Violência doméstica: do insulto ao empurrão vai um grito de distância

25 nov 2021, 07:00
Mulher

Como se identifica a violência psicológica? Como se prova? Como se mostra que ela existe? Relatos de quem passou por relações de violência psicológica e agressões físicas

“O que eu estava a passar, para mim, era normal.” O desabafo de “Ana” (nome fictício) resume o estado de espírito da jovem de 22 anos cerca de seis anos depois do fim do namoro em que foi vítima de violência.

Esta quinta-feira, assinala-se o Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra as Mulheres consagrado pela ONU em 1999. Segundo a ONU Mulheres, uma em cada três mulheres em todo o mundo passam por situações de violência física ou sexual ao longo da sua vida.

Dados atuais da PSP e da GNR, aos quais a CNN Portugal teve acesso, mostram que, apesar de terem vindo a diminuir o números de casos de violência doméstica, este crime continua a ser o que mais vitima as mulheres em Portugal.

Os mesmos dados revelam que tem existido um aumento do número de detidos por violência doméstica e também um aumento do número de condenações. Entre 1 de janeiro e 31 de outubro, a PSP registou 11 449 participações deste tipo de crime. Por sua vez, até ao final de setembro, a GNR tinha registado 9.597 crimes de violência doméstica.

Desde que, há 20 anos, o crime de violência doméstica passou a ser público a PSP reportou mais de 215 mil casos. A violência conjugal foi introduzida no Código Penal em 1982, com a criminalização das agressões físicas entre o casal. Desde então, várias alterações foram feitas, designadamente a introdução dos maus tratos psíquicos, em 1995, e a tipificação do crime de violência doméstica como crime público, em 2000, a par da possibilidade de a autoridade judiciária sujeitar a pessoa suspeita à proibição de contacto com a vítima e/ou de afastamento da residência.

Ciclo vicioso

Ao telefone, “Ana” conta à CNN Portugal que a violência foi sobretudo psicológica e sexual, mas também houve violência física.

“A relação começou quando eu tinha 14, 15 anos. No princípio era tudo normal, não havia nada que fosse uma bandeira vermelha que me mostrasse que as coisas iam correr mal”.

Passado alguns meses, tudo mudou. Com a primeira relação sexual, veio também a violência psicológica. “Eram ‘coisas pequenas’. Eu dizia que estava em casa e ele insistia que eu estava na rua e que eu era mentirosa. Depois começou a chamar-me nomes”. O controlo foi escalando. O ex-namorado de “Ana” passou a controlar o que esta vestia, as pessoas com quem falava, isolando-a dos amigos – primeiro os masculinos, com quem a acusava de o trair, e depois as amigas – até que passou para a coerção sexual.

“Nem reparei, só reparei que tinha sido violência sexual muitos anos depois. Ele fazia coerção. Dizia-me: tu não tens relações comigo porque me andas a trair ou porque tu não me amas verdadeiramente. Eu sentia-me sempre culpada e acabava sempre por fazer, mesmo que não quisesse. No período a seguir a termos a relação sexual, ficava sempre tudo bem. Já não me insultava. Mas depois voltava tudo ao mesmo, até acontecer a mesma coisa”.

Um ciclo vicioso que durou cerca de três anos e durante o qual “Ana” nunca pediu ajuda.

“Andei muitos anos como se não fosse nada”

A violência nas relações de namoro pode ser física, psicológica ou emocional, social, sexual e económica, e injuriar, ameaçar, ofender, agredir, humilhar, perseguir ou devassar a intimidade são formas dessa violência.

Dados da PSP divulgados no dia dos namorados revelavam que cerca de 85% dos relatos de violência apresentados àquela força de segurança envolviam violência psicológica.

“Ana” confessa que andou muitos anos sem perceber tinha vivido um destes casos mesmo que, durante o namoro, as amigas a tenham avisado que os comportamentos do namorado não eram corretos.  “As minhas amigas sabiam o mínimo, porque eu também não queria contar muito o que se passava, e estavam sempre a dizer que eu tinha de terminar com ele, porque senão as coisas iam ficar piores e que não ia aguentar”.

Um estudo da UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta a quase cinco mil jovens, divulgado em fevereiro, concluiu que quase sete em cada dez jovens inquiridos acha legítimo o controlo ou a perseguição na relação de namoro e quase 60% admitiu já ter sido vítima de comportamentos violentos.

“O que eu estava a passar, para mim, era uma coisa normal. Não achei que fosse mesmo violência. E quando a relação terminou, andei muitos anos como se não fosse nada. Porque fui-me esquecendo que as coisas tinham acontecido. Quando comecei a tomar mais consciência das coisas da violência no namoro e tudo o que envolvia, aos poucos comecei-me a lembrar: isto aconteceu-me, isto também. E foi assim que fui recuperando memórias que tinha perdido e tomando consciência mesmo da magnitude do que se tinha passado”.

A saída da relação foi feita por mensagem porque a jovem "não tinha coragem de terminar com ele cara a cara porque tinha medo das consequências. Então, a maneira que eu arranjei de terminar foi por mensagens. Ele não aceitou bem o fim da relação, estava sempre a mandar mensagens, sempre a ligar, mas depois parou".

"Não és nada sem mim"

"Eu desvalorizei a situação. Não houve qualquer pedido de desculpa. Mas a partir daqui foi sempre a subir". Mafalda Gomes tem 36 anos, é ativista, e no relato que faz à CNN Portugal conta a relação que viveu há mais de dez anos, com outra mulher. 

"O nosso início de relação não foi logo romântico. Houve um ponto em que a relação começou a evoluir, e houve uma fase de enamoramento. O início disto foi bastante maduro e pacífico. Iniciámos uma relação e, a partir daí, as coisas mudaram completamente. Começou por pequenas coisas, mas houve uma escalação de micro humilhações – como lavar a louça e ela dizer que a louça não estava bem lavada – e estas micro humilhações foram escalando. O primeiro sinal agressivo foi quando, numa discussão, deu-me um estalo". Mafalda confessa que, na altura, desvalorizou o estalo e que, por parte da então companheira, não houve qualquer pedido de desculpa. "Mas a partir daqui foi sempre a subir."

Controlo emocional total

A relação de dois anos foi passada em sobressalto e, rapidamente, Mafalda passou a ter a vida controlada pela companheira, isolando-se da família e dos amigos. Apesar de não viverem juntas, a ativista rapidamente sentiu que tinha de estar "24 sobre 24 horas" com a namorada para "não ter problemas".

"A partir da estalada a situação escalou bastante, passou a haver um controlo agressivo sobre com quem eu falava ou me dava. Houve um trabalho de isolamento, ou seja, começou a criar conflitos com todos os amigos que me eram próximos, chegou a criar conflitos com a minha família. Com o tempo, o meu único circulo social era esta pessoa. (...) A nível de agressões houve muita coisa. Houve murros, pontapés, há uma situação muito particular em que ela me asfixiou. Foi a primeira vez que eu percebi que corria risco de vida. Houve um momento em que ela parou a agressão e foi-se fechar num quarto e não queria falar comigo, não queria dizer nada, e eu fiquei em choque e a digerir o que tinha acontecido. Passado uns minutos, tentei falar com ela, perceber o que tinha acontecido, para processar conjuntamente, e em vez de me dizer “não quero falar contigo”, saiu do quarto e espancou-me. Foi pontapés, foi murros, atirou-me contra uma porta da casa dela, que rachou."

Apesar da violência de que foi alvo, Mafalda não conseguiu pedir ajuda no momento porque foi trancada num sexto andar sem telemóvel e sem conseguir comunicar com ninguém. Nessa altura, segundo conta à CNN Portugal, o controlo emocional já era total. "Já estava afastada dos meus contactos sociais, já tinha muito medo dela, já tinha ameaças diretas – ‘se contas a alguém o que está a acontecer vai haver consequências’. Isto foi há muitos anos, não se falava muito desta questão, muito menos em casais do mesmo sexo. Tinha apreensão de ir as autoridades, não sentia confiança, e tinha muito receio desta armadilha psicológica".

A situação arrastou-se e a luz ao fundo do túnel tardava em aparecer. Até que num dia de verão de muito calor, Mafalda foi tomar café com uma amiga e levou um lenço à volta do pescoço para esconder as marcas que tinha no pescoço. "E lembro-me perfeitamente que quando me sentei na mesa com essa minha amiga ela perguntou-me diretamente se a minha namorada me batia. E eu acho que esta questão, ser outra pessoa a perguntar, em voz alta de forma tão direta, uma coisa que se falava muito pouco, não havia uma estrutura de apoio assim muito forte para pessoas LGBTI neste aspeto, fez-me confrontar com a realidade". Com a ajuda dessa amiga, Mafalda conseguiu estipular um "plano de fuga moroso" para sair da relação.  

Terminou o namoro num espaço público para não correr risco de novas agressões. "Naquele momento, ela aceitou, mas eu reconheci os sinais de que iam existir consequências daquela ação. Nas semanas a seguir, muita pressão, por mensagens, por telefonemas, por ameaças. Ao fim dos tempos perdeu o interesse e começa a interessar-se por outra pessoa."

Mafalda tentou alertar a nova namorada da ex-companheira, que não aceitou os avisos. Mas a história repetiu-se. "Uns anos depois, esta pessoa contacta-me e diz-me que quer avançar com uma queixa crime. Pediu-me para testemunhar. Aceitei e foi um processo igualmente penoso. Houve a parte judicial e houve a parte da denúncia às associações LGBT em que trabalhávamos. A nível de tribunal o processo acabou de ser arquivado e tivemos um contra processo por difamação. Ainda hoje há momentos em que a agressora tenta reverter a situação e dizer que ela é que foi a vítima. Isto é uma coisa que, psicologicamente, é quase como se não tivesse fim". 

A violência doméstica levou 19 pessoas à morte nos primeiros nove meses do ano. Mais de 31 mil tiveram de ser assistidas e outras duas mil acabaram por ser acolhidas na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica. Até ao final do terceiro trimestre deste ano, havia 1.140 pessoas presas pelo crime de violência doméstica, entre 905 a cumprir pena de prisão efetiva e outras 235 em situação de prisão preventiva.

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