“Não conseguia parar de olhar para ti.” Anna Cramling revela os comentários indesejados que recebeu por jogar xadrez

CNN , Ben Church
8 abr 2023, 16:00
Cramling começou a transmitir os seus jogos de xadrez na internet em 2020. Foto: cortesia de Madelene Belinki

“Tenho tido experiências estranhas no mundo do xadrez desde criança”, contou Cramling à CNN Sport

Depois de várias mulheres partilharem as suas experiências perturbadoras no mundo do xadrez, incluindo acusações de abuso sexual por parte de um Grande Mestre, o jogo histórico está a ter o seu próprio momento #MeToo. 

A popular streamer de xadrez online Anna Cramling diz que também teve experiências incómodas durante a sua carreira no jogo. 

A jovem de 20 anos, que ostenta quase 400.000 seguidores no YouTube, diz que ser uma mulher no xadrez levou por vezes a que recebesse comentários indesejados de homens que a deixaram desconfortável e a fizeram sentir-se sozinha durante os torneios.

“Tenho tido experiências estranhas no mundo do xadrez desde criança”, contou Cramling à CNN Sport.

“Desde homens adultos a elogiarem-me em torneios de xadrez, a receber mensagens diretas dos meus adversários de xadrez a dizerem coisas como «não conseguia parar de olhar para ti» durante o nosso jogo.” 

“Isto fez-me sentir muito desconfortável, uma vez que um jogo de xadrez costuma demorar quatro ou cinco horas, pelo que foi estranho saber que alguém muito mais velho do que eu tinha pensado em mim dessa forma durante tantas horas.” 

Como filha de dois Grandes Mestres – a mãe, Pia, foi a quinta mulher a conquistar o título e o pai, Juan Manuel Bellón López, foi cinco vezes campeão espanhol – o xadrez desempenha desde sempre um papel importante na vida de Cramling. 

Nascida em Espanha, Cramling diz que passou muito tempo a viajar com os pais para torneios em todo o mundo e acabou por decidir investir nas suas próprias capacidades.

Ela conta que começou a levar o xadrez mais a sério depois de se ter mudado para a Suécia com a família, estudando o jogo até duas horas por dia.

“Mesmo que eu não estudasse todos os dias, estava sempre a ouvir falar de xadrez, via constantemente os meus pais a analisar os seus jogos, a falar de xadrez”, diz. 

Segundo o Chess.com, Cramling atingiu um pico na classificação da Federação Internacional de Xadrez (FIDE) com 2.175 pontos em 2018, o que a qualifica como Mestre Feminina da FIDE – a terceira melhor classificação para as mulheres, atrás de Grande Mestre Feminina e de Mestre Internacional Feminina. 

Desde 2020, porém, Cramling diz que o seu foco tem sido mais a construção das suas redes sociais. 

“Envergonhada e culpada” 

Cramling recorda o momento em que um árbitro a questionou sobre a sua roupa durante um torneio juvenil em que participou quando tinha 15 anos. 

Era Verão, diz, e tal como muitos outros participantes usava calções, e tinha ido falar com uns amigos que conhecia a competir no torneio masculino.

Ela diz que um funcionário do torneio se aproximou dela e disse-lhe que estava “a distrair todos os jogadores do sexo masculino”.

“Lembro-me de voltar à secção feminina do torneio e de me sentir tão envergonhada e culpada que não consegui concentrar-me durante todo o jogo – só me queria ir embora”, diz.

“Um dos principais problemas tem sido que há muito mais rapazes do que raparigas a jogar xadrez, e ser mulher num torneio de xadrez pode por vezes ser algo muito solitário.”

“Já joguei em torneios com mais de 300 participantes, onde apenas cinco eram mulheres.”

“Penso que uma das razões pelas quais tão poucas mulheres competem é porque o ambiente nos torneios de xadrez pode ser muito hostil para elas, e sei que muitas, muitas mulheres têm histórias como a minha, ou piores.”

Apesar destes incidentes, Cramling ainda tem uma paixão óbvia pelo jogo que é visível nas suas plataformas online.

Ela publica vídeos regularmente, tais como os dos jogos informais contra o Grande Mestre Magnus Carlsen, e transmite os seus jogos na internet.

O mundo da transmissão de xadrez pode ser relativamente recente, mas tem certamente uma audiência.

Para além do seu canal do YouTube que continua a crescer, Cramling tem 301.000 seguidores no Twitch e quase 150.000 no Instagram. Ela diz que a maior parte dos comentários que recebe online são amigáveis.

Cramling conta que a sua presença e os subsequentes seguidores têm aumentado mensalmente, e foi recentemente nomeada para Melhor Streamer de Xadrez nos The Streamer Awards deste ano. 

Cramling já percorreu um longo caminho desde o primeiro vídeo que publicou, que ela diz ter feito usando o portátil do namorado da altura. 

Por coincidência, a decisão de experimentar o streaming coincidiu com a pandemia de covid-19, que viu o mundo do xadrez online registar um boom de popularidade – a plataforma online Chess.com disse no início deste ano que tinha mais de 102 milhões de utilizadores, um aumento de 238% em relação a Janeiro de 2020. 

Cramling diz estar grata por o seu conhecimento e entusiasmo pelo xadrez terem encontrado uma audiência. 

“Nunca pensei que ia ganhar a vida com isto”, revela. “Foi tão divertido no início, e eu ainda acho que é realmente divertido.” 

“Penso que isso também se vê nas transmissões, as pessoas veem que me estou a divertir e eu penso que isso é o mais importante.” 

“No momento em que deixa de ser divertido, penso que é realmente difícil fazer bom conteúdo.” 

O que o xadrez ainda tem de fazer pelas mulheres 

Cramling diz que quer que o seu conteúdo sirva como mais do que apenas entretenimento.

Segundo o investigador David Smerdon, apenas 11% dos jogadores classificados pela FIDE e apenas 2% dos Grandes Mestres – o mais alto título de xadrez atribuído pelo órgão que regula o desporto – são mulheres.

Tal como a mãe serviu de modelo para ela, Cramling quer agora inspirar outras mulheres a jogar xadrez, mas diz que os torneios têm de fazer a sua parte.

Ela quer que os oficiais estejam mais empenhados em monitorizar o comportamento para com as mulheres e apelou a que assumissem o comando caso surgisse um problema. 

“Os treinadores de xadrez, os jogadores e especialmente os funcionários dos torneios devem todos dar o exemplo para que todos se sintam bem-vindos, independentemente de quem sejam. O xadrez é um jogo para todos”, diz.

“Espero que, através da minha presença online, possa contribuir para mostrar que as mulheres têm voz no xadrez e possa inspirar mais mulheres a jogar.”

“Sei que os torneios de xadrez não terão este aspeto para sempre, só precisamos de conseguir que mais mulheres joguem.”

“Quanto mais falarmos sobre como algumas mulheres são maltratadas nos torneios, e quanto mais ouvirmos as histórias de todos, mais capazes seremos de fazer uma mudança.”

A CNN pediu um comentário à FIDE, mas não recebeu uma resposta a tempo da publicação deste artigo.

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