembro de 2013, Inês Sousa Real acumulou cargos públicos e privados, sem nunca ter feito o pedido junto da Câmara Municipal. “É muito simples de perceber que naquela altura não houve esse pedido. (...) não nos cabe a nós comentar uma questão de uma funcionária da autarquia. (...) essa funcionária em particular nunca pediu [a acumulação de cargos]”, disse, por telefone à CNN Portugal, fonte da Câmara de Sintra.

Em novembro, apesar de a CNN Portugal ter perguntado por e-mail quais as datas dos pedidos de autorização de acumulação de cargos públicos e privados desde que iniciou funções na Câmara de Sintra, a resposta foi genérica. “Relativamente às alegações referentes ao período em que Inês de Sousa Real exerceu funções na Câmara Municipal de Sintra (entre dezembro de 2012 e setembro de 2013), não existiu incompatibilidade com as funções públicas, por não se tratar de um cargo concorrente, similar ou conflituante, e não comprometer a isenção e a imparcialidade exigidas pelo desempenho das funções públicas ali exercidas”, escreve o PAN.

De facto, o cargo de sócia-gerente, assim como de docente e provedora do animal não eram incompatíveis com a função que exercia na Câmara de Sintra. No entanto, Teresa Violante, constitucionalista, frisa que “regra geral” os cargos no setor público devem ser exercidos de forma exclusiva e, mesmo que se trate de uma atividade que em nada invalida ou compete com a do setor público, “é necessário que [a pessoa] requeira autorização” para o exercício dessas funções, tal como diz o artigo 23º da Lei Geral do Trabalho, citado pela especialista, que deixa ainda claro que “se fosse um cargo que causasse conflito a autorização não seria dada”.

Passagem de quotas em três segundos

Inês Sousa Real deixou de ser sócia-gerente da Dream Berry Lda. a 12 de outubro de 2013, mas manteve as quotas na empresa durante quase seis anos. Em janeiro de 2019, e ainda na detenção de quotas na empresa, houve um aumento de capital na Berry Dream, Lda. no valor de quatro mil euros (aumentando o capital total para nove mil euros), um “ato normal na dinâmica própria e vida interna das empresas, não existindo qualquer contradição com a data da saída de Inês de Sousa Real da empresa, o que só veio a ocorrer em dezembro de 2019”, explica o PAN. Foi nesse mês de dezembro, mais concretamente no dia 9, que à data já deputada do PAN (começou em outubro desse ano) procedeu à “cessão de quotas [na Berry Dream, Lda.], ou seja à transmissão das quotas”. E a forma como a passagem das quotas aconteceu levantou dúvidas. 

Inês Sousa Real passou as suas quotas para a sua sogra, Maria Lisete Brás Soares, que, por seu turno, passou para o filho (marido de Inês Sousa Real), uma mudança que, segundo a Sábado, demorou apenas três segundos a ser feita e que leva a crer que o marido era o destinatário final, mas não imediato. O PAN diz que “esta transmissão foi feita de boa-fé, sem qualquer simulação, de forma completamente voluntária, não existindo qualquer exigência legal para que as quotas tivessem de ser cedidas”. No entanto, “duas cedências de quotas sucessivas, quase simultâneas, e entre pessoas familiares tão próximas parecem indicar, parecem indiciar uma tentativa de contornar impedimentos legais, por isso é que a colega jurista falou de nulidade ou fraude à lei, são as suspeitas que podem estar aqui em causa”, diz à CNN Portugal a constitucionalista Teresa Violante, referindo-se às declarações de juristas ouvidos pelo Polígrafo que dizem que o negócio pode ser considerado nulo. 

No que diz respeito à Red Fields, Lda., Inês Sousa Real garante que a “o facto de ter abraçado um novo desafio enquanto deputada na Assembleia da República”, retirou-lhe a “disponibilidade para se dedicar a outros projetos pessoais, decidiu igualmente proceder à cessão de quotas, em fase de finalização”, garantindo que “nunca exercer o cargo de sócia-gerente ou qualquer outro cargo de gerência na Red Fields nem nunca exerceu um cargo remunerado em nenhuma das empresas [referido-se aqui também à Berry Dream, Lda.]”.

A permanência de quotas na Red Fields, Lda. é também alvo de comentário por parte do PAN. Tratando-se de “uma sociedade com mais sócios, isso levou a que o processo de cessão de quotas fosse mais demorado, para mais quando coincidiu com o período em que o país foi afetado pela crise pandémica e socioeconómica”, sendo que “assim que foi levantado o confinamento, ou seja, recentemente, foi retomado o processo de saída da empresa Red Fields, presentemente em fase de finalização”. Porém, e tal como já tinha acontecido com outros meios de comunicação, não foi avançada uma data para o término das quotas. 

Segundo a nota enviada pelo PAN, “em qualquer uma das situações, a lei não prevê qualquer limitação ou restrição quanto à possibilidade de os deputados serem detentores de capitais sociais em empresas, pelo que a decisão de saída, reforça-se, foi de cariz puramente voluntário e exclusivamente por força da difícil conciliação em face das obrigações e agenda parlamentares”.

As duas empresas constam no regime de interesses da Assembleia da República, ao contrário da empresa de mediação imobiliária do marido.

O esquecimento no Tribunal Constitucional

A Pontes&Perfis, uma mediadora imobiliária criada em julho de 2020 pelo marido de Inês Sousa Real, não consta ainda no registo de interesses na Assembleia da República e, segundo o Observador, foi omitida da declaração de rendimentos enviada ao Tribunal Constitucional (TC). A CNN Portugal entrou em contacto com o TC que adiantou que este tipo de informação apenas pode ser consultado localmente, mas o PAN reconhece a ausência da informação e diz que houve um “lapso” e, mais uma vez, diz que a deputada agiu de “boa-fé”.

“Inês de Sousa Real declarou ainda a empresa Pontes & Perfis - Mediação Imobiliária Unipessoal Lda., NIPC 516049224, com capital social de 500,00€ (quinhentos euros), detido pelo cônjuge, para atualização no Portal do Deputado. A declaração foi enviada pela própria, em outubro de 2020, por e-mail, à Comissão de Transparência, uma vez que devido a falha do sistema informático não conseguiu submeter a mesma declaração no portal online. A empresa Pontes & Perfis - Mediação Imobiliária Unipessoal Lda. consta também da declaração de interesses do marido de Inês de Sousa Real entregue ao Tribunal Constitucional”. 

De acordo com a nota enviada pelo PAN à CNN Portugal em novembro, Inês de Sousa Real “agiu sempre de boa-fé e de forma transparente, como comprova o facto de ter comunicado a constituição da empresa do marido à Comissão de Transparência. Foi apenas por lapso que Inês de Sousa Real não incluiu a referida empresa na sua última declaração de interesses efetuada ao Tribunal Constitucional, tendo já regularizado a situação”. Deste modo, o PAN remente a responsabilidade da “atualização da informação comunicada por Inês de Sousa Real, referida nos pontos anteriores, nos respetivos portais ou sites (Site do Parlamento, Portal da Justiça e Portal do Deputado)” às entidades competentes “que procedem à gestão dos mesmos”. 

Partidos

Mais Partidos

Patrocinados