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Colunista e comentador

Kenedy, o Big Brother e a ‘tia Serena'

6 abr 2022, 11:00
bruna e kenedy

Vejo as lágrimas de KENEDY a correrem-lhe pelo rosto e elas traduzem a alma em estado líquido. A alma inundada por memórias que nunca secam. O brilho dos olhos e a profundeza das olheiras molhadas são o espelho da dor.

De alguma maneira todos nós choramos. Choramos pelos traumas da vida, por aquilo que passámos, pelas descobertas que vamos fazendo e que nos são impostas, às vezes, por quem menos esperamos. Choramos pelas perdas, choramos — muitas vezes silenciosamente — pelo mal que outros nos fazem, seja no espaço profissional, seja até no espaço familiar, choramos quando sentimos que os sonhos não são realizados, choramos quando damos tudo e mesmo assim apenas resta a indiferença, a incompreensão ou mesmo a traição.

O DANIEL KENEDY foi um dos mais promissores jogadores portugueses da década de noventa. Entrou destroçado para o BIG BROTHER, talvez o último reduto que encontrou para se reabilitar. Entrou com a alma dorida, entrou com a alma inundada de uma revolta que não acaba.

Revolta contra si próprio, cujos caprichos confessa sem ambiguidades (“quero que o meu filho seja melhor do que eu”) e nenhum aparente sentimento de rancor por não ter sido recuperado para a vida por uma, duas, três ou dez pessoas que entram em estádios de milhares (e de milhõ€s), muitas vezes para desligarem dos dramas da vida.

Sobrou a tia. Deixa-me baptizá-la como a tia Serena. A tia Serena que tem coração.

O KENEDY é apenas um entre muitos casos de gente que chega a tocar o céu das celebridades e que cai estrondosamente no subterrâneo da depressão. A vida é, de facto, um elevador — umas vezes está em cima, no arranha-céus da euforia; outras vezes está em baixo, nas profundezas de um inferno que queima a alma.

O KENEDY, quando entrou nessa droga que pode ser um casino, já tinha perdido tudo mas achava que ainda podia ganhar. Foram duas derrotas consecutivas, muito duras, mas se nos campeonatos de futebol duas derrotas podem não corresponder à perda do troféu mais desejado, no caso dele foi a queda no mundo real.

Deixar de ter, deixar de sorrir, só ter vontade de fugir, adormecer e não mais acordar.

O BIG BROTHER foi a escapatória.

As almas boas como o KENEDY, que têm consciência dos seus erros e são vítimas de deslumbramentos momentâneos forjados por um sistema tão atractivo quanto cruel, merecem sempre uma oportunidade.

Acompanhei o KENEDY quando se internacionalizou pela primeira vez em Fevereiro de 1990.

Vi-o jogar muito bem quando ele tinha 16 anos, no Campeonato da Europa de Sub-16, na então RDA, na cidade de Erfurt. Era então um jogador seco, ágil pelo corredor esquerdo, com uma capacidade diferenciada que o tornaria depois numa das maiores promessas do futebol português.

Em A BOLA dessa altura (24.5.1990) escrevi, atribuindo-lhe 5 estrelas (*****), o máximo da avaliação individual num jogo do Europeu com a Dinamarca: “Como é diferente o jogador português, tenha a idade que tiver, quando se concentra na competição enquanto ela dura. Foi isso acima de tudo o que KENEDY fez. Ao longo de 80 minutos não pensou em mais nada senão em ganhar todos os lances. E ganhou-os, entrando muito no jogo. Que bravura e que dedicação! Uma exibição em cheio, mas uma exibição que deverá servir como recomendação e não como plataforma de deslumbramento”.

 

O título que dei ao texto: KENEDY A PRESIDENTE. É curioso, não é?…

Trinta e dois anos depois, DANIEL, o essencial não mudou. És uma alma boa e é com essa alma boa que vais vencer. Naquele texto que escrevi há 32 anos e que aqui reproduzo talvez percebas. E chora. Chorar liberta, mesmo quando o sentimento é de prisão nesta enorme masmorra que são os mundos da hipocrisia.

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