Médico de Unidade de Saúde Familiar relata as condições degradadas no local de trabalho. "Sou recém-especialista, mas já estou cansado"
Desde o início das minhas funções no SNS que tenho visto as condições de trabalho a piorar, a motivação dos profissionais a diminuir e o burnout a aumentar. Depois veio a Covid que só salientou mais as deficiências do SNS que só foram ultrapassadas com o trabalho extra e resiliente de todos os profissionais de saúde. E o que recebemos em troca? Há muito tempo que esperamos uma reforma do SNS e que o nosso trabalho seja reconhecido, mas depois de meses em negociações, nada aconteceu.
Uma decisão unilateral que está a empurrar os profissionais para fora do SNS. Em relação as novas medidas do Ministério da Saúde para os cuidados de saúde primário, ninguém está satisfeito.
Vamos ter de aumentar a nossa lista de utentes, pelo que os utentes vão ter de esperar (ainda mais) por uma consulta. Vai ser impossível cumprir os indicadores ou então vamos ter de aumentar a nossa carga de horário (sem ser pagos por isso) para ver os utentes de uma forma mais humana e com menos espera.
O aumento de ordenado base proposto para dedicação plena é de apenas 300 euros brutos (ao contrário dos 900 ou 1500 euros que anunciaram, basta aceder às tabelas divulgadas) mas no final vamos receber menos que agora porque não vamos conseguir cumprir os indicadores e portanto não recebemos os incentivos.
Há muito utentes sem Médico de Família, é um fato, e tem de ser feito algo para contrariar esta tendência, mas estas medidas não o vão fazer. Temos médicos suficientes, não temos é capacidade de reter os médicos no setor público. Vai haver mais utentes com Médico de Família, mas com muito menos acesso, mais utentes insatisfeitos e que vão reclamar, o que vai aumentar a sobrecarga dos médicos de família. Muitos dos meus colegas, se isto acontecer, vão sair do SNS e vão emigrar.
Já ninguém tem capacidade para trabalhar nestas condições, grande partes dos edifícios nem sequer tem condições físicas e materiais. No meu centro, não existe ar condicionado, os aquecedores são os nossos, as impressoras estão sempre a avariar. Neste momento, não temos papel da marquesa e muitas vezes nem papel das mãos. No inverno, chove lá dentro. Portanto as pessoas estão a ficar cansadas saturadas e desmotivadas; não só os médicos mas todos os profissionais de saúde.
Estamos no século XXI e estamos na Europa, qualquer especialidade médica é automaticamente reconhecida em qualquer estado membro da UE, portanto é muito fácil emigrar. Eu próprio já comecei o processo para trabalhar na Irlanda.
Sou neste momento finalista dos Prémios do SNS (SNS Awards) na categoria de Jovem Talento, por todas as coisas que criei e fiz pelo SNS, acredito fielmente no SNS e não quero trabalhar no privado, porque é no sistema pública onde mais gosto de trabalhar. Mas se o sistema público de Portugal não me deixa fazer aquilo que mais gosto, de forma saudável e sustentável, eu vou procurar noutro país. Trabalhei bastante para chegar onde cheguei e abdiquei de muita coisa; sou recém especialista mas já estou cansado e sem perspectivas de futuro em Portugal. Precisamos de mais, de sentir que somos reconhecido e apoio do Estado para ajudarmos os nossos utentes.