Folhetim de voto: Alegações de divórcio

12 jan 2022, 06:10

A capacidade do PS ir buscar eleitores ao BE, e a força do BE para segurar o seu meio milhão de votos serão fatores decisivos para o desfecho destas eleições, escreve o jornalista de política Filipe Santos Costa na coluna diária de análise e opinião à campanha. Por isso o debate de ontem, sobre o divórcio entre PS e BE, era tão decisivo. Faltam 19 dias para as eleições

Decisivo. O debate de ontem entre António Costa e Catarina Martins era o mais importante debate à esquerda nesta campanha eleitoral. Porque são os dois maiores partidos da esquerda, de acordo com os resultados de 2019, e aqueles cuja relação sempre foi mais complicada desde o arranque de geringonça (em 2015 o BE simplesmente não podia ficar fora de um acordo para o qual pouco contribuiu, e que, na génese, foi desencadeado pelo PCP e abraçado pelo PS). São também os dois partidos deste lado do espetro entre os quais há maior permeabilidade, com muitos eleitores a transitar de um partido para o outro conforme as circunstâncias. Havia, no debate de ontem, eleitorado comum em jogo - e, potencialmente, muito eleitorado. 

O BE teve meio milhão de votos em 2019, o que lhe deu o terceiro maior grupo parlamentar, com 19 deputados. Foi a esses 500 mil eleitores (em rigor, 500.017… todos os votos contam…) que Costa apelou diretamente, pedindo-lhes que avaliem se, quando votaram BE, o fizeram para uma maioria de esquerda ou para que o partido de Catarina Martins ajudasse a direita a chumbar o Orçamento e a derrubar o Governo. 

Da capacidade do PS seduzir uma parte desse eleitorado bloquista - e da capacidade do BE segurar esses eleitores e, eventualmente, conquistar mais uns quantos, mantendo-se como “terceira força política”, como Catarina tem pedido - dependerá o essencial do quadro partidário que sairá das eleições de dia 30.

António Costa

Costa ao ataque. Havendo tanto em jogo, António Costa mostrou-se sempre ao ataque. O líder socialista já se tinha mostrado bastante duro e focado no objetivo do voto útil com os dois anteriores interlocutores de esquerda. Se foi assim face a dois partidos com os quais o PS pouco pode lucrar eleitoralmente (o Livre, porque poucos votos representa, e o PCP, porque tem um eleitorado muito fiel), por maioria de razão foi ainda mais frente ao Bloco que, nos cálculos do PS, pode ser uma espécie de porquinho-mealheiro de votos, se o argumento do voto útil pegar. O tom não foi tão agreste como no debate com Jerónimo, mas o objetivo era o mesmo (“[Costa] vinha para matar, embora mais educadamente do que tinha feito com o outro ex-parceiro”, escreveu a Ana Sá Lopes).

Para passar a ideia de “inutilidade” do voto no BE, Costa precisava de demonstrar que o BE não é de confiança e que traiu a geringonça e a esquerda. Foi esse o seu guião ao longo de todo o debate. A intervenção inicial foi demolidora. Costa lembrou que “por vontade do BE, o governo PS já tinha sido derrubado há um ano”, quando o BE votou contra o Orçamento de 2021, com a pandemia a lançar o país numa crise e nem vacinas havia. Ao fazê-lo, “a direção do BE decidiu romper o diálogo à esquerda”, não apenas com o PS, mas também com o PCP e o PEV - e, desta forma, Costa destacou o BE como o elemento que minou a maioria de esquerda. A seguir, isolou o BE de qualquer solução construtiva, pois o mesmo partido que se juntou à direita para chumbar o Orçamento do PS, não se juntará à direita para viabilizar qualquer orçamento do PSD. “Aquilo que votam não é para avançar, é para parar.”

Perante uma Catarina seráfica - a mesma postura com que se tem apresentado, transmitindo uma imagem de contenção -, faltava o argumento final de Costa: a duplicidade do BE. “Há o Bloco que aparece na campanha eleitoral, que é muito mel, e há o Bloco que atua na Assembleia da República, que é cheio de fel.” Mais adiante, Costa voltaria a esta ideia de duplicidade na nova atitude “light” do BE.

Catarina Martins

Catarina em contra-ataque. Quase todas as sondagens são o BE a recuar em comparação com 2019. Havendo muito em risco, Catarina Martins apostou numa defesa sólida, com capacidade de jogar em contra-ataque. Mais do que responsabilizar Costa pela rutura das negociações à esquerda (e também o fez), Catarina precisava, sobretudo, de apresentar-se como aquilo que nunca conseguiu ser ao longo destes anos: o motor de uma nova geringonça. Sem deixar a conversa azedar, e sem excesso de recriminações que possam por em risco reaproximações futuras. Conseguiu fazê-lo, mesmo obrigando-se a um enorme esforço retórico para se demarcar das suas próprias palavras, quando, há dias, acusou Costa de ter passado a ser “um obstáculo” a novos entendimentos à esquerda. Afinal, disse ontem, o obstáculo não é Costa, “o obstáculo é o desejo de uma maioria absoluta”. Confrontar o líder socialista sem queimar pontes para o PS foi o que Catarina fez melhor ao longo dos 25 minutos de debate. 

 

“Toda a gente sabe”. As mesmas sondagens que dizem que o BE está a perder terreno indiciam que será necessário negociar uma maioria à esquerda. Essa é a força que Catarina Martins tenta aproveitar, desmontando os apelos de Costa a uma maioria absoluta de que não parece haver vislumbre. “Neste momento, toda gente no país sabe que não teremos uma maioria absoluta”, declarou a bloquista, avançando que “a nossa responsabilidade é criar soluções para o dia seguinte”. E pôs-se na mesa das negociações: “O que conta para criar essas soluções é a saúde e o trabalho.”

A disponibilidade e o pragmatismo de Catarina Martins contrastam com o aparente irrealismo do Plano A de Costa, que é governar sozinho. E obriga Costa a dar respostas que não tem ou não quer dar. O Bloco disponibiliza-se a negociar, se não houver maioria absoluta. E o PS?

 

Anti-Cavaco. Costa continua sem responder sobre qual será o seu Plano B se não puder governar sozinho. Parece bastante evidente que o tem - e aposto que será negociar um acordo de maioria à esquerda, talvez na esperança de que Rui Tavares, sendo eleito, e os deputados do PAN (quantos serão?) cheguem para perfazer 116 deputados. 

Ontem, na análise ao debate, a Mafalda Anjos, aqui na CNN Portugal, arriscava que o Plano B de Costa “está lá guardado”, mas “é com geringonça”. O facto é que continua a faltar clareza ao líder socialista neste ponto, e esse poderá ser um dos calcanhares de Aquiles do seu discurso até às eleições. Percebo o objetivo de não aliviar a tensão, para dramatizar a necessidade do voto útil - uma estratégia destas não permite planos B. Mas já uma vez Costa escondeu dos eleitores os seus propósitos pós-eleitorais, ao tirar da manga a geringonça em 2015. A suspeita sobre o que poderá esconder na manga desta vez pode dar um bom filão aos seus adversários até dia 30.

Tanto mais quanto Rui Rio já tem esse assunto arrumado: não esconde que se ganhar sem maioria se coligará com a Iniciativa Liberal e o CDS (se este ainda tiver deputados), e esconde mal que negociará o que tiver de negociar com o Chega (esse é outro problema, mas sobre isso já escrevi). E Costa?

Até ontem havia apenas uma certeza: se ficar atrás do PSD, António Costa vai embora, pois considerará isso “um voto de desconfiança do eleitorado”, após 6 anos a chefiar o Governo. Dito de outra forma: Costa garante que não repetirá a geringonça, como foi criada, em 2015, juntando uma maioria de esquerda mesmo que o PSD ganhe.

Ontem, o primeiro-ministro deu outra garantia: não faz depender a sua continuidade de poder governar sozinho. Isso já me parecia claro, mas na noite passada ficou preto no branco. “Eu não faço essa chantagem. Eu não sou o professor Cavaco”, respondeu, à pergunta do João Adelino Faria. Mais uma razão para ter de responder à pergunta subsequente: se ganhar sem 116 deputados, como irá garantir a estabilidade de que precisa?

A maioria das análises pós-debate que vi concedeu a António Costa a vitória neste frente-a-frente. Dos quatro comentadores do painel da CNN Portugal, só um (a Anabela Neves) considera que Catarina Martins levou a melhor sobre Costa; nas cinco análises publicadas no Expresso, só duas reconheceram vantagem à líder bloquista. A Ana Sá Lopes, no Público, também entrega a vitória a Costa.  

 

Centrado. Nesta vitória entra outro fator. O primeiro-ministro não precisou de encostar à esquerda para secar o discurso do BE. Seria um disparate e uma guerra perdida. Isso foi o que fez Rui Rio em todos os debates à direita, aproximando-se excessivamente dos seus interlocutores e, com isso, correndo o risco de alienar o centro. Costa nunca pisou esse risco. Pelo contrário. De cada vez que Catarina o acusou de falhar no SNS, ou na Educação, nas leis laborais ou nas pensões (os quatro principais temas em debate - e com posições bem sustentadas de um lado e do outro), Costa apresentou-se como tendo a posição moderada, cautelosa, sem excessos nem aventuras. Pareceu-me particularmente bem sucedido quando o fez na discussão sobre a sustentabilidade das pensões. E quando lembrou a nova legislação laboral espanhola, em que PSOE e Podemos mantiveram a caducidade das convenções coletivas (um dos cavalos de batalha do PCP e do BE no chumbo do OE).

 

“Bravata”. Costa foi mais longe para se demarcar de um partido que, na sua caraterização, continua a ser demasiado radical. Foi ao programa eleitoral do BE, onde encontrou um magnífico eufemismo “desprivatizar” (versão light de nacionalizar), e acusou os bloquistas de quererem fazer disparar a dívida pública para renacionalizar a EDP, a REN, a ANA, os CTT e a GALP. “Não é responsável emitir 30 mil milhões de euros de dívida pública, duas vezes a bazuca europeia, para fazer uma bravata ideológica”, disse Costa. O que Costa não disse é que esse já era um objetivo do BE em 2015 e 2019, e nunca foi um obstáculo à geringonça. 

Nas cenas deste divórcio, em que se aplicam todos os clichês das separações litigiosas, faltou Costa dizer a Catarina “não és tu, sou eu”. Dia 31 se verá se o divórcio foi definitivo, ou se estavam só a “dar um tempo”

 

João por Jerónimo. Hoje é o primeiro dia da sucessão que o PCP insiste em retardar. A vida acelerou o que o cálculo estava a adiar. Jerónimo de Sousa é hoje internado para uma cirurgia de urgência à estenose carotídea (tem aqui bem explicadinho o que está em causa), que o afastará da campanha por uns dez dias. Jerónimo será substituído por dois Joões - o líder parlamentar, João Oliveira, e João Ferreira, eurodeputado, vereador em Lisboa, ex-candidato presidencial e candidato à Assembleia da República. João F. tem sido o nome mais citado como eventual sucessor de Jerónimo, sobretudo pela acumulação de candidaturas nos últimos anos, mas João O. coloca-se de rompante na pole position. Até porque, esta noite, será ele a debater com Rui Rio no frente-a-frente que deveria ter sido protagonizado por Jerónimo. Há um bom argumento para esta escolha: Oliveira tem grande treino de debates na Assembleia e domina todos os dossiês políticos, por força das funções como líder parlamentar. Pode haver outra razão - talvez a escolha do sucessor de Jerónimo de Sousa já esteja feita.

Na conferência de imprensa em que assumiu o seu afastamento temporário, Jerónimo foi empático e terra-a-terra como só ele sabe ser. Agradeceu a Rui Rio pela disponibilidade de debater com um interlocutor substituto (“É um exemplo de que pode haver combate sem tréguas no plano político-ideológico, mas há valores que pertencem a todos”). E garantiu que nenhum dos Joões está à experiência em tirocínio para a liderança - “São já muito experimentados, têm uma grande capacidade de resposta e eu confio nisso.” Em tempos, o líder comunista capitalizou com dificuldades físicas de outra ordem - em 2005, no seu primeiro debate televisivo como secretário-geral, ficou afónico. Dizem as crónicas que foi um dos vencedores desse debate. 

 

Animal. O PAN apresentou, por fim, o seu programa eleitoral. Defende a proteção animal como valor constitucional, e quer abolir as touradas, a caça e a pesca desportiva. E não fecha a porta a acordos à esquerda e à direita, mesmo depois de ter sido acusada, no debate com Catarina Martins, de duplicidade, por admitir apoiar o PS e se pôr a jeito para um governo do PSD.

 

Ordem do dia. Para além do frente-a-frente entre Rui Rio e João Oliveira (SIC, 21:00), esta noite também há debate entre João Cotrim Figueiredo e Rui Tavares (SIC-Notícias, 22:00). À tarde, a CNN Portugal transmite mais um confronto à direita que promete aquecer, entre Francisco Rodrigues dos Santos e André Ventura (18:30).

Esta manhã António Costa tem uma reunião em Setúbal com empresários e gestores sobre crescimento económico, e Rui Rio tem um encontro com a direção da Ordem dos Enfermeiros. Catarina Martins visita um centro de apoio a vítimas de violência doméstica.

 

Frase do dia

“Mais uns dias e podem contar comigo, para o bem e para o mal.”

Jerónimo de Sousa

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