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Economista e Professor Universitário

Suspensão do acordo de exportação de cereais pelo Mar Negro: já se antecipava o desfecho. Vladimir Putin não dá ponto sem nó

19 jul 2023, 17:40

O FMI prevê que a economia mundial cresça abaixo dos 3% este ano. Menos do que em 2022. Um quadro destes amplia ainda mais o risco de fome e pobreza mundial.

“Se a ofensiva russa à Ucrânia continuar, o problema de acesso a alimentos pode dar lugar à escassez de alimentos”, tem vindo a avisar repetidamente o secretário-geral da ONU, António Guterres.

A ONU adverte que o número de pessoas com fome pode aumentar em aproximadamente 50 milhões com o conflito na Ucrânia. Atualmente, a insuficiência alimentar atinge cerca de 275 milhões de pessoas, duas vezes o registo do período pré pandemia. O continente africano continuará a ser o mais afetado.

África precisa da Rússia e da Ucrânia para mais de 40% das importações de trigo. Países como a Somália e o Benim dependem a 100% de russos e ucranianos para importar trigo.

Ainda antes do desbloqueio dos cereais retidos no porto de Odessa, a situação era tão dramática em África que os EUA sentiram necessidade de alertar alguns países africanos contra a compra de cereais alegadamente roubados pela Rússia à Ucrânia. É o New York Times que o refere. Tudo isto foi acontecendo à medida que alguns decisores políticos se aproximavam aflitivamente da Rússia para tentar diminuir os preços dos alimentos e mitigar a fome.

O ministro italiano dos negócios estrangeiros chegou a avisar que o bloqueio da Rússia aos portos ucranianos poderia originar a “morte de milhões de pessoas”, sobretudo em países em desenvolvimento.

O desbloqueio acabou por ocorrer, em julho de 2022. Desde então, foram exportadas algumas dezenas de milhões de toneladas de cereais pelo Mar Negro.

Entretanto, em março de 2023, o presidente da Turquia veio anunciar a renovação por 120 dias do acordo que viabilizava a exportação de cereais a partir dos portos ucranianos.

Recorda-se que Erdogan é um intermediário especialmente ímpar. Estabeleceu uma relação comercial com a Rússia que tem permitido ganhos para ambas as partes. O porto de Istambul, na Turquia, tornou-se um ponto de entrada para muitos bens destinados à Rússia. Dali, as mercadorias são enviadas para o porto russo de Novorossiysk. É também por isto que Vladimir Putin tem vindo a “ceder” ao seu homólogo turco.

Ainda assim, a boa vontade russa despertou sempre alguma desconfiança. Há muito que se antecipava o atual desfecho, pois os russos não dão ponto sem nó. A suspeita em relação à benevolência russa foi confirmada há uns meses. Na altura, o ministro dos negócios estrangeiros da Rússia veio avisar que, caso o Ocidente mantivesse "alguns dos obstáculos" aos cereais e fertilizantes russos, Moscovo poderia vir a enjeitar o acordo de exportação através do Mar Negro. Os “obstáculos” a que Sergey Lavrov se refere correspondem a sanções impostas pelo ocidente.

Assim, sem outra alternativa e ao lado de Lavrov, o seu homólogo turco acabou por referir que atender ao ensejo da Rússia seria incontornável para evitar o agravamento da crise mundial de alimentos.

É certo que as exportações russas de alimentos e fertilizantes não estão sob sanções muito restritivas. Mesmo assim, o Kremlin tem vindo a referir que limitações a pagamentos, logística e seguros não deixam de ser entraves significativos.

A Rússia e a Ucrânia são tradicionalmente os principais players mundiais nos mercados de trigo, milho, cevada, semente de girassol e óleo de girassol. Os russos também são preponderantes no mercado dos fertilizantes. Ceder às pretensões de Moscovo é praticamente uma obrigação. E o Kremlin tem essa noção.

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