Inicialmente visto como um populista novato que Putin facilmente dominaria, Volodymyr Zelensky está agora no centro de uma guerra recusando rendição. Quem é afinal o Presidente que lidera a resistência a Vladimir Putin?
Quando Volodymyr Zelensky obteve uma vitória retumbante e foi eleito Presidente da Ucrânia em 2019, a comunidade internacional não o levou muito a sério. Afinal, era um ex-comediante, ator famoso que poucos anos antes dava espetáculos na televisão tocando piano com o pénis durante cinco minutos. Vinha de fora do sistema e afirmava-se contra a elite liderada por Poroshenko, prometendo retirar a imunidade a deputados e juízes, conduzir investigações fiscais e “drenar o pântano” da oligarquia do seu país.
Era um populista.
Hoje é um herói.
À hora em que escrevemos este artigo, Zelensky lidera a resistência ucraniana a partir de Kiev, com muito menos meios do que o exército russo que a cerca. Reúne o exército, distribui armas pelo povo e recusa abandonar o país, mesmo quando os Estados Unidos lhe ofereceram fuga. “A luta é aqui”, afirmou, mesmo dizendo saber que será assassinado, ele e a sua família, se Putin assestar o poder em Kiev. Não se rende, publica vídeos nas redes sociais e nas ruas de Kiev para desmentir contrainformação russa e não desiste de convocar as forças ocidentais, que prestam solidariedade mas deixaram a Ucrânia por sua conta.
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Mas quem é afinal Volodymyr Zelensky? É o homem que a comunidade internacional desprezou e agora elogia. Mais do que isso: o Presidente que, quando recém-eleito, proclamou ao seu povo “nunca vos desiludirei” está agora no centro de uma guerra desigual contra a invasora Rússia, defendendo o seu país. E o seu povo.
ATO 1: A COMÉDIA
Filho de pais judeus, Zelensky nasceu a 25 de janeiro de 1978 em Kryvyi Rih, no centro da Ucrânia. Passou quatro anos da sua infância em Erdenet, na Mongólia, até regressar à terra natal, onde aprendeu a russo - como muitas pessoas em Dnipro - e se tornou fluente em ucraniano e em inglês. Tinha 11 anos quando o Muro de Berlim caiu, como uma peça de dominó que levaria ao colapso da União Soviética.
Antes de se formar em 2000 em Direito pela Universidade Nacional de Economia de Kiev, já representava. Em 1997 apareceu nas finais da competição KVN - Klub vesyólykh i nakhódchivykh ("Clube das Pessoas Engraçadas e Inventivas"), transmitida na televisão, na qual foi presença regular desde 2003 ao lado do seu grupo de comédia Kvartal 95. Zelensky tornou-se diretor artístico da Studio Kvartal 95, um dos melhores estúdios de entretenimento da Ucrânia, e ascendeu até ser nomeado produtor-geral do canal de televisão ucraniano Inter TV. Pelo meio foi protagonista em longas-metragens como “Rzhevskiy Versus Napoleon” ou na comédia romântica “8 First Dates” ("8 Primeiros Encontros").
Depois começou o ativismo. E a política.
Deixou o canal e, após a união entre a produção da Kvartal 95 e grupo de media 1+1, em 2012, Zelensky começou a assumir um papel mais ativo na sociedade ucraniana. Em 2014, o governo do presidente Viktor Yanukovych é derrubado, depois de inúmeros protestos, dando lugar ao bilionário Petro Poroshenko, que liderou o país numa fase de contestação popular contra a corrupção e de insurgência no leste da Ucrânia apoiada pela Rússia.
É então que Zelensky ensaia a presidência no grande ecrã: na série "Servo do Povo", em 2015, encarnou o papel de governante do seu país. Era quase premonitório: a série conta a história de um professor do ensino secundário eleito Presidente da Ucrânia depois de se tornar viral com um vídeo divulgado por um aluno em que enxovalha o governo e o acusa de corrupção. Foi o motor de arranque para a criação do partido político Servo do Povo. Mas isso já era a vida real.
Ato 2: a Farsa (tornada realidade)
Zelensky surpreende tudo e todos e anuncia a decisão de se candidatar à Presidência da Ucrânia em 2018, antes do discurso de Ano Novo de Poroshenko, a 31 de dezembro. Lidera uma campanha pouco convencional, com discursos curtos e vídeos de comédia partilhados no Youtube e no Instagram, marcados por reprimendas à corrupção, em detrimento de declarações detalhadas e conferências de imprensa. Chega a faltar ao último debate com Poroshenko.
Foi entretanto atacado com suspeitas ainda hoje não totalmente esclarecidas. Os bastidores entram em cena: o multimilionário e proprietário da 1+1, Ihor Kolomoisky, que regressará do exílio em Tel Aviv três dias antes da tomada de posse de Zelensky, é visto como seu patrono. Pior: Zelensky é acusado pelos opositores de ser o seu fantoche. Kolomoisky tinha estado em conflitos com o governo anterior em polémicas como a da nacionalização do PrivateBank pelo anterior governo.
Zelensky é eleito a 21 de abril como Presidente da Ucrânia, com quase três quartos dos votos (73% na segunda volta). E é visto pela comunidade internacional não só como um novato mas como alguém sem coragem para enfrentar o Presidente da Rússia. Tanto que a imprensa controlada pelo Kremlin começou por saudar a vitória de Zelensky: Putin veria nele um político fácil de domar ou de dominar. Após a vitória de Zelensky, o então primeiro-ministro russo Dmitry Medvedev escreveu nas redes sociais que dele esperava “honestidade” e “pragmatismo” para melhorar as relações entre os dois países.
Zelensky não tinha uma agenda política clara e pouco sabia de política internacional, mas defendia um cessar-fogo na região do Donbass, nisso querendo envolver os Estados Unidos, a UE e o Reino Unido. No primeiro telefonema para Donald Trump, que está hoje desclassificado, Zelensky tratou o então Presidente dos EUA como “grande professor” com quem queria aprender muito. E queixou-se da falta de apoio efetivo de Merkel e Macron na imposição de sanções reais à Rússia.
Seriam quase três anos de governo até à invasão russa. O discurso de Zelensky passou sempre pela autonomia da Ucrânia, defendendo o fim dos conflitos nas regiões separatistas e o fortalecimento de laços com o Ocidente. Quis provocar eleições antecipadas logo no ano em que foi eleito, através da dissolução de um Parlamento onde não tinha representação parlamentar. Proclamou-se "cruzado contra os oligarcas espoliadores da Ucrânia". E chegou a negociar com a Rússia trocas de prisioneiros como modo de aproximação diplomática entre os países.
Mas esteve sempre mais virado para alianças com o Ocidente do que com a Rússia, até Vladimir Putin perceber, ou confirmar, que o ex-comediante não seria seu fantoche. Enquanto a Ucrânia se aproximava da NATO, Moscovo reforçava tropas nas fronteiras com a Ucrânia. Até que tudo irrompeu numa invasão. Como escreveu a Aljazeera, “a 24 de fevereiro, Zelensky tornou-se o Presidente mais vulnerável da Europa”.
ATO 3: TRAGÉDIA?
As forças armadas ucranianas têm muito menos arsenal e militares do que a Rússia. Aos 44 anos, Zelensky, pai de dois filhos, faz selfievideos mostrando que está em Kiev a defender o seu país para motivar o seu exército e o seu povo, disposto a pegar em armas. Usa o Twitter para comunicar com o mundo, como fez esta sexta-feira, apelando à Alemanha e à Hungria para terem "coragem" de aprovarem a exclusão da Rússia do sistema interbancário Swift, medida analisada pela UE em reação à invasão russa da Ucrânia. No sábado escreveu que “está na hora de encerrar, de uma vez por todas, a longa discussão e decidir sobre a adesão da Ucrânia à União Europeia”, depois de ter falado ao telefone com o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel.
No mesma manhã, depois de mais de 800 alvos militares ucranianos terem sido alegadamente atacados com mísseis de cruzeiro russos, e quando a Ucrânia já reportava 198 vítimas mortais, continuou a injetar confiança no seu povo, garantindo que quebrara o plano da Rússia no terceiro dia da invasão do seu país e pedindo aos russos que digam a Vladimir Putin para parar a guerra. "Mantivemos a nossa posição e repelimos com sucesso os ataques inimigos. Os combates continuam em muitas cidades e regiões do país mas... é o nosso exército que controla Kiev e as principais cidades ao redor da capital", disse Zelensky, num vídeo publicado no Facebook.
Ninguém parece acreditar muito na capacidade final de a Ucrânia vencer a Rússia sem ajuda externa, mas a NATO e os seus membros (incluindo os Estados Unidos e Portugal) já disseram que não entrarão diretamente na guerra. Resta a resistência militar e miliciana da Ucrânia: “Forças ucranianas travam resistência feroz”, titulava o New York Times este sábado. “Zelensky resiste em Kiev à invasão russa”, escrevia a CNN Portugal em manchete à mesma hora. A capital continuava controlada pelo seu Presidente, numa batalha travada a partir dos céus e nas ruas de Kiev, enquanto dezenas de milhares de ucranianos saiam do país com o estatuto de refugiados de guerra. A resistência ucraniana tinha feito atrasar a velocidade da invasão Rússia mas precisava de mais apoios: como Zelensky respondera aos Estados Unidos quando estes lhe ofereceram retirada, “eu preciso de munições, não de boleia”.