Yana tinha tudo preparado para viver em Portugal mas ficou presa na Ucrânia por causa da guerra. "Tenho emprego e salário, algo que muitos perderam"

23 jul 2022, 22:00
Yana

Cinco meses depois, Yana ainda consegue sentir o “medo animal” que experimentou quando a guerra começou. Numa entrevista à CNN Portugal, conta como é o dia a dia em Odessa e fala dos dois maiores desejos de todos os ucranianos

É com os olhos rasos de água que Yana recorda os planos que tinha com o namorado antes da guerra começar. Em novembro do ano passado, tinham estado em Portugal à procura de casa. Havia uma proposta de trabalho irrecusável e preparavam-se para fazer a mudança quando a guerra começou. Planos que a guerra veio adiar. A lei marcial impediu que o namorado saísse da Ucrânia e Yana não quis deixá-lo para trás. Agora, vivem o dia a dia ao ritmo dos bombardeamentos russos em Odessa, no sul do país, de onde tentam sair.

Trabalha a partir de casa, no departamento de vendas de uma tecnológica americana. Aprende português à distância e, esporadicamente, visita a mãe que vive em Izmail, a quase cinco horas de distância.

Falou com a CNN Portugal pouco tempo depois de completar 33 anos, um dia em que se sentiu “miserável”. “Na maioria dos dias, sentimos que não temos o direito de comemorar seja o que for.” Fala frequentemente em “gratidão”, por estar viva, por ter a família a salvo, numa cidade que até agora não foi ainda atacada, por ter emprego e por ter dinheiro para ir ao supermercado e abastecer a despensa, apesar de “estar tudo mais caro”.

Recorda como viveu o primeiro dia da guerra, como é confundir o som dos rockets russos com o fogo de artifício, que foi entretanto proibido na Ucrânia, e a angústia de, perante um céu nublado, não saber se trovejou ou se mais um míssil atingiu um edifício civil e matou mais crianças.

Lamenta que agora não possa passear na praia ou nadar no mar. É proibido, por causa das minas nos areais. "Já morreram três pessoas que desrespeitaram essas indicações", conta. 

Após quase cinco meses de conflito, não duvida que a guerra vai ter um impacto enorme na sua saúde mental, mas não lhe rouba o otimismo: tem a certeza que a Ucrânia vai sair vencedora.

Como viveu os primeiros momentos da guerra na Ucrânia?

Tudo aconteceu muito rápido. Um dia antes da guerra estávamos a celebrar o aniversário do meu namorado e a fazer planos. Convidámos os nossos amigos para fazermos uma festa em casa no sábado seguinte. Mas, na quinta-feira de madrugada, acordámos às 04:30 com a primeira explosão. Achámos que era fogo de artifício ou algo assim. Mas em poucos minutos ouvimos mais duas explosões. Sentei-me na cama e percebi que algo muito mau estava a acontecer. Comecei a ler as notícias de Odessa no Telegram. Percebi que toda a gente estava acordada e li que as pessoas estavam a ouvir explosões um pouco por todo o país em simultâneo. E havia um vídeo de Putin a dizer que estava a começar uma guerra contra a Ucrânia…

Ainda me lembro daquele medo animal e das mãos trémulas, enquanto fazia as minhas malas. Acho que foi a coisa mais assustadora que já vivi.

Antes da guerra começar estava prestes a vir para Portugal. Mas agora permanece na Ucrânia por causa do seu namorado.

Sim, por causa da minha família e do meu namorado. Tentámos sair do país no segundo dia da guerra, mas havia filas enormes de carros, autocarros e pessoas em todas as direções. E os homens já não tinham permissão para deixar o país. Ninguém da minha família queria sair da Ucrânia. Sabe que é difícil para os mais velhos deixar tudo e ir embora. Especialmente quando as coisas estão aparentemente calmas na nossa cidade, como é o caso de Izmail, na fronteira com a Roménia, onde vive a minha família.

Nessa altura, eu e o meu namorado saímos de Odessa e fomos para Izmail. Passámos duas semanas na casa da minha tia. Duas semanas assustadoras, a ler notícias sem parar e a acordar duas ou três vezes à noite por causa das sirenes.

Mas também foram semanas muito importantes para todos os ucranianos, que ficaram mais unidos do que nunca, tornaram-se mais patrióticos e sentiram muito orgulho do seu presidente, no seu exército, e no seu povo. Um sentimento muito forte para todos nós.

E agora, quer deixar a Ucrânia e fugir da guerra ou quer ficar?

Tenho um sentimento muito ambíguo sobre isso. Não saio da Ucrânia desde 24 de fevereiro, sempre a ouvir os ataques aéreos, as explosões em Odessa, incluindo a que atingiu um prédio civil, onde morreram pessoas. Uma amiga mora nesse prédio, mas felizmente estava fora da cidade no momento em que o rocket lhe destruiu a casa. Tenho certeza de que tudo isto afeta a nossa condição mental de uma maneira muito dura e teremos os resultados disso muitos anos depois de a guerra acabar.

É uma pergunta muito difícil. A minha família parece não estar em perigo em Izmail, pelo menos por enquanto.

Por outro lado, estávamos a planear deixar o país desde o outono de 2021, por causa de uma oportunidade de emprego fora da Ucrânia. Quando houver uma oportunidade, acho que vamos mesmo.

E já pensou como vai ser deixar a sua família?

A questão agora não é tentar fugir (é triste dizer, mas estou quase acostumada a tudo o que acontece), mas há circunstâncias em que temos de sair. Encontro algum sossego no pensamento de que pelo menos não vou para longe como Estados Unidos ou Canadá. Vou continuar na Europa, não muito longe da minha Ucrânia.

Como é o seu dia a dia em Odessa?

É viver cada dia como se fosse o último. Não se pode fazer planos porque tudo muda muito rapidamente.

Acordo e a primeira coisa que faço é ler as notícias. Manhãs más são aquelas em que os russos bombardeiam casas civis e há mortos. Apetece-nos sempre chorar como se fossem pessoas que conhecemos. São pessoas da mesma nação e sentimos pena de cada um deles, porque não merecemos. Todos os dias fazemos a mesma pergunta: porquê?

Passo o dia em casa a trabalhar. Isso ajuda-me a concentrar em algo além desta guerra horrível. Estou muito agradecida por ainda ter um emprego e salário, algo que muitas pessoas perderam.

Quando ouvimos as sirenes de ataque aéreo, escondemo-nos no corredor. Se ouvirmos uma sequência de explosões, corremos para o estacionamento subterrâneo da nossa casa.

Muitas vezes também há sirenes à noite. Depois dessas noites, não nos sentimos revigorados pela manhã, ficamos sem energia e continuamos a dormir.

Não podemos sair de casa depois das 23:00, mas já me habituei a isso.

Yana num passeio, antes da guerra, junto ao mar em Odessa, onde agora é proibido nadar por causa das minas. (Arquivo pessoal)

Disse-me numa conversa prévia a esta entrevista que já não consegue imaginar como será sua vida sem o som das explosões e sem o medo da guerra. Pensa muito nisso?

Já conheço o som da defesa aérea atingindo os mísseis russos (é muito parecido com fogo de artifício. Por isso é que agora ninguém gosta de fogo de artifício e até foram proibidos os fogos de artifício na Ucrânia), o som de um míssil a voar sobre a minha casa e que eu sei que visa atingir e matar alguém, o som de um míssil atingindo algo (muitas vezes soa como um grande trovão, quando tudo vibra. É por isso que os ucranianos nunca sabem se é uma tempestade ou um míssil que atingiu algo) e há muitos outros sons novos que experimentamos desde o final de fevereiro.

Seremos como nossos bisavós, que viveram a Segunda Guerra Mundial, e vamos dizer aos nossos netos - "Aconteça o que acontecer, a guerra é a pior coisa que pode existir. E vamos passar a ter sempre alguns produtos guardados, caso comece uma guerra."

A guerra tornou-se algo normal para si?

Não, nunca se pode tornar normal para ninguém, eu acho. Pelo menos não para as pessoas com sentimentos.

Todos os dias morrem muitas pessoas pela nossa liberdade. Morrem civis, crianças por causa de mísseis russos. Para quê? Esta pergunta não nos sai da cabeça.

Tenho alguns colegas de trabalho e velhos amigos que perderam amigos e familiares. Uma menina da minha cidade natal morava em Bucha, onde aconteceu o genocídio. Conseguiu sair alguns dias antes de tudo começar lá.

Não. Nunca poderia tornar-se normal. Acordamos com ódio dos russos, com orgulho nos nossos militares que lutam por nós, doamos dinheiro para ajudá-los, pagamos impostos para ajudar nosso país e esperamos que tudo acabe depressa. A luz vence sempre, não é?

Consegue esquecer que está no meio de uma guerra em algum momento?

Talvez enquanto estou concentrada no meu trabalho e não tenho tempo para ler notícias. Mas a guerra preenche uma grande parte de nossa vida quotidiana agora.

Consegue sair de casa e circular normalmente? Quando faz isso, sente-se segura?

Não acho que as pessoas realmente se sintam seguras. Especialmente agora que os russos começaram a bombardear locais civis com tanta frequência. Muitas lojas fecham quando os ataques aéreos começam e não podemos entrar. Temos de esperar ou esconder-nos. Isto sem contar que podemos morrer naquele centro comercial.

Há falta de bens essenciais?

Não. Há é menos variedade de alguns produtos. Mas, em geral, temos um pouco de tudo e somos muito gratos por isso. Claro que tudo ficou mais caro e muita gente ficou sem trabalho e, por isso, é mais difícil comprar muitas coisas.

Comemorou o seu aniversário no início deste mês. Como foi celebrar o seu primeiro aniversário na guerra?

Mal acordei, desatei a chorar. Senti-me tão miserável naquele momento. Na maioria dos dias sentimos que não temos o direito de comemorar seja o que for, por tudo o que está a acontecer. Mas a vida continua.

Passei este dia na minha cidade natal com a minha família, acabou por ser um bom dia.

Yana, num passeio em Odessa, antes da guerra. (arquivo pessoal)

Consegue-se ter momentos de felicidade num cenário de guerra?

Às vezes começamos a sentir que não, mas lembramo-nos que só temos uma vida. No minuto seguinte, fazemos uma doação para o exército, por exemplo, e sentimo-nos gratos.

Costuma ir à sua cidade natal visitar a família. É fácil deslocar-se pelo país? O que mudou nessas viagens nos últimos quatro meses?

Temos postos de controlo em todo o lado, com militares a verificar os nossos passaportes. Tornou-se mais difícil para os homens movimentarem-se. As mulheres são mais poupadas nessas verificações.

O que mais a marcou nestes quatro meses de guerra?

Ver tantas pessoas mortas, talvez. Ouvir as explosões na minha cidade e saber que, dado os locais que atingiram, provavelmente mataram crianças.

Perdi muitas amizades com russos, com quem me dava há muitos anos. Vêm dizer-me que há nacionalistas no nosso país e que a Rússia nos bombardeia para nos tornar livres. Nem vou entrar por aí, porque é um argumento tão ridículo. Desfiz muitas amizades com pessoas que apoiam esta guerra ou simplesmente se votaram ao silêncio sobre o assunto.

Acha que vai demorar muito para a guerra acabar?

Parece que pode continuar até ao final do ano. Claro que todos queremos que isso acabe mais rápido, mas, por enquanto, o nosso país não tem armas fortes o suficiente para fazer um contra-ataque. Mas vamos vencer, não tenho dúvidas.

Os ucranianos não consideram a hipótese de o país sair derrotado deste conflito?

Temos a certeza que o nosso país vencerá! Acho que o presidente e toda a comunicação social têm feito um grande trabalho desde 24 de fevereiro, porque todos temos certeza de que a Rússia irá embora. Sim, eles são mais e têm mais armas. Mas temos de vencer! Ninguém quer viver na Rússia.

Qual é a sua perspetiva para o futuro?

Acho que um futuro muito brilhante aguarda a Ucrânia. Mas vai levar tempo. Teremos de construir a nossa economia novamente, reconstruir as nossas casas bombardeadas, fortalecer o nosso exército, fazer um enorme muro a separar-nos do nosso vizinho louco.

Vamos sempre viver com medo da guerra e das bombas e vamos sempre estar à espera que a Rússia volte novamente. Mas estaremos preparados.

Qual é o seu maior desejo?

Essa é uma pergunta fácil! Acho que todos os ucranianos têm dois desejos - que vençamos rapidamente e Putin morra.

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