Desde que a guerra começou, Portugal acolheu 56 mil pessoas que fugiram da Ucrânia. Algumas já regressaram, mas a maioria, como a tatuadora Olena Kravets, a cabeleireira Anna Kurkina e a estudante Anastasiia Harbuzova, estão decididas a permanecer em terras portuguesas. A ideia de voltar ao que deixaram para trás assusta-as
“Estava em estado de choque, não sabia para onde ir. Mas tinha a certeza de uma coisa: queria ir para o mais longe possível”. Olena Kravets, cidadã ucraniana de 30 anos, estava no centro de Kiev quando a guerra começou. A ideia de ir para longe trouxe-a até Portugal. Também Anna Kurkina, que assistiu ao início da ofensiva militar em fevereiro de 2022, fugiu nessa altura para Lisboa. “Agora, era incapaz de regressar para a Ucrânia”, diz Anna que na semana passada foi visitar o seu país, e admite que “há muita gente que é corajosa o suficiente para regressar”.
Desde o início do conflito na Ucrânia o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) já atribuiu 56 mil proteções temporárias a cidadãos ucranianos e a estrangeiros que residiam naquele país, segundo dados enviados à CNN Portugal por fonte oficial do organismo. Nos últimos meses tem-se registado um elevado número de saídas de Portugal por parte de cidadãos ucranianos, uma vez que de acordo com o SEF foram registados 1.545 pedidos de cancelamento de proteções temporárias - títulos dados a ucranianos que fugiram para Portugal.
Um fenómeno que resulta da forma como está a evoluir o conflito que opõe russos e ucranianos desde o ano passado. Segundo Pavlo Sadokha, presidente da Associação dos Ucranianos em Portugal (AUP), muitos cidadãos ucranianos sentem agora que as forças ucranianas estão fortes e por isso, apesar dos bombardeamentos permanentes, consideram que “já é seguro regressar à Ucrânia”, sobretudo para zonas longe da linha da frente.
A principal razão para o regresso é “a saudade daqueles que deixaram para trás”, acrescenta Sadokha, sublinhando que há um ano que se viram obrigados a abandonar o seu país.
No entanto, apesar das saudades, a maioria dos ucranianos não se atrevem a regressar. “Se alguém me dissesse agora que tinha de mudar de país outra vez, não teria forças para tal”, conta Olena Kravets que abandonou Kiev assim que ouviu uma bomba explodir ao lado de sua casa. Despediu-se dos seus pais e apanhou o primeiro comboio de evacuação que conseguiu. Depois de vários autocarros conseguiu chegar a Warszawa, na Polônia. Foi aí que apanhou um autocarro para Portugal com a sua filha Luna, de 5 anos. “Não sabia nada acerca de Portugal, mas era o país mais distante que podia imaginar na Europa”, recorda Kravets.
“O autocarro levou-nos até à zona do Porto e foi através da plataforma ICANHELP.HOST que encontrei um lugar para ficar”. À CNN Portugal Kravets conta que inicialmente era difícil viver uma vida normal. “Apenas queria ficar no quarto a beber vinho, fumar cigarros e falar com aqueles que não tiveram a mesma sorte e tiveram de ficar na Ucrânia”.
Eram muitas as mudanças de casa, desde famílias de acolhimento, hotéis e casas de acolhimento a ucranianos. Olena e Luna viveram em muitos sítios no último ano. “Durante metade do ano não sabia o que fazer, estava socialmente apática”, confessa, recordando que quando viveu num hotel na zona dos Clérigos, no Porto, por um mês, mal conseguia sair de casa.
Era difícil sair e ver tantos turistas felizes."
Olena começou, entretanto, a trabalhar como tatuadora. Inicialmente em casa das pessoas, depois acabou por conseguir um lugar em diferentes estúdios de tatuagens. No entanto, conta que foi difícil conseguir que lhe dessem trabalho por não falar a língua. Agora está à procura de um novo espaço e vive com o seu namorado português no centro do Porto.
Há diferenças culturais entre Portugal e Ucrânia, pelo que Olena diz que ainda se está a adaptar à mentalidade portuguesa. E dá mesmo um exemplo dessas diferenças. “No meu país só o homem é que é o único responsável pelo pagamento das despesas e da renda”.
Voltar à Ucrânia está fora de questão, até porque é mais seguro para a filha viver em Portugal. Olena elogia as escolas portuguesas e o facto de as pessoas serem calmas. “Não há stress e estão focadas nos seus filhos e famílias”.
Está feliz por ter escolhido Portugal.
É exatamente o que preciso depois do que passei.”
Para além daqueles que permanecem em Portugal porque conseguiram arranjar trabalho ou abriram os seus próprios negócios, “há cidadãos ucranianos que ficam porque não têm para onde regressar”, porque vêm de zonas da Ucrânia que estão totalmente destruídas, explica Pavlo Sadokha, presidente da AUP.
O constante barulho das sirenes é motivo suficiente para Anna Kurkina, de 34 anos, não querer voltar a Kharkiv. Veio para Portugal em agosto do ano passado e considera “corajosos aqueles que são capazes de voltar”. À CNN Portugal conta que na semana passada foi visitar Kharkiv e apesar de as pessoas aparentemente viverem uma ‘vida normal’, há um som permanente que faz lembrar que há ainda uma guerra a decorrer.
Apesar de Anna não falar português, conseguiu um trabalho como cabeleireira em Lisboa. "Estou feliz por estar junto ao mar, a comunidade ucraniana é muito unida e adoro marisco", partilha Kurkina, contente por ter vindo até Portugal.
Anastasiia Harbuzova, de 22 anos, chegou a Portugal em março do ano passado e conseguiu, agora. uma bolsa para estudar programação na Academia de Código, em Lisboa. O ano passado fugiu da guerra e relembra que entre várias boleias conseguiu chegar à zona ocidental da Ucrânia com a sua amiga Viktoriia onde passaram a fronteira para a Polónia. Chegadas a Cracóvia pediram a pessoas que não conheciam para ficarem nas suas casas, mas sentiram uma enorme dificuldade. “Havia muitos ucranianos sem sítio para onde ir”.
Assim, com uma enorme curiosidade em Portugal decidiu que era “o sítio para onde tinha de fugir”. Entrou em contacto com a Up to you Portugal, uma organização não governamental, que organizou carrinhas de seis lugares que partiram de Lisboa para a Polónia com mantimentos e regressaram com pessoas que quisessem vir para Portugal. “Fizeram tudo o que podiam por nós, ficámos eternamente gratas”. A organização ajudou-a a encontrar uma família de acolhimento que “agora é como se fosse a sua própria família”.
Por isso não pensa sair de Portugal. “Não iria para outro país num futuro próximo, tenho mais estabilidade e sinto-me mais segura aqui”. Anastasiia foi a Kiev este ano e conseguiu estar com a avó durante duas semanas. “Ambas sabíamos que tínhamos de aproveitar bem o tempo, ela tem a sua vida lá e eu tenho de criar a minha noutro sítio para estar segura”. A jovem conta que enquanto lá esteve nunca pensou em ficar, viveu aquelas semanas em constante medo, a ouvir sirenes e a ansiar que não houvesse nenhuma bomba. “Não percebo como é que algumas pessoas regressam para lá e como se habituam a manter as suas vidas no meio de uma guerra”, confessa Anastasiia.
Ao contrário de Anastasiia, Olena e Anna, muitos têm, no entanto, regressado. “O povo ucraniano não foi preparado para emigrar”, garante Pavlo Sadokha, lembrando que havia muitas ucranianas que estavam longe dos seus maridos que ficaram a combater. Há ainda outras razões, como a crise que se vive agora em Portugal e o facto de “a maioria dos ucranianos não conseguirem, num ano e meio, aprender a língua e tratar de problemas na segurança social”, acrescenta. Apesar disso, a comunidade ucraniana foi muito bem recebida, admite. “Todos os 56 mil ucranianos que vieram têm acesso a instituições, trabalho e saúde e apesar do problema de habitação inicial, nenhum foi para a rua”. Assim, é de esperar que entre o medo de regressar para um cenário de guerra incerto e a segurança sentida em Portugal, a maioria dos ucranianos queiram ficar por cá.