opinião
Comentadora de política da CNN Portugal

“Mulher não entra!”

1 dez 2023, 09:47

MEMÓRIA DA POLÍTICA || Anabela Neves recupera memórias da política para trazer novas luzes à atualidade

Dirão alguns, que título estranho para falar do 41.º congresso do PSD que teve de tudo um pouco, incluindo uma homenagem de Luís Montenegro às mulheres portuguesas.

Seria estranho se não estivéssemos a falar de um partido ainda muito conservador, em especial nas estruturas distritais e concelhias onde “mulher não entra”.

A expressão e conclusões são de um social-democrata com quem falei em Almada, durante uma tarde que se arrastava à espera dos “barões” que haveriam de aparecer.

Este militante, que já foi de tudo um pouco no PSD, incluindo deputado e líder de concelhia, perguntou um dia a um interlocutor partidário onde estavam os 33,3% de mulheres que entravam nas listas, por imposição legal, nas eleições autárquicas (40% desde 2019).

“A fazer o jantar” – foi a resposta quase 18 anos depois da aprovação da primeira Lei da Paridade.

Numa outra conversa dizem-me que já ouviram outras explicações para a quase ausência de mulheres nas reuniões partidárias: elas “não tem tempo”; elas “têm os filhos para cuidar”; elas “não tem paciência” para jantares e reuniões políticas que se prolongam noite fora.

Registo do último Congresso do PSD, no passado sábado em Almada (Lusa)

Olhemos então para estas décadas em que muito se andou na paridade de género, em especial a partir da revisão constitucional de 1997.

A caminhada, sempre controversa, fez-se pela mão de governos socialistas (António Guterres, José Sócrates e António Costa) e do Bloco de Esquerda, sempre com oposição de PCP, CDS e PSD, sendo que neste último houve divisões ao longo do tempo.

Mas que dizer do próprio PS que, justiça seja feita, inicia este percurso logo em 1994 com o candidato a primeiro-ministro António Guterres? 

Só que demora uma legislatura até apresentar uma proposta de lei em junho de 1998. No partido propriamente dito faltava ainda o essencial: consagrar as quotas nos órgãos nacionais.

Nesta “Memória da Política” recuemos até 6 de fevereiro de 1999 e ao Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Um punhado de militantes, incluindo Helena Roseta, apresenta uma moção setorial que impõe uma quota de 25% de mulheres. 

Registo de um antigo Congresso do PS (Lusa)

Almeida Santos, presidente do XI Congresso do PS, submete a votação olhando para os braços no ar e logo anuncia “aprovado por unanimidade e aclamação”.

O debate sobre a aplicabilidade da medida não existe no congresso que à boa moda de António Guterres, o líder de então, passa pelo tema como “cão por vinha vindimada”.

Esta tática “guterrista” da época atinge o ponto de rebuçado quando se elegem os órgãos que “engordam” quase 30% para entrar a quota feminina, ou seja, não sai um único homem, o que faz crescer a Comissão Nacional de 201 para 261 e a Comissão Política de 61 para 76 membros efetivos.  

Se de um lado estava um Guterres “elástico”, do outro, no PSD, estava um “hábil manobrador” como diziam alguns socialistas. Falo do líder social-democrata Marcelo Rebelo de Sousa, que disse, recentemente, que defende as quotas há 20 anos. 

Acreditamos, sem dúvida, na palavra do Presidente da República de hoje.  

Em 1999 o tom até era semelhante. Afirmava Marcelo que “há qualquer coisa de errado no sistema político, nos partidos políticos, no funcionamento das instituições”. Afirmava enquanto escolhia uma das maiores opositoras das quotas, Manuela Ferreira Leite, para o debate parlamentar sobre a proposta do governo socialista, em março desse ano. 

Sem surpresas, a bancada votou contra com exceçao de uma única mulher, Manuela Aguiar. Leonor Beleza, a grande amiga de Marcelo, feminista e defensora da paridade, teve de engolir em seco.

Quase dez anos depois a Assembleia da República aprovou finalmente em 2006 a primeira lei para as eleições legislativas, autárquicas e europeias, obra conjunta do PS de José Sócrates e do Bloco de Esquerda de Francisco Louçã. 

Desde aí, António Costa e o PS consolidaram a aposta mas o PSD continuou de fora. De tal modo que a secretária de Estado dos Assuntos Parlamentares e Igualdade de Pedro Passos Coelho, Teresa Morais, sublinhava em 2015 que o caminho pelos direitos das mulheres ainda "é feito de pedra" porque ainda há "muita resistência".

Nos últimos anos Luís Montenegro “converteu-se” à lei das quotas e até convocou o congresso de Almada para discutir mudanças nos estatutos que incluíam a imposição de uma quota feminina de 40% nos órgãos partidários.

O líder social-democrata teve sorte. 

Delegados e dirigentes só quiseram saber das próximas eleições e pouco ou nada ligaram às alterações que foram aprovadas, em bloco, através do tal método da “floresta de votos” popularizado pelo socialista Almeida Santos quando olhava em frente e via centenas de braços no ar que nunca eram contados.

No PSD sublinham que o que falta nos órgãos será compensado com a “quota” informal que existe no Conselho Estratégico Nacional (CEN) que está a preparar o programa de governo. Quase metade são mulheres e a maioria independentes e é deste “alfobre” que poderão sair os chamados ministeriáveis. 

Para que os militantes não esqueçam que precisam de mulheres no partido e num futuro governo, Montenegro encerrou o congresso com uma homenagem às vitimas de violência doméstica.

Um gesto que me lembrou outra memória dos idos 2014, quando António Costa foi consagrado líder no XX Congresso de Lisboa. 

Nesse dia, 30 de novembro, chamou ao palco a atriz Maria do Céu Guerra para, num dos momentos mais emotivos, ler os nomes de 34 mulheres mortas nesse ano. 

Não sei se Luís Montenegro foi buscar inspiração e/ou se plagiou aquele momento “costista” de 2014. 

Pelo menos, à sua maneira, ensaiou aquilo que parece ser um apelo para que o PSD deixe entrar as mulheres, finalmente!

 

Para memória futura aqui ficam algumas frases destes anos:

"Bem podem fazer quotas, mas onde estão as mulheres que estão disponíveis? Bem podem vir as quotas, que o pai, o marido, o irmão não aceitarão que a mulher chegue tarde a casa para ir a uma reunião política." (Manuela Ferreira Leite, ex-vice presidente bancada PSD, novembro 1999)

As quotas têm por base "uma concepção meramente biológica do sexo e não uma concepção social", não olham às "condições de discriminação social dos sexos" (Odete Santos, ex-deputada PCP, novembro 1999)

"Não sou uma fanática das quotas femininas, mas gosto do resultado que elas proporcionam." (Viviane Reding, ex-comissária europeia para a Justiça, 2012)

“Se fossem suspensas o número de mulheres diminuiria no Parlamento.” (Teresa Leal Coelho, ex-deputada PSD, in Público, 2015)

"A realidade mostra que os países onde rapidamente se atingiu perto da paridade foram países onde houve quotas, como os países nórdicos. Portanto, é tudo muito bonito, 'a quota é ofensiva', mas foi assim que se chegou lá." (presidente Marcelo Rebelo de Sousa, março de 2018)

“... havia mulheres que não queriam ser filhas da quota. E eu dizia: 'mas que estupidez, que importância é que isso tem?' O que é preciso é chegar lá, que seja um caminho legítimo e que se chegue lá: mais vale sermos filhas da quota do que filhas de coisa nenhuma." (ex-deputada socialista Helena Roseta, in Diário de Notícias, 5 janeiro 2022)

"... éramos poucas, e eles queriam sempre ter uma mulher na mesa, a tal ponto que eu gozava e dizia: 'bom, vocês já têm a mesa feita, têm já cinco homens, uma mulher, só falta um cão'. A mulher tinha que lá estar, era um ornamento." (Helena Roseta, 2022)

"As mentalidades não se mudam por decreto. É importante que os partidos respeitem e apliquem a lei da paridade, mas também façam isso na composição dos seus órgãos internos." (vice-presidente PSD, Margarida Balseiro Lopes, in Diário de Notícias,  janeiro 2022)

“Relativamente às quotas, eu sou um dos convertidos, no parlamento votei convictamente contra. Por princípio, todos defendemos uma sociedade onde o crescimento se baseia na avaliação do que fazemos, no mérito, nos resultados. Mas, quando nós estamos a falar de um processo de mentalidade coletiva, de cultura, de forma de organização que vem de muitos anos, às vezes só com um toque mais impositivo se pode estimular o que vem a seguir.” (Luís Montenegro, in Observador, 7 março 2023, véspera do Dia Internacional da Mulher) 

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