opinião
Cirurgião do serviço de Cirurgia Geral do Hospital de Santarém

"São centenas de horas penosas e extraordinárias arrancadas a filhos e família, mas necessárias para tratar todos os doentes"

17 out 2023, 12:38

Médico de 52 anos relata o dia a dia num dos hospitais que muitas vezes não tem clínicos suficientes para as escalas das urgências

Ser ou não ser. Nunca foi a questão!

Com quase 30 anos de dedicação a uma profissão e tendo já feito um pouco de tudo, desde diretor de departamento a Diretor Clínico, continuam a ser os doentes e familiares que, com os seus dramas, queixas e carências justificam a caminhada diária para o Hospital de Santarém.

A sensação do fresco da manhã augura sempre que na volta trarei mais alguns doentes tratados e familiares aliviados e, por isso, apesar de toda a burocracia que me irá soterrar, bebo a bica matinal com alguma ansiedade na esperança de qual será o primeiro desafio.

O ritual é sempre o mesmo. Café no bar do hospital, despedir da cara-metade (enfermeira na cirurgia de ambulatório) com um “até já” e subir 5 pisos pela escada (há que proteger as coronárias) até ao Serviço de Cirurgia.

O primeiro embate é com os colegas de profissão. Uns mais novos que outros. Uns mais desiludidos. Outros ainda demasiado inocentes para perceberem tudo o que se passa. A reunião de serviço começa sempre com queixumes, cansaço, e promessas repetidas sem fim de “não fico cá nem mais um mês” numa tentativa de sonhar com alternativas. Acaba sempre, como se fôssemos todos irmãos de pais diferentes, unidos na discussão em volta daqueles para quem tantas noites e fins-de-semana perdemos a estudar. Os “nossos” doentes.

Apesar da degradação das instalações, do ar soturno do hall de entrada, os sorrisos das duas administrativas (Ana e Manuela) abrem as portas aos doentes que, internados há alguns dias, aguardam as palavras sábias do seu cirurgião na esperança de que seja naquele dia que ouvirão “Está em condições de ter alta”. Sim, porque dependem da decisão feita de anos de estudo e experiência dos enfermeiros e médicos do Serviço para sobreviverem aquela maleita que os apanhou desprevenidos e os transformou novamente em seres frágeis e totalmente dependentes de alguém que nem conheciam até à data do internamento.

Num misto de medo, admiração e ansiedade, entre as queixas dos 40º graus da enfermaria (porque não há ar condicionado no hospital duma terra que frequentemente ultrapassa essa temperatura), ou da qualidade da comida que “nem aos meus cães dava”, há sempre espaço para um agradecimento à enfermeira que cuidou durante toda a noite ou ao cirurgião que lhe salvou a vida numa cirurgia urgente.

De doente em doente, apaziguando as dores de uns, aliviando o medo de outros, dando esperanças, que muitas vezes sabemos não existirem, a equipa de cirurgiões percorre os 60 doentes da enfermaria (quando não mais por sobrelotação) fazendo o balanço final, onde, apesar de demasiados para os profissionais existentes, nunca são números de cama ou “avozinho”. Tratar os outros com dignidade é a única garantia de alimentarmos a nossa!

Sempre que começamos a acreditar que este será um dia diferente, porque teremos tempo para falar com doentes e familiares, para preparar os diagnósticos e acertar tratamentos, chega o primeiro telefonema. “Chegada de acidente com múltiplas vítimas”. Seguido de outros. “Doente já está anestesiado no bloco”. “Chamada à consulta externa. Há uma doente que não se sente bem”. E a paz imaginada por breves minutos transforma-se no rebuliço anunciado e que alimentará o dia de trabalho.

Quando, finalmente, conseguimos tratar de todos, apercebemo-nos que, mais uma vez, passou da hora de ir buscar os filhos à escola ou que, quando chegarmos a casa, entre beijos de amuo já só sobra um “Boa noite, pai”. São centenas de horas penosas e extraordinárias arrancadas a filhos e família, mas necessárias para conseguirmos tratar todos os doentes que dependem de nós. Para acudirmos uns, descuramos os nossos.

E, no dia seguinte, voltamos restaurados para nova incursão. Deparamo-nos com o Sr. Vítor a beber o seu café - “Bom dia Sr.º Vítor, hoje está com melhor cara. Obrigado Doutor, mas ainda me sinto muito fraco”. O mesmo Sr. Vítor que sabemos não ter recuperação possível, pois o cancro já se espalhou. Sobra-nos como arma terapêutica os carinhos, sorrisos e esperança. Esperança que no dia de amanhã tudo esteja melhor.

E, por isso, independentemente de todas as agruras e maus-tratos diários sofridos, ser ou não ser profissional de saúde nunca foi uma questão!

Colunistas

Mais Colunistas

Patrocinados