A União Europeia ainda está unida? Ou começa a fragmentar-se onde faltam respostas? Ursula von der Leyen protagoniza esta quarta-feira o último discurso sobre o Estado da União do seu mandato. A olhar para o futuro e a fazer o balanço do trabalho feito. Mas irá a presidente da Comissão Europeia candidatar-se a mais cinco anos no cargo, depois das europeias de 2024? O cenário não tem reunido consenso nos corredores comunitários. Entrou no cargo a definir a necessidade de uma transição verde e digital, mas a pandemia de covid-19 e a guerra na Ucrânia acabaram por exigir novas prioridades. Estes são os desafios cumpridos e por cumprir desta presidência
Pandemia de covid-19: unidos até no mal coletivo?
A pandemia mudou verdadeiramente o jogo europeu e as suas prioridades. Inevitavelmente, foi o tema do discurso do Estado da União de 2020. Uma crise sem precedentes que testou a saúde da própria União Europeia. Afinal, era preciso garantir uma resposta sanitária e de recuperação económica. Ursula von der Leyen assumiu protagonismo nesta altura, afirmando-se como uma figura de decisões robustas, protagonista da própria comunicação e ideias.
Mas, se a decisão de uma compra conjunta de vacinas, não levou a fragmentações entre os Estados-membros, o mesmo não se pode dizer do mecanismo de apoio para a recuperação das economias. Maratonas e maratonas de negociação, várias visões sobre os seus contornos, que acabaram ultrapassadas também pela intervenção da ex-chanceler alemã Angela Merkel.
Com os atrasos, Von der Leyen, que assumiu em si própria a negociação do fornecimento das vacinas com as farmacêuticas, haveria de ser acusada de falta de transparência.
“Em diversos momentos e situações, Von der Leyen tem mostrado estar ao serviço das principais potências que comandam a União Europeia e dos respetivos grupos económicos. Seja, por exemplo, no processo de financiamento, produção e compra de vacinas, onde muitos aspetos dos contratos então estabelecidos continuam sem ser divulgados, contrariando as proclamações de abertura e transparência”, recorda o ex-eurodeputado do PCP João Ferreira à CNN Portugal.
Mas, com o passar do tempo, e com o sucesso nas taxas de vacinação nos 27 países, o seu contributo haveria também de ser elogiado. O “background” em Medicina é várias vezes referido como determinante para este processo.
É precisamente essa fase do mandato que o eurodeputado do PSD José Manuel Fernandes destaca: “O momento mais relevante foi a resposta à pandemia. A União Europeia respondeu de forma solidária e inédita. O financiamento daa vacinas e a sua compra em conjunto foi um momento crucial. Caso cada Estado-membro tivesse avançado individualmente para a compra das vacinas teríamos tido uma ‘guerra’ comercial onde os países mais ricos teriam acesso privilegiado.”
Também o centrista Nuno Melo elogia as múltiplas políticas de “sucesso” de Von der Leyen, mas releva a resposta à covid-19: “Sob sua liderança, a Comissão Europeia foi capaz de definir um modelo de desenvolvimento e aquisição de vacinas que ficaram acessíveis ao mesmo tempo a todos os povos europeus, independentemente da riqueza dos países e a preços mais baixos, com margem também para a ajuda a países terceiros, juntamente com ajudas ao reforço dos sistemas de saúde nacionais, a certificação digital para facilitar a circulação de pessoas e os instrumentos financeiros extraordinários destinados a ajudarem os países a recuperarem mais rapidamente do impacto socioeconómico da pandemia.”
Transição ecológica e digital: o verde pode esperar?
Quando assumiu funções, Ursula von der Leyen tinha na transição verde e digital a sua grande prioridade. Entretanto, impôs-se a realidade da pandemia e da guerra na Ucrânia, mas o intuito não esmoreceu. Pelo contrário, tornou-se mais notória a necessidade de alternativas energéticas mais ecológicas.
Bruxelas tem-se congratulado com os passos dados. “Em 2023, menos de 10% das nossas importações de gás provêm de gasodutos russos” ou “em 2022, foi produzida mais eletricidade a partir de energia eólica e solar do que a partir de gás”.
No discurso do Estado da União em 2021, a presidente da Comissão Europeia admitia a necessidade de taxar os lucros extraordinários das empresas de energia. Mas, num mundo onde as alterações climáticas se tornaram inegáveis – com fenómenos extremos como incêndios, ondas de calor ou cheias a tornarem-se cada vez mais frequentes –, todos os passos parecem pequenos. E por isso, também nesta matéria, Von der Leyen não escapa a críticas.
Uma delas vem de José Gusmão, eurodeputado do Bloco de Esquerda. “O grande tema que percorreu todo este mandato foi a energia. Von der Leyen prometeu uma completa transformação na política europeia para a energia, desde o mercado marginalista até à transição energética. O balanço do mandato é um rotundo falhanço. No mercado marginalista, ficou tudo na mesma. Já as políticas para a transição energética ficaram muito aquém do necessário e estão em recuo.”
Uma mudança verde implica também a preocupação com o bem-estar animal. Bruxelas terá deixado cair a revisão deste tema, alegadamente por receios de aumento do preço dos alimentos. Algo que, para o eurodeputado independente Francisco Guerreiro, só prova o “conservadorismo” de Von der Leyen. “Cede à pressão do lobby agrícola industrial em vez de proteger o ambiente e o futuro da União Europeia”, diz à CNN Portugal.
Uma economia neutra em carbono até 2050 era o objetivo. A que se juntava, no campo digital, um reforço da cibersegurança, de modo a proteger infraestruturas críticas. Mas, em termos mediáticos, Bruxelas tem-se consolidado mais na imagem de perseguição às grandes tecnológicas, desmontando os seus esquemas fiscais e o seu monopólio no que respeita ao acesso dos cidadãos a um bem essencial como a Internet.
Guerra na Ucrânia: e o conflito de um dia a dia mais caro
Desde a primeira hora, Ursula Von der Leyen assumiu a sua solidariedade para com a Ucrânia, aproximando o país da sua integração no bloco europeu. Foi várias vezes de comboio até território ucraniano para observar com os próprios olhos a destruição material e humana. E de lá veio sempre com uma certeza: é preciso estar ao lado dos ucranianos.
E isso implica não só a disponibilização de material de guerra, o reforço da defesa comunitária, a definição de sanções à Rússia, a disponibilização de verbas que permitam a resposta ucraniana em termos humanitários e militares, mas também o acolhimento europeu de todos os refugiados deste conflito. O pacote europeu ultrapassa já os 20 mil milhões de euros.
Mas o verdadeiro desafio de Ursula von der Leyen (e de quem venha a substituí-la) é mais profundo: como explicar aos cidadãos dos Estados-membros a forma como também eles estão a pagar por este conflito. Na conta da luz, do supermercado, no depósito do carro que custa mais a encher, no salário que não estica. E, a cada dia, instauram-se os receios de um novo abrandamento económico generalizado.
“As regras orçamentais que possam vir a existir não podem ser rígidas e pôr em causa o investimento social, ou impedir que se apoiem os cidadãos e as empresas no meio desta grande crise de custo de vida que temos vindo a enfrentar”, afirma Pedro Marques, eurodeputado do PS.
“Temos vindo a denunciar políticas de profunda degradação do poder de compra, do aumento do custo de vida, a degradação de serviços públicos, o aumento das taxas de juro. É bom recordar que, em discursos anteriores de Von der Leyen, já vinham muitos destes problemas. E que têm ficado fora do escopo, sem qualquer pressão na intervenção de Von der Leyen para respostas. Não tem havido uma união no sentido de as políticas promovidas pela União Europeia responderem aos problemas que referi, como o poder de compra ou a precariedade. Tem havido uma união no sentido de garantir os interesses dos grandes grupos económico”, reage o eurodeputado comunista João Pimenta Lopes.
A situação na Ucrânia veio também revelar dois pesos e duas medidas noutra que tem sido uma dor de cabeça para as políticas europeias: o tema das migrações. Há Estados-membros a defender que é preciso fechar fronteiras aos refugiados de África e Médio Oriente. Os mesmos Estados-membros que, sem piscarem os olhos, abriram as portas aos refugiados ucranianos.
Igualdade: o calcanhar de si mesma?
A bandeira da igualdade sempre fez parte do percurso de Von der Leyen – e continua como uma das prioridades para a intervenção futura. Mas a política acabou por ser, ela própria, a prova de que ainda há muito por fazer.
O caso ficou conhecido como Sofagate, quando, num encontro, o presidente do Conselho Europeu e o presidente turco Recep Tayyip Erdogan se instalaram nas duas únicas cadeiras que existiam. Von der Leyen foi encaminhada para um sofá lateral, distante dos dois homens.
Desde então, a relação entre Von der Leyen e Charles Michel azedou ainda mais. Fala-se mesmo de uma batalha de egos, que pouco contribui para uma ideia de união. Cada um tem procurado assumir o protagonismo, às vezes em coisas tão simples como ser o primeiro a publicar sobre determinado tema nas redes sociais.
Uma coisa é certa: à presidente da Comissão Europeia não têm faltado críticas sobre a falta de cumprimento das regras do Estado de Direito pela Hungria e Polónia, com acusações de que não tem deixado ir mais longe os comissários com esta pasta. Acusações que ajudou a contrariar, com a decisão de bloquear o acesso de Budapeste a mais de seis mil milhões de euros.
Futuro: alargamento e reforma?
O debate tem-se instalado: qual será o futuro da União Europeia, em especial quando têm vindo a ganhar destaque as forças de extrema-direita que descartam o projeto europeu? Há múltiplos apelos a uma reforma institucional desta aliança, para um modelo mais protecionista, que permita também uma participação mais sustentável dos respetivos membros, num contexto de envelhecimento e perda de recursos.
Também o alargamento traz, em si, múltiplas questões: pode a União ficar rodeada por Estados autoritários e sob influência de Moscovo? Que padrões devem ser exigidos a países como Ucrânia, Moldávia ou Geórgia? Como lidar com os desejos de vários países de restabelecer as suas próprias fronteiras, saindo da União, como o Reino Unido? E como garantir a influência comunitária perante a ascensão de outras alianças como o BRICS?
Von der Leyen poderá não responder, diretamente, a estas questões no discurso desta quarta-feira. Mas certamente dará pistas sobre que projeto europeu se deseja para o futuro, esteja ela ou não à frente dele.
Segunda volta: sim ou não?
Em resumo, o primeiro mandato de Von der Leyen foi marcado por tentativas de equilíbrio entre vontades opostas. E, de uma forma ou de outra, tem conseguido deixar a sua própria marca para os livros de História. Afinal, esta alemã é mãe de sete filhos e saberá bem como conciliar vontades tão distintas.
Os relatos vindos de Bruxelas e Estugarda estão longe da unanimidade sobre a ida a uma segunda volta. Até porque a alemã acabaria esta presidência já com 66 anos, uma idade onde já se começa a questionar se haverá a energia necessária para mais cinco anos de um trabalho tão exigente.
Desta vez, não teria o apoio tão demarcado do país natal, uma vez que Olaf Scholz é crítico do seu alinhamento socialista, ao contrário de Angela Merkel, vista como uma mentora da presidente da Comissão Europeia.
A Von der Leyen ninguém lhe tira este feito: apesar da contestação na nomeação, foi a primeira mulher a liderar a Comissão Europeia. E a primeira a viver num quarto mesmo ao lado do escritório que tem no edifício principal da Comissão Europeia. Tudo para não desperdiçar tempo. O tempo é precioso.